Liberdade de expressão: Extremos, limites e o "Cristo na urina"
Além do caso Léo Lins, surgem as leis anti-Oruam. O artigo analisa a linha entre discurso de ódio x discurso "odioso". Avalia a decisão da Suprema Corte [caso da obra de arte "Cristo na Urina"].
terça-feira, 17 de junho de 2025
Atualizado às 11:56
1. Nota preliminar
Há alguns dias publiquei aqui em Migalhas breve texto a respeito do conceito de "humor" e seu conturbado momento no Brasil, especialmente, buscando potencializar o alcance da liberdade de expressão. Aquele trabalho foi lido positivamente por aqueles com posição política mais à "direita", até mesmo a "direita conservadora". Muito mais positiva ainda foi a receptividade na ala "libertária".
Do outro lado, gerou algumas críticas de leitores mais "à esquerda", em especial o espectro que se arvora à condição de "progressista".
Parece que a noção de "liberdade" é um joguete. Quando "me agrada" o conteúdo da "expressão" ela deve ser livre e protegida; quando o conteúdo me gera repugnância, está aberta a temporada de tiro ao emissor da mensagem ou à própria mensagem.
Tentarei, no presente texto, ver a afirmação anterior seria algo próximo do que vemos no cotidiano brasileiro: um ódio à liberdade de expressão, em todos os espectros políticos e seus torcedores lunáticos, bastando que o "conteúdo" da mensagem "desagrade".
2. Introdução
Falar sobre o conceito de liberdade de expressão, especialmente no Brasil, é um problema. Somos um país onde medianamente temos verdadeiro ódio às liberdades. Toleramos os pequenos ou grandes abusos autoritários do dia a dia, e principalmente - e isto não é privilégio da esquerda ou da direita, mas um mal universal - acreditamos que a restrição da liberdade será, somente, contra a liberdade do outro.
Por isso, opto por partir de um caso ocorrido nos Estados Unidos, para indicar como é difícil traçar uma linha divisória entre expressão, ofensa, repugnância, odiosidade, liberdade e censura. Especialmente para diferenciar um "discurso detestável, repugnante e odiável" (hateful speech) de uma coisa bem diferente - mas, no Brasil, tratamos como sinônimo - que é o "discurso de ódio" (o tão falado hate speech). Em Snyder v. Phelps, 562 U.S. 443 (2011) a Suprema Corte analisou o caso de uma congregação religiosa (Igreja Batista de Westboro). Um Tribunal inferior os considerou responsáveis por milhões de dólares em danos por fazerem piquetes perto do funeral de soldados: os cartazes dos piquetes refletiam a opinião da igreja de que os Estados Unidos são excessivamente tolerantes com o pecado e que Deus mata soldados americanos como punição. A questão foi apresentada sob a proteção da Primeira Emenda: protegeria os membros da igreja da responsabilidade civil por seu discurso nesse caso? O caso foi decidido por maioria a favor da "liberdade de expressão". A conclusão: "Como nação, escolhemos um caminho diferente - proteger até mesmo o discurso ofensivo sobre questões públicas para garantir que não sufoquemos o debate público. Essa escolha exige que protejamos a Westboro da responsabilidade civil por seus piquetes neste caso."
O interesse é que o Justice Samuel Alito, altamente conservador e republicano até não poder, dissentiu. Primeiro: enfatizou que o ofendido não era uma figura pública. Era o pai de um filho militar falecido no Iraque, que somente queria poder enterrar o filho com um mínimo de dignidade. Portanto, não era uma figura pública que devesse tolerar críticas, muito menos críticas ácidas. Segundo que os precedentes, como o caso Hustler Magazine, Inc. v. Falwell, 485 U.S. 46 (1988)1 não se aplicariam. Ao final, lamentou que o "comportamento ultrajante" dos manifestantes não seria objeto de um julgamento mais apropriado pelo tribunal de origem (o voto concluía pela anulação da decisão do tribunal "a quo" e devolução dos autos para julgamento mais apropriado).
Retomando o tema específico, solicito que os leitores não se sintam ofendidos com o nome da obra de arte que analisarei. Tratarei da obra de arte denominada "Piss Christ" ou "Cristo imerso na urina".
2.1."Piss Christ" ou "Cristo Imerso na Urina"
O caso é uma "instalação" do artista Andres Serrano, contendo uma foto de um crucifixo, imersa em um tanque transparente cheio de líquido assemelhado à (ou realmente sendo) urina. Supostamente, a urina do próprio artista.
O debate a respeito desta "escultura" envolveu dois problemas relacionados à liberdade de expressão artística:
- O primeiro, seria saber se aquela escultura deveria ter sua exibição proibida, diante do conteúdo altamente ofensivo não somente a católicos, mas a todos os cristãos, ainda que não usem o crucifixo;
- O segundo, seria saber se as leis de incentivo público para atividades culturais poderiam ou não - desde que a regra seja fixada por autoridade competente e seguidos os procedimentos adequados - fixar "padrões de decência e decoro".
O tema chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos no caso National Endowment for the Arts v. Finley, 524 U.S. 569 (1998). Abrasileirando: saber se uma "Lei Rouanet" e suas co-irmãs estaduais e municipais poderiam fixar critérios de "decoro".
A primeira resposta dada pela Suprema Corte: não pode haver censura. Vedar a exibição ou exposição pública seria censura. A expressão direta da liberdade artística, com ou sem envolvimento de incentivo público, não pode ser proibida. Vá à exposição quem o desejar. Financie o artista quem o quiser. Se o financiado for um órgão público de fomento, seria legítimo ao agente público eleito fixar as regras para tanto.
