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CV e PCC não são, nem podem ser considerados, grupos terroristas

A pressão externa para classificar CV e PCC como terroristas ameaça a soberania nacional e pode enfraquecer o Estado Democrático de Direito no Brasil.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Atualizado às 13:15

Em 5 de maio último, a delegação norte-americana de David Gamble, chefe interino da Coordenação de Sanções do Departamento de Estado, desembarcou no Brasil para tratar dos programas de sanções dos EUA voltados ao combate ao terrorismo e ao tráfico de drogas. A iniciativa está alinhada à agenda America First1 e visou pressionar o Brasil a classificar como terroristas as organizações criminosas transnacionais brasileiras - citados nominalmente, o CV - Comando Vermelho e PCC - Primeiro Comando da Capital.

Dir-se-ia ser por sorte que o Ministério da Justiça não acatou as preocupações norte-americanas, mas foi a técnica, alinhada à soberania nacional, quem deu as linhas do posicionamento brasileiro. Sem rodeios: seja pela legislação brasileira ou pela compreensão técnica consolidada internacionalmente, complexas e violentas organizações criminosas, como o CV e o PCC, não se enquadram, nem podem se enquadrar, na definição de terrorismo. A distinção fundamental, como bem apontado pelos agentes da SENASP - Secretaria Nacional de Segurança Pública, reside na motivação. Explica-se.

Enquanto o terrorismo, por definição, busca impor terror generalizado para coagir Estados, instituições ou a sociedade civil a aceitar ou se submeter a determinadas pautas de natureza política, ideológica, religiosa, xenofóbica ou discriminatória; as facções criminosas brasileiras em questão têm como telos primordial o lucro, obtido por meio de atividades ilícitas, como o narcotráfico, a lavagem de dinheiro, o roubo e a receptação. Sua violência, por mais brutal e disseminada que seja, não é instrumento para a subversão da ordem estatal com vistas à imposição de um projeto político-ideológico alternativo, mas para a consecução de objetivos econômicos e manutenção de seu poder em territórios específicos. Por mais que alguns atos isolados possam despertar o clamor popular, não é este o objetivo principal das organizações criminosas brasileiras. Ao contrário, preza-se pela discrição para não despertar a atenção das autoridades.

A lei 13.260/16, que tipifica o terrorismo no Brasil, é clara ao exigir, para a configuração do delito, que os atos sejam cometidos por "razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública"2. Esta finalidade específica, o dolo qualificado, não está presente nas ações do CV e do PCC.

Como destaca Ana Isabel Pérez Cepeda, professora de Direito Público da Universidade de Salamanca (ESP), em sua análise sobre o conceito de terrorismo, a legislação brasileira, embora não exija um elemento organizativo formal, é taxativa quanto a essas motivações.3 Assim, tentar enquadrar o CV e o PCC nessa tipificação seria uma perigosa distorção da lei, um exemplo da utilização arbitrária e assimétrica do termo terrorismo, como alerta a autora em outro estudo sobre o fenômeno na atualidade4. Tal deformidade não só abriria o caminho para o Direito Penal excepcional, à aplicação do Direito Penal do inimigo, mas também faria do Brasil mais um exemplo daqueles países que aceitaram a intervenção Trumpista, como El Salvador, com o grupo MS-13 - Mara Salvatrucha, ou a Venezuela, com o Trem de Aragua.

A própria comunidade internacional, apesar da dificuldade em estabelecer uma definição universalmente aceita de terrorismo, tende a convergir na necessidade de um componente político ou ideológico. O relatório EU TE-SAT 2024, da Europol, por exemplo, baseia sua análise na Diretiva (UE) 2017/541, que define infrações terroristas como atos que visam "intimidar gravemente uma população, compelir indevidamente um governo ou organização internacional a realizar ou abster-se de um ato, ou desestabilizar ou destruir gravemente as estruturas fundamentais de um país"5.

As categorias de terrorismo analisadas pela Europol (jihadista, de direita, de esquerda/anarquista, etno-nacionalista/separatista) não abarcam organizações criminosas cujo objetivo é estritamente econômico. A ausência de uma categoria como "crime organizado com táticas terroristas" no TE-SAT, a menos que haja uma motivação ideológica explícita, é sintomática dessa distinção fundamental.

GTI - Global Terrorism Index 2024, embora aponte para correlações e convergências entre crime organizado e terrorismo em certas regiões, como o Sahel (região entre o deserto do Saara, ao norte; a savana do Sudão, ao sul; o oceano Atlântico, a oeste; e ao mar Vermelho, a leste), trata-os como fenômenos distintos com dinâmicas próprias.6 O GTI ressalta que o principal motor do terrorismo é o "conflito violento" e que, embora o terrorismo tenha um impacto psicológico único, ele não é a forma mais letal de violência global.

Classificar CV e PCC como terroristas apenas por sua capacidade de gerar temor seria banalizar o conceito e ignorar as metodologias globais que rastreiam o terrorismo como um fenômeno com características e motivações particulares, distintas do crime organizado tradicional, por mais violento que este seja.

Um exemplo paradigmático que ilustra a natureza do terrorismo com motivação política é o caso da "Masacre de los Jesuitas" em El Salvador, detalhado no informe de Pena González.7. Lá, o aparato estatal foi instrumentalizado para cometer assassinatos com fins eminentemente políticos e ideológicos, visando eliminar opositores e disseminar o terror para manter uma estrutura de poder. Este cenário de "terrorismo de Estado" difere-se abissalmente da atuação do CV e do PCC, que, repita-se, não são agentes estatais nem buscam a tomada do poder para impor uma ideologia através do terror como política governamental.

