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A modulação de efeitos e a fragilização da coisa julgada

A modulação de efeitos e a fragilização da coisa julgada geram insegurança jurídica no Brasil. O artigo analisa inconsistências e propõe parametrização legislativa e critérios justos e previsíveis.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Atualizado às 08:44

1. Introdução: A complexidade e a segurança jurídica em construção

O cenário jurídico-tributário brasileiro é notavelmente complexo e, muitas vezes, gerador de profunda insegurança. As constantes modificações legislativas, a dificuldade no cumprimento das obrigações principais e acessórias, e, sobretudo, a ausência de uniformidade nos critérios de regulamentação dos efeitos das decisões emanadas das Cortes Superiores - STF e STJ -, aliada à desafiadora tarefa de aferir corretamente seus impactos econômicos (em que argumentos do Fisco frequentemente superdimensionam potenciais perdas), cria um ambiente de imprevisibilidade que afeta diretamente contribuintes, empresas e investidores.

No cerne dessa complexidade está a aplicação da modulação de efeitos e a crescente fragilização da coisa julgada por meio de ações rescisórias. Embora idealmente concebidos como instrumentos para a segurança jurídica, esses mecanismos têm sido empregados de maneira que, por vezes, transforma vitórias judiciais em desdobramentos práticos desafiadores, e podem abalar a confiança no Poder Judiciário.

Este artigo analisa as manifestações desses fenômenos em diversos julgados. O objetivo é, de forma construtiva, compreender suas consequências e delinear caminhos para maior segurança jurídica, evitando a repetição de impactos indesejados.

2. A modulação de efeitos: Fundamento, propósito e os desafios de sua aplicação

2.1 Fundamento legal e conceitual

A modulação de efeitos encontra respaldo no ordenamento jurídico brasileiro no art. 27 da lei 9.868/1999, que se refere ao controle concentrado de constitucionalidade, e no art. 927, §3º, do CPC, aplicável à alteração de jurisprudência firme ou de precedente vinculante.

Teoricamente, esses dispositivos permitem que os tribunais restrinjam os efeitos temporais de suas decisões quando existirem "razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social". A ideia original era flexibilizar o "dogma da nulidade" (ex tunc), que presume que uma norma inconstitucional é nula desde sua origem. A aplicação irrestrita desse dogma poderia gerar "impactos abruptos" e grave insegurança, especialmente ao desfazer atos consolidados de boa-fé.

A modulação, portanto, foi concebida como uma exceção, uma "válvula de escape" para mitigar esses impactos e adequar a decisão judicial à realidade social, buscando um equilíbrio entre a necessidade de correção e a manutenção da estabilidade.

2.2 Os desafios da prática: Da exceção à aplicação inconsistente

O que deveria ser um mecanismo excepcional e de aplicação parcimoniosa tem se tornado uma etapa quase rotineira dos julgamentos de grande repercussão, especialmente em matéria tributária. A crítica central, como apontam Rocha e Mendonça (2024), é a percebida falta de critérios objetivos e previsíveis para sua aplicação, tanto nas circunstâncias que a autorizam quanto nos recortes temporais adotados.

Essa inconsistência pode gerar uma "loteria judicial", onde o resultado da modulação (e, consequentemente, quem será beneficiado ou prejudicado) pode depender de fatores que não são totalmente transparentes ou uniformes. Barreto e Gazzaniga (2024) apontam que o STJ tem adotado modulações que, por vezes, parecem "erráticas e aleatórias", indicando a dificuldade em estabelecer uma metodologia consistente.

3. O paradigma do Tema 69: ICMS na base do PIS/Cofins e seus desdobramentos

O julgamento do RE 574.706 (Tema 69), que declarou inconstitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS/Cofins, é um caso central nessa discussão. Embora a decisão de mérito tenha sido uma vitória histórica para os contribuintes em março de 2017, a modulação de efeitos, proferida em maio de 2021, gerou desdobramentos significativos:

