A visão turva do fisco sobre o regime transparente aplicável aos trusts: SC COSIT 75/25 e a lei 14.754/23
SC COSIT 75/25 trata trust com transparência fiscal plena, gerando críticas por tributar beneficiários mesmo sem direito adquirido.
terça-feira, 17 de junho de 2025
Atualizado em 16 de junho de 2025 14:48
A recém-publicada Solução de Consulta COSIT 75 de 2025 (SC COSIT 75/25) pretendeu analisar os aspectos tributários de um trust irrevogável e discricionário, constituído em Delaware (EUA) por pessoa jurídica estrangeira, à luz da lei 14.754/23. Trata-se da primeira - e polêmica - manifestação da Receita Federal sobre o tema, após a edição da "lei das Offshores", que instituiu um regime de transparência para tributação e reporte de ativos alocados a tais estruturas fiduciárias.
Nos termos da referida lei, os trusts não possuem personalidade jurídica própria e tampouco constituem patrimônio destacado para fins tributários. A legislação determina que os bens, direitos e rendimentos alocados a um trust sejam atribuídos diretamente a uma pessoa física - seja o instituidor ou o(s) beneficiário(s) - conforme as particularidades do trust e o momento da (presumida) transferência de titularidade do respectivo patrimônio. A norma exige a identificação da pessoa física que, para fins fiscais, será considerada a efetiva titular, cabendo a esta a declaração dos bens e direitos e o recolhimento dos tributos devidos no Brasil sobre os rendimentos e ganhos de capital realizados. Resumidamente, este é o regime de transparência criado pela lei 14.754/23 para os trusts.
O caso submetido à consulta trata de um trust cujos potenciais beneficiários são descendentes de acionista de uma sociedade brasileira, indiretamente detida por pessoa jurídica estrangeira, que por sua vez conferiu direitos econômicos (usufruto) à sociedade instituidora do trust, também estrangeira. O acesso ao patrimônio, conforme informado, condiciona-se à verificação de situação de "extrema necessidade" por parte dos beneficiários, conforme critérios detalhados no instrumento de constituição do trust.
A SC COSIT 75/25 apresenta a seguinte ementa:
TRUST IRREVOGÁVEL E DISCRICIONÁRIO INSTITUÍDO NO EXTERIOR. LEI Nº 14.754, DE 2023. REGIME DE TRANSPARÊNCIA FISCAL. APLICABILIDADE. DEFINIÇÃO DE INSTITUIDOR E BENEFICIÁRIO.
A lei 14.754, de 2023, define o instituidor como a pessoa física que, por meio da escritura do trust, destina bens e direitos de sua titularidade para formar o trust (art. 12, inciso II). Quando o trust for criado por meio do patrimônio de pessoas jurídicas residentes no exterior, será preciso investigar a cadeia patrimonial de modo a encontrar a pessoa física que em última instância seja a titular daquele patrimônio, ainda que detido diretamente por meio de pessoas jurídicas. Essa pessoa física será considerada o instituidor (settlor) do trust para fins da aplicação da lei 14.754, de 2023.
A lei 14.754, de 2023, define beneficiário como a pessoa indicada para receber do trustee os bens e direitos objeto do trust. A utilização do verbo "indicar" aponta não ser necessária a aquisição do direito ao patrimônio do trust para que uma pessoa seja considerada beneficiária desse trust. A existência de uma expectativa de direito ao patrimônio do trust é suficiente para a caracterização da condição de beneficiário.
Dispositivos legais: lei 10.406, de 10/1/02 (CC), arts. 121, 125; lei 14.754, de 12/12/23, arts. 10, 11 e 12.
Não obstante as condições suspensivas previstas na declaration do trust, o entendimento adotado pela COSIT foi no sentido de que os potenciais beneficiários já deveriam ser considerados, para fins fiscais, titulares dos ativos alocados ao trust. Ao interpretar os arts.10, 11 e 12 da lei 14.754/23, a Receita Federal entendeu que esses dispositivos, que criaram o regime de transparência para os trusts, seriam aplicáveis mesmo quando não há direito adquirido ao patrimônio ou à renda dele derivada. Nos termos da solução de consulta "a [...] expectativa de direito ao patrimônio do trust é suficiente para a caracterização da condição de beneficiário".
A posição adotada na SC COSIT 75/25 levanta preocupações relevantes. Não se trata apenas de uma antecipação do momento da tributação, mas da imposição de um ônus fiscal a sujeitos que podem jamais integrar a relação jurídico-tributária - ou, pior, que podem sequer ter ciência de sua condição de potencial beneficiário. Trata-se de tributação baseada na simples indicação nominal, no documento de constituição do trust, de beneficiário subordinado a condições futuras e incertas e que, por serem suspensivas, não poderiam presumir a existência de qualquer disponibilidade jurídica ou econômica, de patrimônio ou renda.
O posicionamento do fisco também é merecedor de críticas em relação ao que parece ter sido uma nova modalidade de desconsideração da personalidade jurídica, mesclada com o já conhecido conceito de UBO - ultimate beneficial owner: ao tratar de quem deveria ser qualificado como instituidor do trust (settlor), aspecto fundamental para aplicação da lei 14.754/23, a solução de consulta inova ao afirmar que, quando o trust for instituído por pessoa jurídica estrangeira, deve-se investigar a cadeia patrimonial "de modo a encontrar a pessoa física que em última instância seja a titular daquele patrimônio".
