A prescrição intercorrente na execução - Análise à luz do STJ
Prescrição intercorrente sofreu mudanças com IAC 001/STJ, CPC/15 e lei 14.925/21. Novas regras e jurisprudência exigem estudo aprofundado dos operadores do Direito sobre sua aplicação prática.
terça-feira, 17 de junho de 2025
Atualizado às 11:56
A prescrição intercorrente na execução: Uma análise abrangente dos regimes do CPC/73, CPC/15 e lei 14.195/21 à luz da jurisprudência do STJ
A prescrição intercorrente na execução é um dos temas mais dinâmicos e desafiadores do Direito Processual Civil brasileiro. Sua finalidade primordial é conciliar o direito fundamental do credor à satisfação do seu crédito com os princípios da segurança jurídica, da celeridade processual e da duração razoável do processo.
A disciplina desse instituto passou por significativas evoluções, marcadas tanto pela construção jurisprudencial quanto por importantes intervenções legislativas ao longo das últimas décadas
Compreender o termo inicial da contagem do prazo e os requisitos para o reconhecimento da prescrição intercorrente exige uma análise detida dos regimes sucessivos do CPC/73, do CPC/15 em sua redação original, e das alterações introduzidas pela lei 14.195/21.
1. A prescrição intercorrente sob a égide do CPC/73: A construção jurisprudencial
Na vigência do CPC/73, a prescrição intercorrente não possuía previsão legal expressa. Sua existência e aplicação eram fruto de uma robusta construção jurisprudencial, notadamente inspirada na súmula 150 do STF, que estabelecia que "prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação".
O elemento central para o reconhecimento da prescrição intercorrente neste período era a inércia qualificada (desídia) do credor. Não bastava a simples paralisação do processo; era indispensável que essa paralisação fosse atribuível à falta de diligência ou negligência do exequente em impulsionar o feito.
Quanto ao termo inicial da contagem do prazo, a jurisprudência consolidou que:
- Se houvesse prazo de suspensão judicialmente fixado, a contagem da prescrição intercorrente iniciava-se no dia seguinte ao término desse prazo.
- Inexistindo prazo judicialmente fixado, mas havendo paralisação por não localização de bens ou do devedor, o prazo da prescrição intercorrente começava a fluir após o decurso de 1 ano da data do arquivamento provisório dos autos. Este período de um ano era uma aplicação analógica do art. 40, § 2º, da lei de execução fiscal (lei 6.830/80).
A análise era, portanto, de natureza subjetiva, focada na conduta do credor.
2. O CPC/15 (redação original): A formalização e a manutenção da desídia
O advento do CPC/15 trouxe a previsão expressa da prescrição intercorrente em seus arts. 921 a 923. Embora tenha conferido base legal ao instituto, o legislador, e posteriormente a jurisprudência, mantiveram a essência do regime anterior no que tange à necessidade da inércia do credor.
O art. 921, § 1º, do CPC/15, estabeleceu que, não sendo encontrados o executado ou bens penhoráveis, o juiz suspenderia a execução pelo prazo de 1 ano, período durante o qual a prescrição também ficaria suspensa. Decorrido esse ano sem manifestação do exequente, o § 4º do mesmo artigo original previa que começaria a correr o prazo da prescrição intercorrente.
Nesse contexto, o STJ, por meio do julgamento do IAC - Incidente de Assunção de Competência 1 (REsp 1.604.412/SC), consolidou as teses aplicáveis à prescrição intercorrente. A tese 1.2 do IAC 1/STJ reiterou que o termo inicial do prazo prescricional, na vigência do CPC/1973, conta-se do fim do prazo judicial de suspensão ou, se inexistente, do transcurso de um ano (aplicação analógica do art. 40, § 2º, da lei 6.830/80).
Mais importante, o STJ manteve que, mesmo com a nova redação do CPC/15, a desídia do credor continuava sendo um pré-requisito indispensável para a consumação da prescrição intercorrente.
Conforme lição do doutrinador Daniel Amorim Assumpção Neves, "a prescrição intercorrente dependia essencialmente de uma desídia do exequente na movimentação do processo, porque enquanto houvesse tal movimentação, ainda que sem a localização de bens a serem penhorados ou ainda da localização do próprio executado, a execução mantinha-se em trâmite" (NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 16. ed. São Paulo: JusPodivm, 2024, p. 972-973). Assim, atos do credor que demonstrassem a continuidade do interesse em prosseguir, mesmo que infrutíferos, eram considerados capazes de afastar a inércia.