  • Retroatividade restrita: A exclusão só valeria a partir de 15/3/17, ressalvando-se apenas as ações judiciais ou administrativas protocoladas até essa data.
  • Tratamento assimétrico aos contribuintes: Essa abordagem criou categorias de contribuintes, beneficiando aqueles que litigaram preventivamente em detrimento dos que aguardaram a pacificação da jurisprudência, como bem detalham Ferreira et al. (s.d.) e Amaral (s.d.).
  • Questionamentos à segurança jurídica: O instituto, concebido para gerar segurança, foi aplicado de modo a restringir direitos, gerando impactos que podem ser vistos como uma forma de validar arrecadações anteriores em favor do Estado, conforme observado por Câmara (s.d.). O Tema 69 foi apenas o ponto de partida para a materialização de uma preocupação ainda maior: a forma como a modulação de efeitos pode fragilizar direitos já reconhecidos e a própria coisa julgada, culminando em autorizações para ações rescisórias movidas pelo Fisco. A dimensão e a complexidade desse cenário, evidenciadas pela repercussão econômica e pelo alcance social do Tema 69, sugerem que a solução para tais impasses transcende o âmbito estritamente judicial, demandando uma participação mais ativa do Poder Legislativo e da sociedade civil (incluindo agentes econômicos e contribuintes).

4. A fragilização da coisa julgada e a litigância rescisória em diversos contextos

A modulação, em vez de pacificar, tem sido a precursora de novos litígios, especialmente por meio de ações rescisórias ajuizadas pelo Fisco contra decisões já transitadas em julgado. Essa prática pode representar um desafio à estabilidade das relações jurídicas e à previsibilidade do sistema.

4.1. As ações rescisórias no contexto do Tema 69

Após a modulação do Tema 69, a Fazenda Nacional iniciou uma ofensiva de ações rescisórias contra contribuintes que haviam obtido sentenças transitadas em julgado favoráveis, permitindo a recuperação de créditos anteriores a 15/3/17. Vital (2025) e Salgado e Sobreira (2024) destacam que essas ações buscavam adequar os julgados à modulação do STF.

O argumento do Fisco, baseado no art. 535, §§ 5º e 8º do CPC, é de que a decisão rescindenda violaria a "nova" norma jurídica estabelecida pelo STF. No entanto, para a doutrina, isso pode desvirtuar a ação rescisória, que exige a violação manifesta de norma jurídica à época da prolação da decisão, e não um entendimento superveniente. A situação ganhou contornos importantes quando o STJ, na sua 1ª turma, sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.245), entendeu por autorizar a PGFN a ajuizar essas ações rescisórias.

Essa decisão, como salientam Salgado e Sobreira (2024), é frequentemente debatida em relação à súmula 343/STF, que visa proteger a coisa julgada quando o entendimento judicial era pacífico à época da decisão rescindenda, mesmo que venha a ser alterado posteriormente.

O impacto prático pode ser significativo: empresas que, de boa-fé, seguiram as regras processuais e tiveram seus direitos reconhecidos em definitivo, viram a estabilidade de suas vitórias questionada, enfrentando a perspectiva de devolver valores já recuperados e incorrer em passivos fiscais inesperados, conforme alerta Brandão (2023). Isso pode gerar desafios à confiança no sistema Judiciário e na proteção conferida pela coisa julgada.

4.2. Universalização da litigância rescisória: IPI na revenda de importados (AR 6.015 STJ)

A discussão sobre a coisa julgada não se restringe ao Tema 69. Bacelo (2021) aponta que o STJ tem analisado precedentes que podem permitir à Fazenda Nacional reverter resultados de processos já encerrados com decisão favorável aos contribuintes, mesmo em temas diversos. Um exemplo é o caso envolvendo a dispensa do recolhimento de IPI na revenda de importados (AR 6.015).

A discussão no STJ, neste caso, focou nas ações coletivas, onde a Fazenda argumenta que a manutenção de decisões favoráveis a toda uma categoria (por meio de sindicatos) poderia confrontar os princípios da isonomia e da livre concorrência para empresas que não se beneficiaram de tais julgados.

Essa argumentação, endossada por ministros como Gurgel de Faria, e aliada por entidades como ABIMAQ e FIESP, demonstra uma nova frente de debate sobre a coisa julgada, sob o prisma do "equilíbrio de mercado", mas que na prática pode gerar desafios à estabilidade das relações jurídicas.

