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Cláusula de earn-out em M&A: Riscos, precedentes e boas práticas

O artigo explora riscos do earn-out em M&A no Brasil, causas de litígios e boas práticas, com base em precedentes do STJ e TJ/SP e temas como boa-fé, cooperação e transparência.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Atualizado às 13:46

De acordo com Heiko Ziehms na obra "M&A Disputes: how they happen, how to resolve them, how to avoid them"1, durante o processo de fusões e aquisições (M&A) os principais envolvidos, sejam eles as partes ou seus assessores, tem que tomar uma série de decisões em um contexto de prazos irrealisticamente curtos, de imperfeita (ainda que em volumosa quantidade) informação, e, especialmente, com uma contraparte sagaz no que negocia.

Apesar de o enfrentamento dessas condições se dar com uma variedade de profissionais, técnicos e especialistas em muitas áreas do conhecimento, o processo decisório pode ser trapaceiro (tricky), gerando falsas concordâncias temporais que se consubstanciarão em desacordos futuros e possivelmente disputas judiciais e/ou arbitrais.

Muitas vezes, por esses processos frequentemente envolverem a negociação de variáveis complexas relacionadas à precificação do negócio, as cláusulas de earn-out surgem assim como um mecanismo de alinhamento de interesses e mitigação de riscos, em especial nos casos em que o valuation depende de informações cuja previsibilidade futura é discordante entre compradores e vendedores da empresa adquirida.

As cláusulas de earn-out condicionam parte do pagamento do preço de uma aquisição a um ou mais desempenhos futuros da empresa-alvo. Bastante comuns em operações de M&A, sobretudo naquelas envolvendo empresas emergentes, startups, setores de tecnologia ou empresas em fase de expansão acelerada, essas cláusulas desempenham papel relevante para o alinhamento de expectativas entre comprador e vendedor.

Em contextos de incerteza sobre o valuation ou de forte dependência da atuação dos antigos sócios, o earn-out busca equilibrar riscos, incentivando a continuidade da gestão e postergando parte do pagamento para quando houver evidência concreta de desempenho.

Contudo, apesar de seu apelo econômico, essas cláusulas são também uma das principais fontes de disputas intensas e litígios complexos no pós-fechamento de operações.

1. Estrutura e objetivos do earn-out

A cláusula de earn-out define que parte do preço de uma aquisição será paga apenas se a empresa atingir certos indicadores de desempenho em período futuro. O objetivo central é permitir que o vendedor obtenha o valor que acredita ser justo pela empresa, sem que o comprador assuma sozinho o risco de que tal desempenho não se concretize. Para o comprador, o earn-out é um mecanismo de proteção contra valuations inflados e um instrumento de retenção dos gestores eficientes; para o vendedor, é uma chance de capturar valor adicional se seus prognósticos se confirmarem.

Essas cláusulas geralmente estão estruturadas com referência a metas quantitativas, como EBITDA, lucro líquido, receita bruta, entre outros. Também podem envolver parâmetros operacionais (como participação de mercado ou contratos fechados), de natureza qualitativa (como permanência na gestão) ou mesmo de materialização de contingências passivas ou ativas.

2. Tipos mais comuns de métricas

A estruturação de um earn-out depende essencialmente da definição das métricas de desempenho que condicionarão o pagamento posterior. As métricas mais utilizadas são:

(a) Financeiras

  • EBITDA (Lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização): Ampla aceitação, pois reflete a performance operacional.
  • Receita bruta ou líquida: Simples de apurar, mas pode ser manipulada por descontos ou políticas comerciais.
  • Lucro líquido: Pode ser impactado por políticas contábeis ou decisões financeiras do comprador.

(b) Operacionais

  • Número de novos clientes ou contratos fechados;
  • Lançamento de produtos específicos;
  • Expansão geográfica ou entrada em novos mercados.

(c) Comportamentais ou estratégicas

  • Integração de sistemas;
  • Permanência dos fundadores por tempo determinado;
  • Retenção de talentos-chave.

(d) Potenciais ganhos ou perdas não performadas

  • Passivos contingentes ou não contabilizados;
  • Ativos contingentes.

A escolha da métrica deve considerar a natureza do negócio, o nível de controle do vendedor sobre os resultados e a possibilidade de aferição objetiva e independente. Todavia, são justamente as bases dessas métricas que normalmente dão origem as disputas relacionadas às cláusulas de earn out em operações de M&A.