A segunda resposta da Suprema Corte Americana, seguiu uma posição que merece esclarecimento. Uma lei que regulamenta uma iniciativa pública de fomento às artes, no caso de haver legislação apropriada, pode fixar critérios ou standards de decência, ou decoro para o recebimento de tais incentivos. E lembrou a Suprema Corte: os próprios critérios de concessão de incentivo às artes sempre foram não muito objetivos (o que seria o "belo"?). Assim, a noção de decoro ou decência, mesmo parecendo subjetiva, estaria adequada àquele tipo de ambiente.
A Suprem Corte separou o joio do trigo. Aquele tribunal fez uma sintonia fina, tratando as hipóteses apropriadamente: ainda que pareçam ser "o mesmo", na verdade, eram diferentes. Decidiu a Corte que censura não é possível! Mas, lado outro, é possível fixar critérios de decoro para o financiamento público.
3. O repugnante, o detestável e o grosseiro: Aqui entra a liberdade
Por mais acintosas que sejam certas imagens, por mais "detestáveis" ou "repugnantes" que fossem as gravuras ali inseridas, para o gosto individual de cada espectador, há uma questão fundamental inerente: em um ambiente de acesso específico (só entra ali quem deseja ver a obra de arte, naquele canal de TV só fica sintonizado quem deseja ver o filme ou espetáculo, etc.), financiado por uma empresa privada, não se pode tolerar uma restrição à liberdade privada da empresa, dos artistas e do público.
É bom sempre lembrar: a liberdade de expressão não é para os santos! Estes não habitam nosso mundo! A ninguém ofendem. A mesma liberdade não espera servir aos submissos e subalternos, que se calam, e por isso mesmo pouco importa haver uma liberdade ou uma tirania.
A proteção da liberdade de expressão visa exatamente a proteção do repugnante, o gosto duvidoso, e mesmo o "odiável". Não confundir uma "obra odiável" com coisa outra, que seria aquela obra trazer discurso de "ódio".
4. A defesa da censura: Robert Bork contradizendo Robert Bork!
Em 1996, o jurista americano Robert Bork publicou um livro emblemático e "provocativo". "Slouching Towards Gomorrah" (Rastejando Rumo a Gomarra) já seria uma provocação, corrompendo uma frase do poema de Yates, The second Coming2cuja última estrofe seria:
A escuridão cai novamente; mas agora eu sei
Que vinte séculos de sono pétreo
Foram transformados em pesadelo por um berço de balanço,
E que animal rude, sua hora finalmente chegada,
Rastejando em direção a Belém para nascer?
O juiz Robert H. Bork argumentou - em um capítulo denominado A case for censorship - que devemos adotar uma censura extensiva à mídia violenta e sexualmente explícita. Assim, seria possível combater patologias sociais como a criminalidade.
Vejamos como Bork contesta Bork. Em outros estudos e publicações anteriores, Bork denunciava os perigos da regulação econômica governamental. A regulação cultural apresenta muitos dos mesmos riscos que Bork destacou em suas críticas à regulação econômica, além de alguns perigos específicos: a regulação cultural pode ser usada para calar oponentes, e ser propensa à captura por grupos de interesse, e gera uma expansão excessiva (qual limite da censura?).
No livro The Antitrust Paradox, por exemplo, as lições Borkeanas de maximização da liberdade e dos exageros ditos "antitrust" são o foco. Bork propunha que somente comportamentos que de fato prejudicam o consumidor diretamente ou afetem a eficiência econômica, devem ser punidos.
No artigo The Borkean Case Against Robert Bork's Case For Censorship, o autor Ilya Somin, professor da George Mason University School of Law, comenta ser um tanto contraditório a proposta de regular o meio cultural duramente via censura.
5. Um fato inusitado para encerrar
Em TEXAS v. JOHNSON, a Suprema Corte americana se deparou com outro caso da liberdade de expressão: haveria liberdade "para queimar a bandeira americana em protestos"?
Um juiz daquele Tribunal, conservador de quatro costados, mas amante das liberdades, ANTONIN SCALIA - falecido em 2016 - referiu certa vez em entrevista: "Se dependesse de mim, eu colocaria na cadeia todos os esquisitões de sandálias e barbas desalinhadas que queimassem a bandeira americana".
SCALIA resumiu a razão pela qual não podia, no mundo real, prender o "esquisitão de sandálias" que estava sendo julgado por queimar a bandeira: "Mas eu não sou rei," sentenciou o magistrado.
SCALIA tinha a certeza exata do que é ser um ministro daquela Corte Suprema. Ele não era dono das leis, nem fazia as leis. E as leis americanas, especialmente a CF, determinavam a liberdade de expressão do "barbudo esquisitão".
Faltam em nossa República alguns SCALIA que não cedam aos caprichos momentâneos, à massa raivosa e às paixões políticas. Assim as liberdades, inclusive a de expressão, estariam melhor protegidas.
Os limites da liberdade de expressão devem deixar de usar "palavras-chavão" e fazer a efetiva diferenciação, a sintonia fina entre "discurso de ódio" e de uma "opinião que considero odiosa", ou "repugnante". Bem como, desde já, reconhecer que a inclusão de critérios de decência ou respeito público não são sinônimos de censura [não necessariamente: sempre devem ser analisados os critérios in concreto].
Os assuntos fervem, desde o caso Léo Lins, novamente, às chamadas "Leis Anti-Oruam".
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1 "A Primeira Emenda protege paródias de celebridades ou de outras figuras públicas, mesmo que tenham o objetivo de causar sofrimento aos seus alvos."
2 https://www.poetryfoundation.org/poems/43290/the-second-coming


