Big techs e responsabilidade civil por conteúdos de terceiros
Breves reflexões críticas sobre a corrente majoritária que se forma no STF a partir da teoria tridimensional do Direito e do princípio da separação de poderes.
domingo, 22 de junho de 2025
Atualizado em 20 de junho de 2025 13:29
Faz muito tempo que ouvi uma frase do grande constitucionalista Daniel Sarmento, que nunca mais saiu da minha cabeça: "o fato de eu não gostar de uma lei não quer dizer que ela seja inconstitucional".
Àquela época, isso soou como uma música agradável aos meus ouvidos. Não entendi o motivo. Talvez, porque um jovem estudante de Direito ainda não tinha clareza da importância dessa frase para o exercício do controle de constitucionalidade de normas e para a própria harmonia e independência entre os poderes da República.
Infelizmente, tem-se visto, de forma mais comum, o uso duvidoso de princípios para adaptar escolhas legislativas à vontade ou à concepção do juiz - o conhecido e inconstitucional voluntarismo judicial -, considerando sua visão a respeito do alcance e da extensão de determinado princípio jurídico-constitucional.
Sob o ponto de vista daquela frase, busca-se trazer breves reflexões a respeito do julgamento dos REs 1.037.396 (Tema 987) e 1.057.258 (Tema 533), quanto à constitucionalidade do regime jurídico de responsabilidade civil dos provedores de internet por conteúdo de terceiros.
Adianto duas observações importantes. Primeira, o uso da frase, como base de raciocínio destas breves reflexões, não permite concluir que este articulista não gosta do atual regime jurídico de responsabilidade civil de provedores de internet por conteúdos de terceiros. Segunda, a presente análise não reflete a opinião da instituição à qual pertence este articulista, mas apenas denota a sua opinião acadêmica sobre o assunto.
Pois bem. O marco civil da internet estabelece, em seus arts. 18 a 21, o regime jurídico de responsabilização cível de provedores de internet por conteúdos de terceiros. Antes de falar em si do regime legal vigente, vale relembrar o seguinte.
A regra do Direito brasileiro ainda se embasa na teoria subjetiva, de acordo com a qual somente se pode responsabilizar civilmente alguém, se comprovada a conduta, o dolo ou a culpa, o nexo causal e o dano. Excepcionalmente, afasta-se a necessidade de comprovação do dolo e da culpa. Trata-se da teoria objetiva da responsabilidade civil.
A sua existência é feita por uma escolha legislativa expressa (art. 931 do Código Civil) ou com base numa cláusula genérica diretamente atrelada ao risco que uma determinada atividade expõe à sociedade. É a teoria do risco da atividade, baseada nos Códigos Civis italiano e alemão.
De acordo com ela, a depender da extensão do risco da atividade, não há mais necessidade de prova do dolo ou da culpa na concorrência ao dano a outrem, uma vez que faz parte do risco da atividade a presunção que, dos seus impactos negativos, existe um potencial dever de indenizá-los, mesmo que não desejado pelo agente que causou o potencial dano. Essa lógica encontra-se expressa no art. 927, parágrafo único, do Código Civil brasileiro.
A obrigação de indenizar adviria da não observância de alguns deveres diretamente atrelados à busca de diminuição ou extirpação de impactos negativos dos riscos da atividade cível ou empresarial. São exemplos: o dever de informação, o dever de cuidado, o dever de segurança, o dever de aperfeiçoamento tecnológico e outros mais.
A meu ver, os provedores de internet estariam sujeitos à teoria do risco da atividade para fins de responsabilização cível por conteúdos de terceiros, já que o escopo de sua atividade é a ampliação de usuários cadastrados nas plataformas para troca de experiências e, por óbvio, venda de produtos e de serviços para o preenchimento da necessidade de cada usuário.
Os provedores de internet possuem interesse na análise do comportamento e dos dados pessoais de cada um dos usuários. Ferramentas de inteligência artificial possibilitam o melhor funcionamento de algoritmos para a entrega de conteúdos de interesse de cada um dos usuários, sobretudo quando são remunerados para a ampliação da divulgação do conteúdo (impulsionamento/gestão de tráfego pago de postagens).
Nada obstante ser lógica a aplicação da incidência da teoria do risco de responsabilização civil a provedores de internet, certo é que cabe ao Poder Legislativo e ao Executivo, no devido processo legislativo, expressamente decidirem qual teoria de responsabilização regulará o regime jurídico dos provedores e em que extensão haverá a incidência da teoria do risco.
Essa decisão foi tomada pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo, quando da aprovação e sanção do marco civil da internet. De acordo com o art. 18 do marco civil da internet, a regra é que os provedores não serão responsabilizados por conteúdos de terceiros. Quer-se dizer: o legislador foi claro em afastar os deveres anexos à responsabilidade civil dos provedores de internet quanto ao conteúdo de terceiros.