Nesse sentido Heiko Ziehms destaca que a questão fundamental é a necessariamente imperfeita conexão entre a métrica utilizada e o valor que ela supostamente pretende medir. Segundo o autor, a conexão será sempre somente uma aproximação; e o comprador, que estará no controle do negócio durante o período de verificação do earn out, sempre terá um incentivo para exercer seu julgamento contábil dessas métricas de forma a minimizar o pagamento ou mesmo forçosamente não atingir os gatinhos necessários de pagamento do earn out2.

3. Riscos e litígios frequentes conforme jurisprudência brasileira (TJ/SP e STJ)

A análise dos precedentes brasileiros revela uma tendência de reconhecimento da boa-fé objetiva como parâmetro fundamental para a execução de earn-outs. Apesar de se tratar de um contrato empresarial de alta complexidade, onde prevalece o princípio da força obrigatória dos contratos e a excepcionalidade da intervenção jurisdicional (seja ela arbitral ou estatal), os SPAs e, principalmente, as cláusulas de earn-out (provavelmente, sua maior fonte de controvérsias), não estão imunes às adequações jurisprudenciais.

3.1 Interferência do comprador

Um dos riscos mais relevantes surge quando o comprador, após assumir o controle, toma decisões que interferem negativamente no cumprimento das metas do earn-out. Alterar o modelo de negócio, redirecionar investimentos ou modificar a política comercial pode impactar diretamente os resultados. Nesse sentido deve-se reconhecer que, mesmo sem dolo, a conduta que inviabiliza o cumprimento de condição suspensiva pode ensejar sua consideração como verificada (CC, art. 129). Nesse sentido, cumpre destacar a recente posição do STJ quando do julgamento do REsp 2.117.094/SP, em 5/3/24, de relatoria do ministro Villas Boas Cuêva, no qual a 3ª turma do STJ aplicou o art. 129 do CC/02, entendendo que a conduta obstrutiva gera o cumprimento ficto da condição. No caso concreto, a Corte considerou que o comprador, ao implementar mudanças radicais na gestão após o fechamento, frustrou deliberadamente as condições do earn-out. Nesse viés, para que ocorra a implementação ficta, não é necessário provar o dolo específico em obstar a materialização da condição, ou seja, associar a conduta ao desejo por um resultado específico, mas somente demonstrar que a frustração do cumprimento da condição seja consequência de um agir intencional (p. ex., diferir pagamentos, dispensar funcionários-chave, deslocar receitas).

3.2 Ambiguidade contratual

Quando não há previsão de métricas exatas ou regras para apuração dos resultados, surgem interpretações divergentes sobre o que de fato deve ser aferido. Desse embate concluiu-se que a ausência de padronização contábil e a ambiguidade das metas tornavam a cláusula inexequível, transferindo ao comprador a obrigação de comprovar que o desempenho não foi alcançado.

Destaca-se, aqui, a crescente relevância do princípio da boa-fé objetiva e da técnica interpretativa in dubio contra stipulatorem, especialmente em contextos contratuais com desequilíbrio entre as partes. Embora o art. 423 do CC discipline expressamente os contratos de adesão, a jurisprudência do TJ/SP e do STJ3 tem admitido sua aplicação também em contratos empresariais quando identificada assimetria de uma das partes, como ocorre, por exemplo, em contratos de franquia, de fornecimento, de representação comercial ou até mesmo de compra e venda.

Nessas hipóteses, presente algum grau de desequilíbrio e havendo ambiguidade ou insuficiência de critérios objetivos em cláusulas contratuais - inclusive de earn-out -, a interpretação tende a favorecer a parte não redatora, como forma de prestigiar a boa-fé e coibir abusos na elaboração contratual.

3.3 Manipulação de resultados

A empresa adquirente pode influenciar resultados contábeis por meio de reclassificações, diferimentos ou provisões contábeis, afetando o cumprimento das metas. A jurisprudência tende a considerar abusiva qualquer conduta que configure manobra contábil destinada a evitar o pagamento do earn-out, sobretudo quando é vedado ao vendedor acompanhar a gestão.

A posição do TJ/SP sobre o tema, exemplificada ao julgar a apelação 0125493-61.2012.8.26.0100, que deferiu liminar para garantir acesso do vendedor aos documentos contábeis da empresa adquirida, entende que a transparência é pressuposto do cumprimento de obrigações condicionais.

Neste contexto, com base no art. 130 do CC/02, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP ressaltou que o acesso aos documentos e operações da sociedade, mesmo após a saída ou retirada da parte vendedora, é essencial para praticar os atos destinados a conservar direito eventual (recebimento do earn-out).