4.3. Flexibilização da coisa julgada pelo STF (Temas 881 e 885)

Em uma abordagem mais ampla, o próprio STF, nos Temas 881 e 885 (RE 949.297 e RE 955.227), firmou entendimento pela possibilidade de flexibilização da coisa julgada em relações jurídicas tributárias de trato sucessivo quando houver mudança de entendimento da Corte.

Embora essa flexibilização venha acompanhada da proteção de princípios como a anterioridade e a noventena, ela representa um ponto de debate relevante para a estabilidade da coisa julgada. Como notado por Brandão (2023), a ministra Rosa Weber, que se opunha à rescisão automática, já não está na Corte, o que pode influenciar futuros julgamentos sobre rescisórias nesse contexto.

5. A volatilidade dos critérios de modulação: Desafios à previsibilidade

A ausência de critérios claros e uniformes na aplicação da modulação de efeitos é uma das maiores fontes de insegurança jurídica. Rocha e Mendonça (2024) destacam a "volatilidade de entendimentos e de marcos temporais" que agrava o cenário, dificultando a previsibilidade para contribuintes e para o próprio Estado.

5.1. A necessidade de consistência nos marcos temporais para a modulação

O Poder Judiciário tem adotado diversos marcos temporais, por vezes sem uma justificativa transparente ou uniforme:

  • Data do julgamento de mérito: Como no Tema 69 (15/3/17 para o ICMS/PIS/Cofins).
  • Data da publicação da ata de julgamento (ou acórdão): Adotado em casos como o do Tema 373 do STJ (REsp 1.144.469), que tratava da inclusão de valores de locação de bens móveis na base de cálculo do PIS/Cofins, e o REsp 1.229.444 (referente ao ISS sobre software). Nesses julgados, a modulação de efeitos foi estabelecida a partir da data de publicação do acórdão, prática que é citada por Rocha e Mendonça (2024) como um exemplo da variedade de marcos temporais adotados.
  • Data de início do julgamento da tese: Em alguns casos, a modulação ressalva apenas quem iniciou a discussão individual antes do início do julgamento do leading case. Um exemplo é o Tema 1.079 do STJ (contribuições do Sistema S), onde o benefício foi restrito às empresas que ingressaram com ação judicial ou administrativa até 25/10/23 (início do julgamento) e obtiveram decisão favorável, mantendo o benefício até a publicação do acórdão.
  • Data de uma decisão anterior relevante: No caso da exclusão do ICMS-ST da base de cálculo do PIS/Cofins (Tema 1.125 STJ), o ministro Gurgel de Faria alterou o marco da modulação para 15/3/17, "casando" com a data do Tema 69 do STF, justificando "evidente identidade entre os casos", como aponta Vital (2024a). Essa harmonização, embora positiva em si, contrasta com outros casos.
  • Data da primeira decisão desfavorável: Em relação à inclusão do TUST/TUSD na base de cálculo do ICMS (Tema 986 STJ), o STJ estabeleceu a modulação a partir de 27/3/17, data da primeira decisão da 1ª turma do STJ que se alinhou com o Fisco, como detalhado por Borges (2024). Contribuintes com liminares anteriores a essa data puderam manter o benefício temporariamente.

5.2. A contradição entre a suspensão processual e os critérios de modulação

É prática comum, tanto no STJ quanto no STF, a determinação de suspensão nacional de todos os processos que versem sobre um tema afetado para julgamento em sede de recursos repetitivos ou repercussão geral. Embora essa medida vise a otimizar a prestação jurisdicional e evitar decisões conflitantes, ela gera uma contradição flagrante em face de certos critérios de modulação adotados.

Em diversos casos de modulação, o benefício ao contribuinte tem sido condicionado não apenas à data de propositura da ação, mas, de forma mais restritiva, à existência de uma decisão favorável nos autos ou à obtenção de uma medida judicial específica até determinada data de corte. Ocorre que, se o processo individual está suspenso aguardando o julgamento do precedente vinculante, torna-se impossível que o contribuinte obtenha uma decisão favorável ou o prosseguimento de sua demanda.