Existem duas exceções previstas na mencionada lei. A primeira disposta no art. 19, de acordo com o qual os provedores de internet somente responderão civilmente por conteúdos de terceiros, caso exista uma ordem judicial de retirada do conteúdo e o provedor não a cumprir. A segunda, no art. 21, segundo o qual há responsabilidade subsidiária dos provedores quanto a conteúdos violadores da intimidade, após não adoção de providências cabíveis para exclusão do conteúdo, quando devidamente notificados, o que pode se dar de forma extrajudicial.
A escolha do legislador foi: (i) estabelecer como regra a exclusão da responsabilidade dos provedores de internet por conteúdo de terceiros, já que não se trata de conduta imputável a eles, mas sim a outrem e (ii) fixar a responsabilização dentro de sua conduta a partir do não cumprimento de ordem judicial ou de não adoção de providências para preservar a intimidade do agente prejudicado, quando devidamente notificada, inclusive de forma extrajudicial.
O legislador afastou a teoria do risco da atividade, mantendo-se, porém, a teoria da responsabilização objetiva, já que desnecessário perquirir o dolo ou a culpa, sendo suficiente a omissão em não cumprir a contento a ordem judicial ou o pedido da parte lesada. O afastamento da teoria do risco da atividade não gera necessariamente uma proteção deficiente ou insuficiente ao direito de propriedade (patrimonial ou extrapatrimonial) ou ao direito à intimidade, bem como qualquer outro valor, direito ou garantia constitucional.
Há de se rememorar que, de acordo com a grande constitucionalista Ana Paula de Barcellos ("a eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana"), o espaço de proteção de princípios e de direitos fundamentais não é inflexível, mas sim sujeito a nuances de variação, cuja escolha incumbe prioritariamente ao legislador dentro do que possibilita o texto expresso da Constituição.
Quer-se dizer: determinada garantia ou específico direito fundamental, enquanto princípio ou valor jurídico, pode ser objeto de proteção na medida da escolha do legislador, desde que não vá contra o ou aquém do texto expresso na Constituição.
Esse raciocínio alia-se perfeitamente à frase "o fato de eu não gostar de uma lei não quer dizer que ela seja inconstitucional", uma vez que somente é possível falar em proteção deficiente quando o legislador viola expressamente direitos ou garantias fundamentais ou quando há clara violação do sentido finalístico da norma constitucional.
Por exemplo, a Constituição garante que conversas privadas por cartas sejam preservadas pela cláusula da inviolabilidade da intimidade e da reserva de jurisdição. Quando do advento da Constituição, não existiam aplicativos eletrônicos de mensagens instantâneas ou celulares. Será que o comando constitucional deixaria de preservar essas conversas em aplicativos eletrônicos?
A resposta é peremptoriamente negativa. A vontade do constituinte foi proteger a intimidade. Dessa forma, não poderia o legislador editar norma excepcionando a inviolabilidade da intimidade e afastando a necessidade de decisão judicial para quebrar essa garantia fundamental, a fim de o Estado ter acesso ao celular ou a conversas privadas eletrônicas.
Essa noção, entretanto, não pode ser, com todo o respeito, estendida para o caso do regime de responsabilização dos provedores de internet. O regime de responsabilidade civil de pessoas privadas não se encontra na constituição.
O que há na Constituição são garantias e direitos fundamentais, cujo potencial conflito impõe um hard case interpretativo. Diante de hard cases, o Poder Judiciário, data maxima venia, deve seguir um caminho necessário para a análise do controle de constitucionalidade das normas, qual seja: (i) houve uma decisão política (legislativa) expressa?; (ii) em havendo essa decisão, houve uma violação frontal a direito ou garantia fundamental? Foi contrária à própria finalidade da norma? Ou, protegeu de forma deficiente o sistema de direitos e garantias fundamentais?
Essas são as perguntas necessárias para se concluir se houve, ou não, a proteção deficiente, enquanto princípio derivado da proporcionalidade, para declarar determinada norma inconstitucional ou indicar que a sua omissão gera um estado de inconstitucionalidade interpretativa ou a partir de sua aplicação normativa.
Em nenhum momento, quando da edição do marco civil da internet, presumiu-se ou visualizou-se essa proteção deficiente. O que se viu, no caso do marco civil da internet, é que fatos futuros ao seu advento causaram uma noção de suposta deficiência na proteção de alguns valores, princípios, garantias ou direitos constitucionais pelo Poder Judiciário, haja vista a existência de conteúdos de terceiros em divulgação massiva de notícias de teor duvidoso ou falso, de convencimento a vulneráveis na adoção de condutas contrárias à sua própria integridade ou à vida (crianças, adolescentes e idosos, principalmente) e de outros casos complexos e potencialmente violadores de direitos fundamentais.
