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Lições de Rui Barbosa para a Justiça de hoje

Uma releitura da "Oração aos Moços" para os desafios do século XXI: Sobre a coragem da toga, a ética na advocacia e o dever de julgar com independência.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Atualizado às 08:46

Poucos textos na história do pensamento jurídico brasileiro envelheceram com a dignidade e a assombrosa pertinência da "Oração aos Moços" de Rui Barbosa. Redigida em 1921 para os formandos da Faculdade de Direito de São Paulo, a peça transcende as formalidades de um discurso de paraninfo para se firmar como um espelho no qual as virtudes e os vícios da nossa prática forense são refletidos com implacável clareza. Mais do que uma relíquia, as palavras do Águia de Haia funcionam como um preciso diagnóstico de enfermidades que, embora centenárias, ainda acometem o corpo da Justiça brasileira. Relê-lo não é um ato de arqueologia literária, mas um diálogo com um interlocutor que, com espantosa lucidez, antecipou os dilemas da advocacia e da magistratura no século XXI.

Um dos clamores mais pungentes e atuais de Rui é contra a morosidade, essa patologia endêmica do nosso sistema. Em uma era em que o CNJ se esforça para implementar metas de produtividade e gerir um acervo de dezenas de milhões de processos, a advertência de Rui soa como um editorial de hoje: "justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta."1. Ele não se limita ao diagnóstico; ele detalha a consequência, afirmando que a dilação indevida nas mãos de um julgador "lesa no patrimônio, honra e liberdade."2. Essa tríade é a tradução exata do sofrimento contemporâneo: a empresa que espera anos por uma sentença e vai à falência (patrimônio); o cidadão que tem sua reputação manchada por um processo que se arrasta (honra); e o indivíduo que aguarda uma decisão sobre sua condição de ir e vir (liberdade). A crítica de Rui aos "juízes tardinheiros", cujos autos dormitam em "sonos esquecidos", é um contraponto essencial à visão puramente eficientista: a busca por celeridade não pode atropelar o tempo da reflexão, mas a procrastinação, para Rui, já é, em si, uma forma de violência e denegação do direito.

Outro ponto de contato direto com a advocacia contemporânea, especialmente a publicista e tributarista, é sua ácida crítica aos magistrados que, por sistema, pendem para o lado do Estado. Rui os rotula, usando um termo da época, de "fazendeiros"3, denunciando a presunção de que o poder público tem sempre razão contra o cidadão. Sua análise da assimetria de poder é cirúrgica. Ele argumenta que, se alguma presunção devesse existir, seria a contrária, pois o Estado é a entidade "que mais abunda em meios de corromper" e que exerce as "perseguições, administrativas, políticas e policiais". Essa percepção dialoga diretamente com a existência, ainda hoje, dos privilégios processuais da Fazenda Pública, como prazos dilatados e o regime de precatórios, que institucionalizam o desequilíbrio que Rui condenava. Sua lição é de que a toga não pode ser uma extensão do poder administrativo; ao contrário, seu dever redobra de escrúpulo justamente ao lidar com os direitos dos "mais miseráveis dos homens", pois são estes os que menos voz e recursos possuem contra a formidável máquina estatal.4

A crise de legitimidade do sistema político, que hoje alimenta debates sobre ativismo judicial e o papel do Judiciário como legislador positivo, também foi antevista por Rui. Ele defende, com base socrática, que uma lei imposta por uma minoria, sem o consentimento popular, "não será, também, violência, e não lei?"5. Ao aplicar essa tese ao Brasil de seu tempo, governado por oligarquias, conclui que o país, em sentido estrito, não possuía lei legítima. Essa reflexão convida a pensar sobre o papel da Justiça em um cenário de descrédito do processo legislativo. Quando o Judiciário é chamado a mediar as grandes questões nacionais, intervindo em temas sensíveis que o Congresso se omite em regular, não estaria ele, em parte, preenchendo o vácuo deixado por uma "lei" que, na visão de Rui, nasce enferma? A questão é complexa, pois a mesma Constituição que estabelece a separação de poderes também instituiu um Judiciário forte como seu guardião, especialmente no modelo de inspiração norte-americana que Rui tanto prezava, onde à justiça cabe fulminar as leis ordinárias que colidam com a lei maior.6