Na visão do Tribunal, o acesso a tais documentos é essencial para verificar o implemento ou frustração da condição suspensiva, de forma a assegurar que a parte compradora está fazendo esforços para gerir a sociedade, sem obstar propositalmente o implemento da condição revista na cláusula de earn-out (demitir funcionários-chave, postergar o recebimento de créditos etc.).

4. Revisão crítica de precedentes

Na linha dos julgados citados no capítulo anterior, uma análise mais sistemática de precedentes do TJ/SP e do STJ nos revela algumas tendências relevantes a se considerar para a análise das cláusulas de earn out:

  • Consagração do princípio da boa-fé objetiva, com imposição de deveres de cooperação e não obstrução4;
  • Necessidade de transparência, com acesso garantido a documentos e dados de desempenho5;
  • Interpretação contra o redator, nos casos de ambiguidade nas cláusulas6;
  • Importância da previsão de mecanismos de aferição independentes, como auditoria externa ou parecer técnico7.

5. Boas práticas contratuais

A experiência contenciosa das disputas em casos de M&A que envolvem cláusulas de earn out, especialmente com base nos julgados destacados e na análise sistemática conduzida, nos permite tomar a liberdade de construir as seguintes recomendações de boas práticas redacionais que devem ser adotadas para uma mais sofisticada e segura (no sentido de segurança jurídica) construção de cláusulas de earn out:

  1. Definir métricas de forma clara, com fórmulas, padrões contábeis e exemplos.
  2. Garantir o acesso a informações, com auditoria e relatórios periódicos;
  3. Estabelecer deveres de não interferência e colaboração.
  4. Prever solução de disputas escalonada, com parecer contábil, mediação e arbitragem.
  5. Evitar cláusulas genéricas ou subjetivas, que dificultem a aferição.
  6. Incluir regras de governança no período do earn-out, para garantir ao vendedor direito de participar das decisões estratégicas ou manter funções executivas, bem como limitar a atuação do comprador que possa impactar negativamente as métricas (cláusulas de não interferência).
  7. Incluir disposição sobre direito de auditoria, prever expressamente o direito do vendedor de revisar livros, relatórios e demonstrativos assim como potencial auditoria por terceiros independentes em caso de divergência
  8. Previsão de cláusulas de aceleração ou encerramento antecipado, permitir pagamento antecipado em caso de eventos extraordinários (ex: nova venda da empresa), bem como a extinção do earn-out se metas se tornarem inexequíveis por fatores externos.

6. Conclusão

As cláusulas de earn-out têm se tornado instrumentos indispensáveis em operações de M&A no atual contexto de mercado, mas exigem cuidados rigorosos em sua redação e execução. Uma análise de casos de destaque, bem como da sistemática da jurisprudência paulista e da superior corte nacional, revela que algumas prerrogativas na interpretação desses mecanismos são claras e devem ser consideradas pelos redatores dos contratos de M&A, quando da previsão dessas cláusulas.

____________

1 Ziehms, Heiko Daniel. M&A Disputes: how they happen, how to resolve them, how to avoid them. Alphen aan den Rijn: Wolters Kluwer, 2023.

2 Idem, p. 120.

3 Destacam-se os julgados: REsp n° 2.150.776/SP, jul. em 03/09/2024, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi; e Apelação Cível n° 1094279-25.2018.8.26.0100, jul. em 19/05/2020, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Pereira Calças.

4 Nesse sentido: Apelação Cível n° 0077029-84.2004.8.26.0100, jul. em 01/06/2021, 9ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Piva Rodrigues.

5 Nesse sentido: Agravo de Instrumento n° 0092230-13.2013.8.26.0000, jul. em 13/06/2013, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Francisco Loureiro.

6 Nesse sentido: Apelação Cível n° 9127210-13.2002.8.26.0000, jul. em 04/09/2002, 2ª Câmara de Férias de Julho de 2002, Rel. Luiz Sabbato.

7 Nesse sentido: Agravo de Instrumento n° 2154755-89.2016.8.26.0000, jul. em 27/10/2016, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Hamid Bdine.

Lucas F. G. Bento

Lucas F. G. Bento

Sócio das áreas de Societário e Mercado de Capitais do TN Advogados. Advogado e estudante de Finanças e Negócios pela USP, com passagens pela University of Illinois e University of Chicago, ambas nos EUA.

Thales Vieira Dias

Thales Vieira Dias

Estagiário da área de Societário e Fusões & Aquisições do TN Advogados. Graduando em direito pela FDRP - USP. E-mail: [email protected].

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