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Quem julga importa? A revisão judicial da regulação administrativa

Até que ponto os rumos da regulação dependem do comportamento dos juízes? Uma defesa da análise empírica da revisão judicial da atividade regulatória.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Atualizado às 13:14

A atuação das agências reguladoras é respaldada em autonomia técnica para supervisionar setores de alta complexidade, mas não escapa do controle judicial inerente ao sistema de freios e contrapesos (checks and balances) do Estado Democrático de Direito brasileiro.

A possibilidade de revisão judicial dos atos administrativos, garantida pela cláusula constitucional de inafastabilidade da jurisdição, é vista por alguns como benéfica na prevenção de captura regulatória e na melhoria da qualidade da regulação1.

No entanto, há vozes que alertam para o risco de o grau de amplitude da revisão judicial prejudicar a efetividade da regulação e a segurança jurídica que lastreou a própria criação das agências reguladoras2.

Embora beire a utopia imaginar um cenário teórico que estabeleça critérios objetivos de balizamento da atuação judicial3, a academia, de forma incipiente, passou a realizar pesquisas para apuração dos contornos da atmosfera de tensão entre o Judiciário e as agências reguladoras.

Houve tentativa de análise comportamental dos ministros do STF por pesquisa publicada em 20204, mas foi constatado que o escasso espaço amostral de julgamentos da pesquisa inviabilizou conclusões assertivas.

Este artigo propõe uma metodologia, a partir da reavaliação sobre o comportamento dos membros do STF na comparação entre o julgamento de dois cases específicos envolvendo regulação da Anvisa implementada por uma mesma RDC, a 14/12.

Ao delimitar o objeto de avaliação desses dois casos, espera-se mitigar, na medida do possível, variáveis exógenas que eventualmente possam interferir no resultado comportamental dos ministros, buscando entender se é possível aferir, a partir dessa metodologia, conclusões mais assertivas do que as encontradas na pesquisa publicada em 2020, retro referenciada.

O STF, no julgamento da ADIn 4.874/DF5, finalizado em fevereiro de 2018, partindo da teoria da deferência administrativa, reconheceu a legitimidade de restrições à publicidade para a proteção de interesses coletivos, afastando o argumento relacionado à livre iniciativa, ao julgar improcedente a ADIn que questionava a RDC 14/12, proibitiva de aditivos químicos em cigarros.

Participaram do julgamento colegiado os ministros Rosa Weber, Edson Fachin, Lewandovski, Celso de Mello e Carmen Lucia, que votaram pela constitucionalidade da RDC 14/12, enquanto Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Marco Aurélio votaram pela inconstitucionalidade do ato de regulação.

Assim, em acirrada votação (5x5), a ação foi julgada improcedente, sem efeitos vinculantes e erga omnes, em razão da falta de atingimento do quorum previsto no art. 97 da CF, a significar que a RDC poderia vir a ser novamente discutida, em sede de controle difuso, quanto à sua legitimidade constitucional.

Foi justamente isso que aconteceu, tendo sido reavivada a discussão em meados de 2023 pelo Supremo, que reconheceu a repercussão geral da matéria no RE com agravo 1.348.238 RG/DF (Tema 1.252 da repercussão geral)6.

O E. relator, Dias Toffoli, contrariando a posição que havia adotado no julgamento da ADIn 4.874, proferiu voto propondo a fixação de tese que confere legitimidade à atuação da Anvisa na edição da RDC 14/12. Edson Fachin manteve a posição adotada na ADIn, acompanhando o relator.

O ministro Alexandre de Moraes pediu vista dos autos e, em fevereiro deste ano, proferiu voto divergente alinhado ao posicionamento que já havia adotado no julgamento da ADIn, propondo a tese de que a RDC é inconstitucional, com amparo em interpretação que privilegia o princípio da legalidade e a autonomia privada.

O julgamento virtual foi retomado em 13/6/24 e perdurará até 24 de junho.

De acordo com informações apuradas em 16/6/257, data de elaboração deste estudo, os ministros que haviam proferido seus votos não os modificaram. Acompanharam a divergência instaurada por Alexandre de Moraes os ministros Luiz Fux e Gilmar Mendes. O ministro Barroso se declarou suspeito e o ministro Cristiano Zanin pediu vista dos autos. Passa-se, a seguir, à análise crítica dos votos e à identificação de padrões decisórios.

A partir dos elementos levantados, é possível inferir que, ainda que metade do STF tenha adotado posicionamento mais intervencionista quando do julgamento da ADIn 4.874 no ano de 2018, a matéria foi ressuscitada em 2023, no julgamento do Tema 1.252, em sede de repercussão geral, em uma Corte composta por integrantes diversos da primeira.

Além disso, observa-se que, no julgamento da (in)constitucionalidade da RDC 14/12, partindo do controle concentrado para o difuso, houve uma variável relevante: a alteração de posicionamento expressa e deliberada constante do voto do ministro Dias Toffoli no julgamento do Tema 1.252.

