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Acórdão do TJ/SP reconhece mínimo existencial e inclui consignados

Decisão exemplar do TJ/SP valoriza a dignidade do superendividado ao afastar o decreto fixo do mínimo existencial e incluir consignados na repactuação. Um sopro de esperança na jurisprudência.

segunda-feira, 30 de junho de 2025

Atualizado às 14:27

Na semana passada, escrevi um artigo criticando de forma respeitosa, mas firme, a decisão do TJ/SP proferida na apelação cível 1006781-05.2024.8.26.0576, relatada pelo desembargador Paulo Guilherme Amaral Toledo. 

Naquele julgamento, considerou-se que o mínimo existencial de uma consumidora poderia ser calculado excluindo-se despesas ordinárias como alimentação, moradia e saúde, limitando-se praticamente ao que sobrava depois do pagamento das dívidas bancárias. A decisão gerou perplexidade porque, na prática, esvaziava o sentido da lei 14.181/21, que visa exatamente proteger o básico para uma existência digna.

Por isso mesmo, é importante registrar quando o Tribunal, em outro caso, caminha na direção oposta e demonstra profundo compromisso com a Constituição e com os princípios que fundamentam a política pública de prevenção e tratamento do superendividamento. Foi o que ocorreu na apelação cível 1000412-65.2024.8.26.0488, relatada pela desembargadora Sandra Galhardo Esteves, da 12ª Câmara de Direito Privado.

Esse acórdão representa um avanço jurisprudencial que merece ser estudado com atenção. A decisão, ao examinar os autos, reconheceu que a consumidora, apesar de contar com renda líquida mensal de R$ 9.115,15, encontrava-se em manifesta situação de superendividamento, pois suas despesas básicas chegavam a R$ 6.710,17, e as parcelas mensais das dívidas consumiam outros R$ 13.153,61. Ou seja, a dívida mensal excedia, por larga margem, toda a renda disponível, tornando impossível qualquer reorganização financeira sem violar o núcleo mínimo de dignidade.

Um dos pontos de maior acerto do voto da desembargadora Sandra Galhardo Esteves foi afastar expressamente o uso automático do decreto 11.567/23, que fixa em R$ 600,00 o chamado "mínimo existencial".

A decisão reconhece, com maturidade, que esse valor não é tecnicamente idôneo para garantir a subsistência de ninguém. O decreto pode servir como referência indicativa, mas jamais pode se sobrepor ao exame concreto da situação da família. Isso é coerente com o entendimento doutrinário segundo o qual o mínimo existencial deve ser lido à luz do art. 1º, III, da Constituição, que consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento da República.

Essa postura se contrapõe frontalmente à decisão criticada, na qual se pretendia transformar o mínimo existencial em um conceito residual e abstrato, quase contábil, divorciado das necessidades reais. Ao afirmar que o mínimo existencial deve ser aferido conforme as despesas essenciais provadas nos autos - como alimentação, moradia, saúde, transporte e educação dos filhos - o acórdão ora comentado devolve sentido à lei 14.181/21. Afinal, não faz nenhum sentido falar em "mínimo existencial" que não contemple precisamente as condições mínimas de existência.

Outro acerto de grande relevância foi a afirmação de que os empréstimos consignados devem integrar o processo de repactuação. É impressionante notar que muitos julgados ainda insistem em excluir essas operações sob argumentos frágeis, como o fato de que já são descontadas em folha ou que teriam suposta "natureza diferenciada".

O voto da desembargadora Sandra Galhardo Esteves demonstra total clareza ao apontar que o art. 54-A, §2º, do CDC inclui qualquer compromisso financeiro oriundo de relação de consumo, salvo as exceções expressas no art. 104-A, §1º - onde, repita-se, não há qualquer exclusão dos consignados.

Esse entendimento é fundamental porque se o Judiciário exclui justamente os créditos que mais comprometem a renda líquida, o instituto da repactuação perde utilidade prática. Não há razoabilidade em propor um plano de pagamento que ignore a parcela que efetivamente estrangula o orçamento familiar.

O acórdão corrige essa distorção e deixa claro que a repactuação deve ser abrangente, sob pena de perpetuar a insolvência e comprometer o objetivo maior da lei: a reinclusão social e financeira do consumidor.

Também é digno de nota o reconhecimento da nulidade da sentença originária por inobservância ao rito especial previsto nos arts. 104-A e 104-B do CDC. Muitos magistrados ainda julgam improcedentes essas demandas sem realizar as etapas procedimentais obrigatórias: audiência de conciliação e tentativa de negociação com todos os credores. Esse rito não é um detalhe burocrático: é a expressão prática do princípio do diálogo e da boa-fé objetiva que norteiam todo o microssistema do superendividamento. Quando o juiz decide sem cumprir essas fases, ele frustra a função social da norma.

O voto evidencia que aplicar a lei do superendividamento exige trabalho: examinar planilhas, conferir contracheques, analisar despesas e organizar reuniões com os credores. Mas essa é precisamente a função do Judiciário em um Estado Social de Direito. Não há atalho legítimo para decidir com justiça sem conhecer a realidade concreta do consumidor.

A decisão ainda resgata outro ponto essencial: a lei 14.181/21 não foi concebida para privilegiar o devedor em detrimento dos credores, mas sim para garantir equilíbrio e evitar que a pessoa seja condenada a viver em estado permanente de privação e indignidade.

Ao fundamentar que o mínimo existencial não pode ser tratado como uma cifra estanque e que todas as dívidas devem ser avaliadas no contexto global do orçamento familiar, a desembargadora Sandra Galhardo Esteves demonstra profundo entendimento de que a justiça distributiva pressupõe olhar atento ao contexto social.

Quando se compara este acórdão ao que critiquei anteriormente, fica clara a diferença entre uma decisão que apenas reproduz estereótipos sobre inadimplência e outra que efetivamente compreende a gravidade do superendividamento. Enquanto o julgamento anterior parecia colocar a conveniência do credor no centro da análise, este coloca a vida do consumidor como parâmetro jurídico prioritário - exatamente como determina a Constituição Federal.

Por todas essas razões, faço questão de registrar que julgados como o proferido na apelação cível 1000412-65.2024.8.26.0488 são exemplos de como é possível decidir com técnica, sensibilidade e respeito à finalidade protetiva da lei. São decisões assim que demonstram que ainda há esperança de ver a lei do superendividamento aplicada como instrumento real de proteção à dignidade humana e não como mera formalidade vazia.

Se decisões equivocadas devem ser criticadas com firmeza, julgados como este devem ser reconhecidos e divulgados como modelo. Afinal, justiça social começa pelo básico: garantir que nenhuma pessoa precise escolher entre comer ou pagar o banco. Este acórdão mostra que isso é possível quando se compreende que o Direito do Consumidor não trata apenas de contratos, mas da própria dignidade da vida cotidiana.

Leonardo Garcia

VIP Leonardo Garcia

Procurador do Estado do Espírito Santo; Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, Autor dos livros e parecerista

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