Em meio a esse cenário, Rui exige do magistrado uma postura que beira o sobre-humano. A coragem é um pilar de sua ética judicial. O bom juiz, para ele, "tem muito de heróico em si mesmo", devendo ser imune ao medo das soberanias da Terra, sejam elas "a do povo, nem a do poder."7. Em tempos de extrema polarização política, onde magistrados são alvos de pressão e ataques em redes sociais, essa convocação para uma independência rígida e serena é mais vital do que nunca. Esse heroísmo, contudo, não se manifesta apenas nos grandes embates contra os poderosos. Ele se revela no cotidiano: na recusa em cortejar a popularidade, na decisão que contraria o clamor das ruas, na imparcialidade ao julgar sem se importar com o "poderio, opulência e conspicuidade" das partes. O juiz que enfrenta os governos com dignidade, segundo Rui, acaba por fascinar e impor respeito, garantindo que a autoridade do cargo não se dobre "às exigências de nenhuma potestade humana."8

Para a advocacia, a mensagem é igualmente poderosa e desafiadora. Rui Barbosa via a profissão não como um negócio, mas como uma "espécie de magistratura", uma forma de "justiça militante."? Sua advertência contra a comercialização da profissão é, talvez, sua lição mais urgente para os advogados de 2025. A máxima "Não fazer da banca balcão, ou da ciência mercatura"10 é um chamado à nobreza do múnus. Advogar, para Rui, é "servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade"11, sem jamais "quebrar da verdade ante o poder".12

Ademais, Rui ressalta um dever fundamental que ecoa fortemente nos dias de hoje: a defesa das causas impopulares. O advogado não deve se subtrair "à defesa das causas impopulares, nem à das perigosas, quando justas."13. Esse é o cerne do direito de defesa. Em uma sociedade midiatizada, onde o julgamento público precede o judicial, os advogados de defesa, especialmente na esfera criminal, são frequentemente confundidos com seus clientes e seus supostos crimes. A lição de Rui é um lembrete de que a garantia de uma defesa técnica e destemida para todos, independentemente da acusação que sobre eles pese, é um pilar da civilização e um dever ético inalienável do advogado.

Até mesmo em seus conselhos mais pessoais, Rui dialoga com o profissional moderno. Sua defesa da disciplina do estudo, personificada no hábito de madrugar para trabalhar14, não é apenas uma dica de produtividade. É um antídoto para a cultura da distração e do burnout. Rui distinguia o "saber aparente", que apenas armazena informação, do "saber de realidade", que a transforma em ideias próprias por meio da reflexão. A disciplina de antecipar o dia cria o silêncio necessário para essa transmutação. Em um mundo de notificações incessantes e sobrecarga de dados, a imagem do jurista que dedica as "primícias da manhã"15 ao pensamento concentrado é um convite à redescoberta do foco, da profundidade intelectual e da verdadeira sabedoria.

Revisitar a "Oração aos Moços" não é, portanto, um exercício de nostalgia. É uma consulta profissional. Rui Barbosa oferece um arcabouço ético robusto para enfrentar os dilemas de hoje: a lentidão da máquina judiciária, a relação assimétrica entre cidadão e Estado, a crise de legitimidade política e a crescente mercantilização da advocacia. Seu chamado final, "Mãos à obra da nossa reconstituição interior", continua a ser a ordem do dia. A obra, afinal, não é para ser apenas admirada, mas vivida, pois, como ele mesmo sentenciou, a salvação não vem de salvadores, mas do esforço de cada um.

_________

1 BARBOSA, Rui. Oração aos moços. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1997, p. 40.

2 Ibid.

3. Ibid., p. 41.

4 Ibid., p. 42-43.

5 Ibid., p. 35.

6 Ibid., p. 37.

7 Ibid., p. 43.

8 Ibid., p. 44.

9 Ibid., p. 46.

10 Ibid.

11 Ibid.

12 Ibid., p. 45.

13 Ibid., p. 46.

14 Ibid., p. 32.

Leonardo Soriano de Souza

Leonardo Soriano de Souza

Associado ao IBCCRIM, integrante do Grupo de Estudos Avançados. Membro do Grupo de Pesquisa da PUC Minas "Mídia e Garantismo Penal".

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