Essa paralisia processual, imposta pelo próprio Judiciário, impede o contribuinte de cumprir uma condição que, em alguns cenários de modulação, é fundamental para o reconhecimento do seu direito. Assim, o sistema, ao mesmo tempo em que paralisa as ações em massa, cria critérios de modulação que se tornam inatingíveis para a vasta maioria dos litigantes, gerando uma injustiça intrínseca e frustrando a expectativa de quem buscou a tutela judicial tempestivamente.

5.3. Inconsistência na autorização da modulação (overruling)

Além de definir o marco temporal (quando), a decisão sobre se aplicar a modulação de efeitos também é complexa. Teoricamente, a modulação se justifica pela 'alteração da jurisprudência dominante' (overruling). Contudo, os próprios conceitos de 'jurisprudência dominante' e o que caracteriza uma 'alteração' são frequentemente objeto de interpretação subjetiva, gerando incerteza e imprevisibilidade.

No caso das subvenções de ICMS (Tema 1.182 STJ), que trata da incidência de IRPJ e CSLL sobre subvenções de ICMS não consideradas créditos presumidos, o STJ rejeitou o pedido de modulação dos contribuintes (Branco, 2024a). Especialistas apontam que, ao contrário do Tema 986 (TUST/TUSD), o Tema 1.182 não representaria uma "virada jurisprudencial" consolidada, mas sim uma "construção de entendimento". Essa distinção, entre "alteração" e "construção", levou à não modulação e, consequentemente, a impactos retroativos desfavoráveis aos contribuintes.

Essa casuística é frequentemente debatida, como apontado por Borges (2024), que observa que "mesmo os fundamentos jurídicos sendo extremamente sólidos, os fatores econômicos têm ocupado lugar de destaque na balança da justiça, mas igualmente têm relativizado, de forma preocupante, a segurança jurídica, pilar de todo e qualquer ordenamento jurídico."

5.4. A teoria da "inconstitucionalidade útil" e os desafios à legalidade

A volatilidade na modulação e a validação de arrecadações passadas, mesmo que indevidas, reforçam a teoria da "inconstitucionalidade útil", cunhada por Ricardo Lobo Torres.

Essa teoria sugere que o Estado pode se beneficiar de normas sabidamente inconstitucionais, pois, ainda que posteriormente declaradas ilegais, a modulação de efeitos (ou a falta de critérios claros para ela) pode preservar uma parcela significativa da arrecadação indevida. Rocha e Mendonça (2024) abordam essa questão, argumentando que a prática permite que "necessários ajustes fiscais podem vir por normas sabidamente irregulares, com vistas a permitir um imediato efeito arrecadatório".

6. Os impactos práticos nos contribuintes e na economia

6.1. Potenciais desigualdades e distorções concorrenciais

A modulação que estabelece marcos temporais arbitrários pode criar um ambiente de desigualdade. Empresas do mesmo setor, com as mesmas condições fáticas, podem ter tratamentos tributários distintos, gerando distorções concorrenciais e desequilíbrio de mercado. A modulação, neste sentido, pode se tornar um fator de interferência econômica.

6.2. Estímulo à litigiosidade e sobrecarga do sistema Judiciário

A falta de previsibilidade e os critérios de modulação que, por vezes, parecem "premiar" a litigiosidade precoce (como observado no Tema 69 e nos Temas 986 e 1.079 do STJ) podem incentivar uma "corrida generalizada aos distribuidores" quando da movimentação de teses relevantes. Isso sobrecarrega o Poder Judiciário e aumenta os custos para os contribuintes, que se veem obrigados a judicializar preventivamente para resguardar direitos e, paradoxalmente, a arcar com as custas processuais de processos paralisados por determinação judicial, sem a possibilidade de ver seu direito analisado e sem garantia de que os critérios de modulação futuros permitirão o aproveitamento do que foi pago. Vega e Sezotzki (2024) observam que "a modulação, que é para garantir segurança jurídica, está, agora, trazendo insegurança jurídica".