Equiparar as facções criminosas brasileiras a grupos terroristas não apenas é um erro técnico-jurídico, mas também uma estratégia equivocada de enfrentamento. O combate ao CV e ao PCC demanda "um planejamento estratégico nacional a partir de diretrizes estabelecidas pela União de observância obrigatória pelos demais entes federados"8, tudo dentro do devido processo legal e com respeito aos direitos fundamentais.

A importação de uma lógica de "guerra ao terror" para a segurança pública brasileira seria desastrosa, legitimando práticas de exceção e potencialmente agravando a violência, sem resolver as causas estruturais da criminalidade. Enquanto políticos brasileiros surfarem a onda norte-americana - a qual, vestida de preocupação, na verdade visa ampliar seu poderio deste lado do atlântico - e a utilizarem como arroubos de palanque, não se levará o combate ao crime organizado a sério neste país. As soluções apontadas pelos surfistas são ilusórias e provadamente infrutíferas. O discurso da guerra às drogas, outra história norte-americana9, falhou e falhará à medida de sua continuidade.

O reconhecimento internacional de que o Brasil abriga grupos terroristas pode acarretar sérias consequências para a soberania do país. Primeiramente, essa constatação pode comprometer o princípio da não intervenção, pois a presença reconhecida de organizações terroristas em território nacional serve de justificativa, no discurso internacional, para pressões políticas, econômicas e até mesmo para eventuais intervenções estrangeiras - diretas ou indiretas - sob o argumento de proteção da segurança internacional. Estados estrangeiros e organizações multilaterais, como a ONU, poderiam exigir ao Brasil medidas mais rigorosas de combate ao terrorismo, diminuindo a margem de autonomia e autodeterminação nas decisões internas do país e abalando a reputação brasileira no cenário global.

Além disso, essa situação pode repercutir negativamente em áreas sensíveis da política externa, incluindo restrições comerciais, sanções econômicas (aumento do risco de investimentos e fuga de capital estrangeiro) e limitações na cooperação internacional. Países e organismos internacionais podem impor controles mais rígidos sobre transações financeiras, dificultar o acesso a financiamentos, investimentos e até restringir a circulação de cidadãos brasileiros, afetando diretamente interesses estratégicos nacionais. Em última análise, o comprometimento da soberania ocorre não só pela possibilidade de restrições externas, mas também pela perda de legitimidade e de capacidade do próprio Estado em definir e executar suas políticas de acordo com o interesse nacional, diante da crescente vigilância e condicionamentos impostos pela comunidade internacional.

Precisamos, para ontem, perceber quem está do lado da técnica, quem age com seriedade frente aos problemas enfrentados diariamente pelo povo brasileiro, e quem está do lado da ocasião, que nada nos mares absolutamente sinuosos do discurso fácil e eleitoreiro.

Assim, a intransigente posição de que CV e PCC não são, e nem podem ser classificados como, grupos terroristas, resguarda-se na precisão conceitual, evita a banalização de um fenômeno grave e, fundamentalmente, protege o Estado Democrático de Direito contra soluções fáceis e perigosas que, a pretexto de combater o crime, podem erodir as próprias bases da liberdade e da soberania nacional.

______________

1. President Trump's America First Priorities. Algumas das medidas, em tradução livre: O presidente Trump tomará medidas ousadas para proteger nossa fronteira e as comunidades americanas. Isso inclui acabar com as políticas de captura e soltura de Biden, restabelecer a permanência no México, construir o muro, acabar com o asilo para quem cruza ilegalmente a fronteira, reprimir santuários criminosos e melhorar a verificação e a triagem de estrangeiros. https://www.whitehouse.gov/briefings-statements/2025/01/president-trumps-america-first-priorities/. Acesso em 14.5.2025.

2. BRASIL. Lei 13.260, de 16 de março de 2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista.

3. PÉREZ CEPEDA, Ana Isabel. Concepto de terrorismo (presentación).

4. PÉREZ CEPEDA, Ana Isabel. El fenómeno del terrorismo en la actualidad (presentación).

5. EUROPOL. European Union Terrorism Situation and Trend Report (EU TE-SAT) 2024.

6. INSTITUTE FOR ECONOMICS & PEACE. Global Terrorism Index 2024.

7. PENA GONZÁLEZ, Wendy et alt. Informe sobre la masacre de los jesuitas en El Salvador. Clínica Jurídico-Penal, Facultad de Derecho, Universidad de Salamanca, 2018.

8. Exposição de motivos 00099/2024, MJSP

9. Nesse sentido, recomendamos: A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06, Salo de Carvalho, 8ª ed. rev. e atual, São Paulo, Saraiva, 2016.

João Paulo Orsini Martinelli

VIP João Paulo Orsini Martinelli

Advogado Criminalista, Consultor Jurídico e Parecerista; Mestre e Doutor em Direito Penal pela USP, com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra; Autor de livros e artigos jurídicos; Professor.

Gustavo Bezerra de Oliveira

Gustavo Bezerra de Oliveira

Advogado Criminal; Especialista em Crime Organizado e Corrupção pela Universidade de Salamanca; Membro do NPEPEP (USP); Membro do GEA-IBCCRIM; Articulista na Revista Migalhas; e Associado ao IDDD.

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