3. A lei 14.195/21: O marco da objetividade
A lei 14.195/21, publicada em 26/8/21 e em vigor a partir do dia seguinte, promoveu a mais significativa mudança no instituto, buscando torná-lo mais objetivo e desvinculado da conduta subjetiva do credor.
As alterações no art. 921, § 4º, do CPC/15, estabeleceram que o termo inicial da prescrição intercorrente passou a ser a data da ciência da primeira tentativa infrutífera de localização do devedor ou de bens penhoráveis. A partir daí, inicia-se automaticamente o prazo de suspensão de um ano e, subsequentemente, o prazo da prescrição intercorrente, sem a necessidade de prévia desídia do credor.
Conforme a ministra Nancy Andrighi, em um de seus importantes julgados sobre o tema: "A partir da entrada em vigor da Lei n. 14.195/2021, ao contrário do que se verificava na redação original do código, não há mais necessidade de desídia do credor para a consumação da prescrição intercorrente, cujo prazo iniciará automaticamente." (REsp 2.090.768 - PR, ementa, item 7).
Em síntese, "a prescrição não é mais motivada pela inércia do exequente, mas substancialmente pela ausência de bens penhoráveis do executado ou de sua não localização" (REsp 2.090.768 - PR, Voto, item 12, citando Daniel Amorim Assumpção Neves).
4. As regras de transição e a aplicação temporal da lei 14.195/21
A irretroatividade das leis processuais é um princípio basilar do direito brasileiro (art. 14 do CPC). A lei 14.195/21 não possui efeito retroativo para modificar situações jurídicas já consolidadas.
O STJ tem sido firme em estabelecer as regras de transição para a aplicação da nova lei, detalhadas notadamente pela ministra Nancy Andrighi no REsp 2.090.768 - PR e ratificadas em diversos outros julgados:
- Novos processos ou execução infrutífera posterior à nova lei (após 27/08/21): O novo regime da lei 14.195/21 aplica-se integralmente.
- Processos em curso sem suspensão determinada, mas com tentativa infrutífera após 27/08/21: Aplica-se o novo regime da lei 14.195/21, com o termo inicial do prazo de suspensão de um ano na data da primeira tentativa infrutífera após a vigência da lei.
- Processos com prazo prescricional intercorrente já iniciado (antes da lei 14.195/21): O novo regime não se aplica. O processo continua a ser regido pela redação original do CPC/15, sendo essencial a necessidade de desídia do credor para o reconhecimento da prescrição. Essa tese foi reiterada pelo ministro João Otávio de Noronha no AgInt nos EDcl no AREsp 2.629.105 - MT, ao afirmar que "A lei processual que dispõe sobre novo regime prescricional é irretroativa, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei".
- Processos em suspensão (pelo art. 921, § 1º, CPC/15 original) quando a lei 14.195/21 adveio: O novo regime não se aplica. O processo continua a ser regido pela redação original do CPC/15, pois a expectativa de que o termo inicial seria o fim da suspensão configura uma "situação jurídica consolidada".
A inércia do exequente (sua desídia) é, portanto, um pré-requisito indispensável para o reconhecimento da prescrição intercorrente nas execuções regidas pelo CPC/73 e pelo CPC/15 (redação original).
5. O reconhecimento da desídia do credor: Ato proativo vs. infrutuosidade
Uma questão crucial, especialmente para processos sob o CPC/15 (redação original), é a interpretação do que constitui a "desídia" do credor. O STJ tem diferenciado a mera infrutuosidade das buscas de uma conduta realmente desidiosa:
O ministro Marco Buzzi, no AgInt no REsp 2.114.822 - PR, esclareceu que "o reconhecimento da prescrição intercorrente pressupõe a inércia do exequente por prazo superior ao da prescrição do direito material vindicado", e que "A sistemática introduzida pela lei 14.195/21... é irretroativa".