A análise dos votos proferidos pelo ministro revela uma diferença fundamental: no caso mais recente, há evidentemente maior densidade de argumentação jurídica, assim como referência a elementos técnicos trazidos pelo Ministério da Saúde datados de 2023, antes inexistentes, para amparar a conclusão do ministro pela deferência administrativa.

Dos cinco ministros que haviam votado pela constitucionalidade da RDC 14/12, apenas dois (Carmen Lucia e Edson Fachin) remanescem como integrantes da Corte. Já dos cinco que votaram em posição contrária, quatro permanecem votantes (Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Dias Toffoli e Gilmar Mendes), mas um deles (Dias Toffoli) alterou seu posicionamento, filiando-se à primeira corrente.

Quanto aos demais membros do plenário, especificamente em relação ao tema da regulação da Anvisa por meio da RDC 14/12, o ministro Barroso se declarou suspeito e não há notícias dos entendimentos dos ministros Flavio Dino, Nunes Marques, Cristiano Zanin e André Mendonça.

A comparação entre os julgamentos da ADIn 4.874/DF e do Tema 1.252 da repercussão geral permite lançar luz sobre o comportamento decisório de parte dos ministros do STF em matéria de revisão judicial da regulação implementada pela RDC 14/12 da Anvisa.

Ainda que a amostra examinada seja restrita, o recorte adotado - dois casos envolvendo a mesma resolução regulatória - permitiu mitigar variáveis externas e isolar, ao menos em parte, os elementos que compõem a atuação judicial frente à revisão da regulação.

A variável relativa à alteração de posicionamento do ministro Dias Toffoli entre os dois julgamentos avaliados, por exemplo, sugere que o nível de profundidade do debate jurídico e técnico apresentado no processo pode exercer papel relevante na revisão da convicção judicial, o que aproxima a atuação do julgador de uma racionalidade mais deliberativa e menos apriorística.

Além disso, identificou-se certa estabilidade entre os votos de ministros que compõem o que poderia se denominar, com cautela, de correntes de interpretação mais intervencionistas ou mais liberalistas da atuação do Estado regulador, ainda que o julgamento do Tema 1.252 ainda não tenha sido concluído.

No entanto, não se fez possível, a partir da análise restrita a dois julgados, revelar se há indícios de que o perfil individual dos julgadores e os comportamentos por eles adotados têm potencial de influenciar a extensão da deferência conferida às decisões técnicas das agências.

Embora o número de casos analisados não autorize generalizações categóricas, os dados colhidos permitiram inferir a importância da qualificação técnica do debate judicial, assim como a existência de espaço para o avanço de pesquisas empíricas que considerem o comportamento dos julgadores como variável relevante na previsibilidade da revisão judicial regulatória.

A superação da indeterminação apontada por estudos anteriores pode ser atingida, gradualmente, com a continuidade de análises empíricas individuais como a aqui proposta, a serem posteriormente comparadas entre si, com vistas à construção de um modelo mais transparente e confiável de controle judicial da atividade regulatória no Brasil.

______________

1 Maranhão, Juliano Souza de Albuquerque. A revisão judicial de decisões das agências regulatórias: Jurisdição Exclusiva? in O Judiciário e o Estado Regulador brasileiro / Mariana Mota Prado (Organizadora). - São Paulo: FGV Direito SP, 2016. 260 p. - (Coleção Acadêmica Livre);

2 Wang, Daniel W. L., Bonacorsi de Palma, Juliana and Gama e Colombo, Daniel (2010) Revisão judicial dos atos das agências reguladoras: uma análise da jurisprudência brasileira. In: Schapiro, Mário Gomes, (ed.) Direito Econômico Regulatório. Saraiva, São Paulo, Brazil, pp. 269-328. ISBN 9788502092792;

3 VERISSIMO, Marcos Paulo, "Controle judicial da atividade normativa das Agências Reguladoras". In: ARAGÃO, Alexandre Santos de. O poder normativo das Agências Reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006;

4 JORDÃO, Eduardo; CABRAL JR., Renato Toledo; BRUMATI, Luiza. O STF e o controle das leis sobre o regime jurídico das agências reguladoras federais. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 7, n. 2, p. 549-600, maio/ago. 2020. DOI: 10.5380/rinc.v7i2.68568;

5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4874, Relator(a): ROSA WEBER, Tribunal Pleno, julgado em 01-02-2018;

6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 1348238 RG, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 02-06-2023; 7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Sessão virtual. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6262831.

Michel De Cesare

VIP Michel De Cesare

Procurador do Ilhabelaprev. Membro da Comissão de Direito das MPEs da OAB/SP. Especialista em Direito Tributário. Cursando especialização em Direito Administrativo.

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