7. Análise crítica: A tensão entre princípios jurídicos e pragmatismo

A raiz de grande parte dessas inconsistências parece residir na tensão entre a aplicação rigorosa dos princípios jurídicos e as considerações pragmáticas na tomada de decisões das Cortes Superiores. Os ministros, ao sopesarem os impactos orçamentários de suas decisões, por vezes, flexibilizam a aplicação dos princípios constitucionais, como a legalidade e a isonomia. Molinari (s.d.) critica essa postura, afirmando que "esse tipo de postura contraditória da corte revela que o pragmatismo orçamentário está engolindo a dogmática constitucional em matéria tributária".

O resultado é um ambiente que desafia a segurança jurídica, onde a confiança dos cidadãos nas instituições e na estabilidade do Direito pode ser abalada. Quando o Poder Judiciário, que deveria ser o último guardião dos direitos e garantias, se mostra suscetível a pressões extrajurídicas, a previsibilidade pode ser comprometida, e a justiça se torna uma questão de ponderação complexa.

8. Propostas para um sistema mais justo e transparente: Aprendendo com as consequências

Para enfrentar o cenário de insegurança e imprevisibilidade, são urgentes e inadiáveis reformas que garantam a aplicação justa e transparente da modulação e a inviolabilidade da coisa julgada. O desafio é aprender com as consequências indesejadas geradas até agora, delineando o que não deve se repetir.

8.1. Critérios objetivos e restritivos para a modulação:

A partir da análise dos efeitos jurídicos, econômicos e sociais observados em relevantes julgados das Cortes Superiores, constata-se que o sistema de modulação de efeitos é passível de aprimoramento contínuo.

Dessa forma, com base no histórico de suas consequências, é imperativo delinear práticas e critérios que devem ser adotados, visando a construção de um ambiente de maior segurança jurídica e previsibilidade:

  • Universalização dos efeitos: A modulação deve ser universalizável. "Ou se modula para todos ou para ninguém", como propõe Galvão (s.d.). Restrições que ferem a isonomia e criam distinções arbitrárias devem ser expressamente vedadas.
  • Taxatividade dos fundamentos: Delimitar de forma estrita as "razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social", afastando interpretações vagas ou meramente arrecadatórias. A velha justificativa da "bomba fiscal", utilizada para modular decisões em detrimento de direitos dos contribuintes, é um exemplo claro de argumento que tem gerado consequências negativas e que deve ser evitado como critério principal.
  • Quórum qualificado e rigoroso: Reforçar o caráter excepcional da modulação, exigindo sempre um quórum de dois terços ou quatro quintos dos membros para sua aprovação.
  • Previsibilidade do marco temporal: A falta de critérios uniformes para os termos iniciais tem transformado a modulação em uma "loteria de datas". É essencial estabelecer marcos temporais padronizados e previsíveis para a modulação (e.g., data do trânsito em julgado da decisão que modula, ou da publicação da ata/acórdão), evitando datas passadas ou arbitráveis.
  • Compatibilidade entre gestão processual e critérios de modulação: Garantir que os critérios de modulação de efeitos sejam compatíveis com as políticas de suspensão de processos. Isso implica ou revisar a obrigatoriedade de "decisão favorável" como marco temporal para benefício, ou rever a abrangência e o impacto da suspensão de processos para que os litigantes não sejam prejudicados por uma paralisação imposta pelo próprio sistema. A injustiça de o contribuinte arcar com custas processuais para ter sua ação paralisada e, ainda assim, perder o direito ao benefício da modulação precisa ser endereçada.
  • Vedação de modulação em matéria de direitos fundamentais: A inconstitucionalidade de tributos que oneram indevidamente o contribuinte deve ter efeitos ex tunc, salvo em circunstâncias verdadeiramente excepcionais, que não se confundam com o mero impacto orçamentário.

8.2. Proteção absoluta da coisa julgada

  • Vedação expressa de ações rescisórias baseadas em modulação superveniente: A coisa julgada, garantia fundamental, deve ser inviolável. Ações rescisórias pautadas em modulações pro futuro (que criam um novo marco temporal) devem ser expressamente proibidas. A súmula 343/STF deve ser aplicada rigorosamente para proteger o contribuinte que agiu de boa-fé, confiando no entendimento judicial da época.
  • Coerência na flexibilização: Se houver flexibilização da coisa julgada, que esta seja simétrica e não apenas em benefício do Estado.