Ora, com todo o respeito, a visualização de que há um suposto vácuo de aplicação de determinado ato normativo, por conta de tais conteúdos de terceiros, gera a necessidade de incidência da famigerada teoria tridimensional do direito (fato, valor e norma). Segundo ela, surge um fato social que poderá ser valorado pelas autoridades políticas, as quais editarão, se for o caso, normas para regular a vida em sociedade.
Em nenhum momento, a teoria tridimensional do direito possibilita que, diante de novos fatos a partir da vigência da norma, o Poder Judiciário tenha a competência e a capacidade institucional de declarar a inconstitucionalidade por omissão do ato normativo para sanar suposta omissão normativa.
O regime constitucional do saneamento de omissão inconstitucional é fincado em duas possibilidades: (i) imputar a mora legislativa ou normativa ao Congresso Nacional ou ao Poder Executivo e (ii) como ato sequencial, em caso de omissão reiterada, pode o Judiciário determinar a aplicação analógica de normas jurídicas, desde que o seja para viabilizar a aplicabilidade de direitos fundamentais. No caso da responsabilização de provedores de internet, com todo o respeito, existem dois impedimentos para considerar que houve omissão do Congresso Nacional.
O primeiro é de que diversos projetos de lei estão em debate em ambas as Casas do Congresso Nacional para alterar, por exemplo, o regime de responsabilização cível dos provedores de internet acerca de proteção de crianças e de adolescentes ou de conteúdos de violação à intimidade sexual não consentida entre pessoas com capacidade civil. O maior exemplo é o PL 2.628/22 aprovado pelo Senado e que está em amplo debate na Câmara dos Deputados, com audiências públicas realizadas na Comissão de Comunicação.
Quer-se dizer: os atores políticos estão valorando os fatos para editar a norma jurídica que reputam mais adequada, dentro de suas atividades precípuas na sistemática da separação de poderes (função legiferante). A valoração de fatos pelo sistema político democrático exige tempo, paciência e cuidado de análise, uma vez que são editadas normas gerais com impactos sociais e econômicos para serem mantidas por um grande período de tempo de vigência. A celeridade ou a rapidez não combinam com o devido processo legislativo.
O segundo diz respeito ao fato de que, mesmo havendo mora do Parlamento (caso não tivesse nenhum debate de mudanças do regime jurídico de responsabilização civil dos provedores de internet, o que não é o caso), o Poder Judiciário não pode, com todo o respeito, justificar a omissão para criar hipóteses de exceção ao regime jurídico estabelecido pelo marco civil da internet.
Pois, os direitos e as garantias fundamentais estão corretamente protegidos pelo marco civil da internet por um iter em que se exige, ou uso de processos judiciais para a retirada de conteúdos de terceiros - e, em caso de descumprimento da ordem judicial, a responsabilização dos provedores -, ou atendimento a notificação extrajudicial para retirada de conteúdos violadores da intimidade, sob pena de a omissão ensejar a responsabilização.
O legislador não se omitiu quanto ao regime de responsabilização. Apenas exigiu requisitos ou um iter diferente de situações potencialmente similares, a fim de atender a direitos e garantias fundamentais na Constituição, tal como a liberdade de expressão. Essa escolha não é desarrazoada ou promove uma proteção deficiente de direitos fundamentais.
É uma escolha legítima dentro da liberdade de conformação do legislador para regular normas constitucionais ou outros fatores não previstos diretamente no texto constitucional, mas importantes para o regramento da vida em sociedade, como é o caso de regime de responsabilização cível por atos de terceiros.
Assim, não haveria motivo para estabelecer que houve uma omissão sistemática e reiterada no regime de responsabilização cível, por suposta proteção deficiente, pois pensar dessa forma é o mesmo que permitir a ideia de inconstitucionalidade superveniente por mudança de situação de fato. E mais: é relegar a valoração de fatos novos a quem não detém competência constitucional, haja vista que somente atores políticos (legislativo e executivo) podem assim agir pela teoria tridimensional do direito.
Com todo o respeito, se há necessidade de uma atualização acerca do regime de responsabilização civil por conteúdos de terceiros no marco civil da internet, a decisão cabe, na sistemática da separação de poderes, ao Poder Legislativo e ao Poder Executivo dentro do devido processo legislativo, e não ao Poder Judiciário em sede de controle de constitucionalidade.
Fica, então, com todo respeito, a exortação para que, no controle de constitucionalidade, a frase "o fato de eu não gostar de uma lei não quer dizer que ela seja inconstitucional", do professor Daniel Sarmento, seja mais lembrada para evitar o voluntarismo judicial, o atropelo ao equilíbrio da separação de poderes e permitir a manutenção da função precípua de cada um dos Poderes da República.


