A irretroatividade da LC 208/24
Análise sobre a aplicação temporal das novas causas interruptivas da prescrição tributária.
segunda-feira, 30 de junho de 2025
Atualizado às 09:16
1. Introdução
A LC 208/24, publicada em 3/7/24, introduziu significativas alterações no sistema de cobrança de créditos tributários, destacando-se a inclusão do protesto extrajudicial como causa interruptiva da prescrição. Tal inovação suscita questionamentos sobre sua aplicabilidade temporal, especialmente quanto aos créditos tributários com prazo prescricional em curso na data de sua entrada em vigor.
2. A natureza jurídica das normas sobre prescrição
A prescrição, embora produza efeitos processuais, constitui instituto de direito material, conforme pacífica doutrina e jurisprudência. No âmbito tributário, a prescrição não apenas extingue a pretensão processual, mas o próprio crédito tributário, nos termos do art. 156, V, do CTN.
O STF, no julgamento do RE 566.621/RS (Tema 4 de repercussão geral), ao analisar a aplicação temporal da LC 118/2005, firmou entendimento de que "normas que alteram prazo prescricional têm natureza material e sujeitam-se à irretroatividade"1.
Nesse precedente, a Corte Suprema estabeleceu que a lei nova que altera prazo prescricional não pode retroagir para alcançar situações consolidadas sob a égide da legislação anterior.
3. Aplicação temporal da LC 208/24
A LC 208/24, ao instituir nova causa interruptiva da prescrição, modifica substancialmente o regime jurídico da extinção do crédito tributário. Seguindo a lógica do precedente do STF, tal alteração possui natureza material e não pode retroagir para alcançar fatos geradores ocorridos antes de sua vigência.
O art. 105 do CTN é bastante claro ao dispor que "[a] legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes, assim entendidos aquêles cuja ocorrência tenha tido início, mas não esteja completa nos têrmos do art. 116". Por conta disso, já se sabe que o "novo" inciso II do parágrafo único do art. 174 do CTN é aplicável aos fatos geradores posteriores à vigência da norma.
Todavia, o art. 106 do CTN disciplina que a lei tributária só se aplica a ato ou fato pretérito: (1) se a norma for interpretativa (o que não é o caso da LC 208/24, que trouxe nova hipótese de interrupção da prescrição); (2) se esse ato ou fato não estiver definitivamente julgado, e (2.a) quando a lei deixar de o definir como infração, (2.b) quando a lei deixar de o tratar como contrário a qualquer exigência de obrigação acessória, ou (2.c) quando a lei cominar penalidade menos severa que a originalmente prevista.
Nenhuma dessas hipóteses se aplica à LC 208/24, o que reforça a tese de que a nova causa interruptiva da prescrição não pode retroagir para alcançar fatos geradores ocorridos antes de sua vigência.
4. O debate sobre a extensão do prazo prescricional após a interrupção
Para fatos geradores ocorridos após 3/7/24, a LC 208/24 produzirá efeitos significativos na dinâmica de cobrança dos créditos tributários. O Fisco poderá, estrategicamente, utilizar o protesto extrajudicial para ampliar o prazo de cobrança dos tributos definitivamente lançados. Contudo, surge o debate sobre qual seria a extensão desse prazo após a interrupção.
4.1. A tese do prazo integral (10 anos)
Segundo a teoria geral da prescrição, a interrupção faz com que o prazo prescricional recomece a correr por inteiro. Aplicando-se essa regra ao contexto tributário, o protesto extrajudicial realizado no final do quinquênio prescricional faria com que o prazo de cinco anos recomeçasse a correr integralmente, possibilitando que o Fisco disponha de até 10 anos para a cobrança do crédito tributário (5 anos até o protesto + 5 anos após).
Esta interpretação encontra respaldo na jurisprudência do STJ, que tem entendimento pacificado de que, nas hipóteses de interrupção da prescrição previstas no CTN, o prazo recomeça a correr por inteiro (REsp 1.120.295/SP, REsp 1.340.553/RS).
Assim, bastará que a Fazenda Pública realize o protesto extrajudicial poucos dias antes do aperfeiçoamento do lustro prescricional para que o prazo seja integralmente reiniciado, permitindo que a cobrança se estenda por até uma década após a constituição definitiva do crédito tributário.
4.2. A tese do prazo reduzido (7,5 anos)
Em contraponto, há doutrinadores que defendem que o prazo após a interrupção deveria ser reduzido. Sérgio Grama e Bruno Romano2 sustentam que, após o protesto extrajudicial, o prazo prescricional recomeçaria pela metade, ou seja, dois anos e meio, totalizando 7,5 anos (5 anos até o protesto + 2,5 anos após).
Essa tese baseia-se na aplicação analógica do art. 9º do decreto 20.910/1932, que prevê que a prescrição interrompida recomeça a correr "pela metade do prazo" para ações contra a Fazenda Pública. Os autores argumentam que a aplicação do prazo integral violaria o princípio da segurança jurídica, pois sujeitaria os contribuintes a uma extensão excessiva do prazo de cobrança.
4.3. Análise crítica
Embora a tese do prazo reduzido apresente argumentos baseados em princípios constitucionais relevantes, ela carece de respaldo legal específico e jurisprudencial. O CTN não estabelece qualquer redução do prazo prescricional após sua interrupção, e a aplicação analógica do decreto 20.910/1932 é questionável, pois este regula a prescrição de ações contra a Fazenda Pública, não de ações propostas pela Fazenda.
Ademais, a jurisprudência consolidada dos tribunais superiores aponta para a aplicação do prazo integral após a interrupção da prescrição, o que torna a tese dos 10 anos tecnicamente mais sólida, ainda que mais gravosa ao contribuinte.
5. Conclusão
Diante da natureza material das normas sobre prescrição e dos precedentes vinculantes dos tribunais superiores, conclui-se que a nova causa interruptiva da prescrição introduzida pela LC 208/24 (protesto extrajudicial) não pode retroagir para alcançar fatos geradores ocorridos antes de sua vigência, tampouco modificar o regime jurídico de prazos prescricionais já em curso.
Para fatos geradores futuros, contudo, a LC 208/24 representa uma significativa ampliação do poder de cobrança do Fisco. Embora haja debate doutrinário sobre a extensão do prazo após a interrupção (se 5 anos completos ou 2,5 anos), a interpretação tecnicamente mais sólida, baseada na teoria geral da prescrição e na jurisprudência consolidada, é a de que o prazo recomeça a correr por inteiro, permitindo que a cobrança se estenda por até 10 anos.
Este cenário evidencia a necessidade de que o Poder Judiciário, ao interpretar a aplicação da LC 208/24, estabeleça limites à utilização sucessiva ou abusiva do protesto extrajudicial como mecanismo de perpetuação da cobrança tributária, em observância aos princípios da razoabilidade e da segurança jurídica.
___________
1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 566.621/RS. Relatora: Min. Ellen Gracie. Julgamento: 04/08/2011. DJe: 11/10/2011.
2 GRAMA, Sérgio; ROMANO, Bruno. O novo prazo prescricional em matéria tributária. Consultor Jurídico, 7 jul. 2024.