8.3. Transparência, diálogo institucional e a necessidade de parametrização legislativa da modulação

A complexidade e os impactos multifacetados da modulação de efeitos, evidenciados pela jurisprudência recente, sinalizam que a mera aplicação judicial de critérios subjetivos é insuficiente para garantir a segurança jurídica e a equidade. Torna-se imperativo transcender a discussão processual e promover um amplo diálogo institucional que culmine na parametrização legislativa da modulação.

Esta abordagem reconhece que o instituto, embora necessário para mitigar impactos abruptos, exige balizas claras e objetivas que o Poder Judiciário possa aplicar de forma consistente. Não se trata de erradicar a modulação, mas de dotar o sistema de mecanismos mais robustos e previsíveis para sua implementação.

Para tanto, propõe-se um esforço coordenado que envolva:

Debate plural e inclusivo: A realização de um processo de diálogo amplo e estruturado, reunindo representantes do Poder Judiciário, do Poder Legislativo, dos setores empresariais, das entidades de contribuintes, do Fisco e da academia. O objetivo seria discutir e construir consensos sobre:

  • As condições objetivas para a admissibilidade da modulação (o *se* modular).
  • A definição clara e taxativa dos "interesses sociais" e da "segurança jurídica" que a justificam.
  • A padronização dos marcos temporais (o *quando* modular), evitando a "loteria de datas" e a criação de tratamentos assimétricos entre contribuintes.
  • Mecanismos que harmonizem a suspensão de processos com os critérios de modulação, garantindo que o contribuinte não seja duplamente penalizado.
  • Estudos de impacto obrigatórios e públicos: Como parte desse debate, exigir a realização de estudos de impacto econômico, social e jurídico detalhados e públicos. Esses estudos, elaborados por entidades independentes e com metodologias transparentes, forneceriam a base empírica necessária para que as decisões sobre a parametrização legislativa e, posteriormente, a aplicação judicial, sejam fundamentadas em dados concretos, e não em "argumentos ad terrorem" ou percepções subjetivas de crise fiscal.
  • Alteração legislativa orientada pelo consenso: O resultado desse diálogo e dos estudos de impacto deverá subsidiar a proposição e aprovação de alterações na legislação pertinente (e.g., lei 9.868/1999 e o CPC). Tais alterações visariam a estabelecer critérios objetivos, restritivos e exaustivos para a modulação de efeitos, transformando a exceção em regra com parâmetros claros e universalizáveis.

9. Conclusão: O desafio da reconstrução da confiança no Poder Judiciário

O panorama traçado, que se estende do Tema 69 a outros julgados sobre IPI, TUST/TUSD, Sistema S e subvenções de ICMS, revela uma preocupante deterioração da segurança jurídica no Brasil.

A aplicação, por vezes, errática da modulação de efeitos e a fragilização da coisa julgada podem transformar o Poder Judiciário de guardião de direitos em um agente que, por vezes, gera instabilidade econômica e previsibilidade. Quando nem mesmo a coisa julgada oferece um porto seguro, a mensagem enviada aos contribuintes pode ser desafiadora: o risco de investir e produzir no Brasil pode ser agravado por uma imprevisibilidade jurídica que foge ao controle de qualquer planejamento.

Os impactos de certas decisões são pagos não apenas pelos contribuintes diretamente afetados, mas por toda a sociedade, que vê a atração de investimentos e o desenvolvimento econômico sob desafios. É imperativo que as Cortes Superiores reavaliem suas práticas, priorizando a estabilidade, a isonomia e a previsibilidade.

Somente com critérios justos e transparentes na modulação e com o respeito incondicional à coisa julgada, o Poder Judiciário poderá reconstruir a confiança e cumprir seu papel essencial de garantir a ordem e a justiça em um Estado Democrático de Direito. Este é um desafio em construção, à altura das nossas Cortes Superiores, e a capacidade de aprender com as experiências passadas será crucial para o futuro do sistema Judiciário brasileiro.

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Anderson Torquato Scorsafava

VIP Anderson Torquato Scorsafava

Advogado e Bacharel em Ciências Contábeis, sócio fundador da SCORSAFAVA Sociedade Individual de Advocacia. Especialista em Direito Tributário e Processual Civil, possui

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