Dentre os muitos aspectos controversos da SC COSIT 75/25, destacam-se:
- Atribuição indevida de obrigações principal e acessória a indivíduos sem vínculo jurídico-tributário: A solução de consulta impõe, de um lado, a obrigação principal de recolher tributo a sujeitos que não adquiriram disponibilidade jurídica ou econômica de renda, contrariando o art. 43 do CTN; e, de outro, obrigações acessórias (como a declaração de bens) a pessoas que não integram, naquele momento, a relação jurídico-tributária.
- Conflito entre a lei brasileira e o regramento do trust: A lei 14.754/23 prevê, em seu art. 10, §5º, que, quando caracterizado como titular dos bens e direitos do trust, o beneficiário deverá solicitar ao trustee os recursos necessários para o cumprimento das obrigações tributárias brasileiras. No entanto, no caso analisado pela SC COSIT 75/25, a condição de beneficiário está sujeita a condições suspensivas. O trustee, vinculado à legislação estrangeira e ao declaration deed do trust, não reconhece a existência de qualquer beneficiário (ou direito) efetivo que justifique o repasse de recursos até que sejam implementadas as condições suspensivas, impondo a este indivíduo o recolhimento de tributos com recursos próprios, sem qualquer acesso ao patrimônio que deu origem à tributação.
- Aplicação da lógica da transparência em cenário condicionado e incerto: Ao tratar o trust como estrutura transparente, a SC COSIT 75/25 desconsiderou a existência de condições suspensivas que impedem a consolidação de qualquer direito sobre o patrimônio ou renda. Com isso, atribui-se titularidade a beneficiários que podem nunca vir a adquirir relação jurídica com os bens ou com a renda deles derivada, claramente extrapolando os limites do regime instituído pela lei 14.754/23. Ignorou-se, também, o art. 117 do CTN, que apesar de tratar expressamente dos efeitos tributários dos atos e negócios sujeitos a condição suspensiva, sequer foi abordado na solução de consulta.
- Restrição indevida da figura do instituidor à pessoa física: A exigência de que o instituidor do trust seja uma pessoa física, ainda que os ativos tenham sido legitimamente aportados por pessoa jurídica estrangeira, desconsidera a autonomia das estruturas empresariais e patrimoniais envolvidas, desconsidera a possibilidade de o instituidor ser uma pessoa jurídica, e emprega expediente de desconsideração da personalidade jurídica não prevista na norma, com o objetivo de identificar a pessoa física por trás da instituidora. Essa interpretação, a nosso ver, não encontra respaldo na legislação e reduz artificialmente a abrangência da norma.
- Desconsideração da diversidade de estruturas: A solução de consulta ignorou as relevantes diferenças - jurídicas e econômicas - entre os diversos tipos de trusts, por exemplo, modelos revogáveis, irrevogáveis, discricionários e não discricionários. A ausência de distinções compromete a aderência da interpretação adotada à realidade das estruturas existentes.
- Violação dos limites da ficção jurídico-tributária: A lei 14.754/23 já se vale de uma ficção jurídica ao atribuir, nos termos do seu art. 10, titularidade do patrimônio do trust a beneficiário, mesmo antes da disponibilidade efetiva dos bens e rendimentos. No entanto, a SC COSIT 75/25 extrapola ao imputar renda/patrimônio a um suposto beneficiário, que se encontra vinculado a condição suspensiva ainda não implementada, ou seja, sem que haja qualquer expectativa juridicamente reconhecida de disponibilidade. Neste sentido, nos parece que, ao aplicar tal entendimento, o fisco acaba por violar os limites da própria ficção jurídica admitida no Direito Tributário, nos termos do art. 43 do CTN - notadamente, o instituto da disponibilidade jurídica. Não se pode desconsiderar a inexistência de renda juridicamente atribuível, sob pena de se criar uma tributação sobre fato meramente fictício, descolada de qualquer fato gerador real.
Até a edição da SC COSIT 75/25, o principal posicionamento formal da Receita Federal sobre a tributação de trusts havia sido a SC 41/20, que tratou de valores recebidos por residente no Brasil a partir de um trust no exterior. Naquela ocasião, a Receita entendeu que os valores recebidos deveriam ser classificados como rendimentos tributáveis pelo IRPF, sujeitos ao recolhimento via carnê-leão e à declaração na DIRPF.
A crítica central a esse entendimento reside no fato de que, em muitos casos, os valores recebidos de um trust têm natureza sucessória - o que deveria afastar a incidência do IRPF e atrairia a competência dos estados para exigirem o ITCMD. Essa solução de consulta foi criticada, justamente, por desconsiderar as nuances estruturais e jurídicas da figura do trust e adotar uma solução genérica e desconectada da realidade dos instrumentos analisados.
De forma semelhante, a SC COSIT 75/25, ainda que amparada em novo marco legal, reproduz a mesma lógica de simplificação excessiva e - com o perdão do trocadilho - torna turva a transparência criada pela lei 14.754/23. Pauta-se, ao que tudo indica, em uma lacuna legislativa para atribuir a sujeito não previsto em lei o dever de pagar tributo e cumprir com obrigações acessórias.
A interpretação adotada pela Receita Federal desconsidera as particularidades do modelo de trust examinado - inclusive e principalmente a existência de cláusulas suspensivas - e aplica equivocadamente dispositivos legais que exigiriam uma análise contextualizada. Evidencia-se, assim, que, apesar da edição da lei 14.754/23, o tema da tributação dos trusts continua envolto em incertezas relevantes, com baixa aderência às especificidades das estruturas fiduciárias existentes em tantas jurisdições de common law.
Gabriel Paranaguá
Sócio da área Tributária de Felsberg Advogados.
Yuri Junqueira
Advogado da equipe de Planejamento Tributário e Consultoria em Tributos Diretos no escritório Felsberg Advogados.