O acórdão ratifica que, no regime do CPC/15 original, a conduta proativa do credor, mesmo que as diligências para localização de bens sejam infrutíferas, tem o condão de afastar a desídia e, consequentemente, a prescrição intercorrente. A "diligência proativa", mesmo sem êxito, impede a caracterização da desídia.
Por outro lado, o ministro João Otávio de Noronha, no AgInt nos EDcl no AREsp 2.629.105 - MT, aponta que, exceto em casos de prejuízo exclusivo por determinação judicial, "a paralisação decorrente da não localização do devedor ou de bens penhoráveis advém da inércia do credor e recomeça a correr automaticamente a partir dos marcos temporais estabelecidos", reforçando que a "prescrição intercorrente pressupõe a paralisação do processo por prazo superior ao da prescrição do direito material".
Essa aparente contradição é solucionada pela aplicação das regras de transição. Se a lei nova (14.195/21) é aplicável, a desídia não é mais um fator relevante. Se a lei nova não é aplicável, a desídia se mantém como requisito indispensável, e o critério para aferi-la é a conduta proativa do credor.
Outro ponto de destaque, conforme o ministro Paulo de Tarso Sanseverino no REsp 1.704.779 - RS, é que a "atecnia processual" (como a determinação de "arquivamento" em vez de "suspensão") não altera o desfecho da controvérsia, pois o que importa é a inércia da parte exequente. Isso reitera que a desídia é o cerne da prescrição intercorrente em regimes anteriores, independentemente de formalidades.
Conclusão
A lei 14.195/21 representa um marco fundamental na evolução do instituto da prescrição intercorrente, ao introduzir um regime mais objetivo e desvinculado da subjetividade da desídia do credor. Essa mudança legislativa não apenas visa aprimorar a segurança jurídica e a efetividade das execuções, mas também induz a uma alteração comportamental por parte dos operadores do Direito, que passam a focar na proatividade e na eficácia das medidas judiciais requeridas para a satisfação do crédito.
A análise da prescrição intercorrente, contudo, demanda uma criteriosa observância da linha do tempo do processo executivo e da legislação vigente em cada etapa. O princípio da irretroatividade da lei 14.195/21, consolidado pelo STJ, impede a aplicação de seu regime mais objetivo a processos cujos prazos de prescrição intercorrente já estavam em curso ou em suspensão sob a égide dos códigos anteriores.
Para esses casos, a inércia e a desídia do exequente permanecem como requisitos essenciais para a consumação da prescrição, afastando-se-a por atos de diligência e proatividade do credor, mesmo que as buscas por bens ou devedores se revelem infrutíferas. A segurança jurídica e a previsibilidade são, assim, preservadas em um cenário de contínua evolução legislativa e jurisprudencial.
_______________
Legislação
BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 jan. 1973.
BRASIL. Lei nº 6.830, de 22 de setembro de 1980. Dispõe sobre a cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 set. 1980.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 jan. 2002.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 mar. 2015.
BRASIL. Lei nº 14.195, de 1º de setembro de 2021. Dispõe sobre a facilitação para abertura de empresas, a proteção de minorias, a facilitação do comércio exterior, o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos, as cobranças judiciais e extrajudiciais, a atuação de notários e registradores, entre outros; altera as Leis nº 8.934, de 18 de novembro de 1994, nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, nº 12.965, de 23 de abril de 2014, nº 11.522, de 18 de julho de 2007, e nº 11.382, de 21 de dezembro de 2006; e revoga a Medida Provisória nº 1.040, de 29 de março de 2021, e a Lei nº 11.598, de 3 de dezembro de 2007. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2 set. 2021.
Jurisprudência
STF. Súmula n. 150. Prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação. Publicada em 13/12/1963.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt nos EDcl no Agravo em Recurso Especial nº 2.629.105/MT. Relator: Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 20/05/2025, DJe 22/05/2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no Recurso Especial nº 2.114.822/PR. Relator: Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 07/10/2024, DJe 10/10/2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.604.412/SC. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 27/06/2018, DJe 22/08/2018 (IAC 1/STJ).
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.704.779/RS. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 17/09/2019, DJe 20/09/2019.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2.090.768/PR. Relatora: Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 13/11/2024, DJe 14/11/2024.
Doutrina: NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil: volume único. 16. ed. São Paulo: JusPodivm, 2024.


