O esquecido parecer de Pontes de Miranda sobre ex-presidentes e crimes comuns
Parecer de Pontes de Miranda sobre o julgamento de presidente da república por crime comum, em especial sobre a competência do STF.
quinta-feira, 10 de julho de 2025
Atualizado às 13:32
Em sua atividade jurídica e acadêmica, Francisco Cavalcante Pontes de Miranda, um de nossos maiores juristas, deixou muitos livros escritos, ajudando a modelar certa parcela da construção de nossa ordem jurídica, inclusive em diversos aspectos demandados pela prática jurídica, quando emitiu centenas de pareceres, muitos deles famosos, como é o caso do parecer 95, que fundamenta, ainda hoje, a utilização quotidiana de importante defesa do executado em processos cíveis e empresariais ("exceção - objeção - de pré-executividade")1.
De fato, alguns pareceres são utilizados com maior frequência no foro em geral, embora alguns permaneçam quase desconhecidos, como é o caso do parecer 117, de alguma serventia para os momentos atuais, ementado com o seguinte teor: "Sobre o Direito Intertemporal no tocante à competência originária do STF para processar e julgar os crimes comuns de Presidente da República, cuja investidura se extinguiu e cujos direitos políticos foram suspensos"2.
Numa breve reconstrução fática, observamos que com o advento do golpe civil-militar de 1964, João "Jango" Goulart - então presidente da república - foi deposto e processado, vindo a ser exilado, quando passou a viver na Argentina, onde morreu em 1976, em circunstâncias ainda hoje misteriosas e questionadas, assim como aconteceu com J.K e Carlos Lacerda, diga-se de passagem.
Jango foi perseguido e investigado criminalmente no Inquérito Policial 2/GB, instaurado perante o STF, relatado pelo min. Gonçalves de Oliveira (relator para o acórdão, min. Djaci Falcão). Nele, acusou-se o ex-presidente Jango do cometimento de crimes comuns, quando se discutiu a competência do STF para processá-lo e julgá-lo, com uso do parecer 117 de Pontes de Miranda por parte de alguns ministros, que entendiam pela competência da Suprema Corte, enquanto a maioria acabou decidindo pela remessa dos autos para a Justiça Federal de 1º grau (acórdão publicado na RTJ vol. 046, tomo 2, 1968, p. 490-515).
No referido julgamento, votaram vencidos (acolhendo o parecer de Pontes) os ministros Gonçalves de Oliveira, Themístocles Cavalcanti, Adaucto Cardoso, Evandro Lins, Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Lafayette de Andrada, com o impedimento do min. Oswaldo Trigueiro, e, ainda, a nota peculiar do afastamento dos impedimentos de Adaucto Cardoso (que voltou atrás, e resolveu julgar) e de Aliomar Baleeiro (que consultou o Tribunal se poderia votar), ambos em razão do combate político que fizeram contra Jango, seja como Ministro do Trabalho ou como Presidente da República.
Entretanto, o caso de Aliomar Baleeiro permanece enigmático, uma vez que, por meio da recente disponibilização de sua documentação pessoal se descobriu que ele inclusive escreveu parte significativa do discurso de posse do ditador que tomou o lugar de Jango, como exposto no livro "A Banda de música e seu maestro: Aliomar Baleeiro e o golpe de 1964"3.
Voltemos ao parecer de Pontes de Miranda, que foi acolhido pela apertada minoria dos ministros que concordaram com seu posicionamento. A peculiaridade existente era apenas uma, e não mais do que uma: a Constituição de 1946 preconizava a competência do STF para processar e julgar alguém que cometesse crime comum enquanto ocupasse o cargo de presidente da república (art. 101, I, "a").
Posteriormente, com o golpe militar de 1964, sobreveio o AI 2, estabelecendo em seu art. 16, I, que ocorreria a "cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função", que por sua vez ocorreria simultaneamente com a suspensão de direitos políticos.
Sequencialmente, com o advento da Constituição de 1967, ficaram convalidados os atos ditatoriais (art. 173), ao tempo em que também foi restabelecido o forro por prerrogativa de função do presidente da república perante o STF (art. 114, I, "a").
A confusão jurídica estava posta, já que no caso concreto Jango havia sido atingido pelo golpe de estado em 1964, juntamente com a suspensão de seus direitos políticos, ou seja, com o AI 2 de 1965, Jango não poderia mais ser processado e julgado pelo Supremo, mas foi aí que veio a Constituição de 1967, recolocando o Presidente da República sob a jurisdição do STF em caso de cometimento de crime comum.
Com efeito, o parecer 117 de Pontes de Miranda discute os referidos aspectos. Sua análise está estruturada nos seguintes termos: I - os fatos; II - os princípios; III - a consulta e a resposta, finalizando com sua assinatura datada de 17 de abril de 1967, enquanto o julgamento perante o STF ocorreu quase um ano depois, em 27 de março de 1968.
Reproduzimos a pergunta do consulente: "Pode ser atribuída a outro órgão estatal que não o STF a competência para julgar crime comum de pessoa que o teria cometido quando Presidente da República?", e a resposta de Pontes de Miranda: "Não. A incidência das regras constitucionais sobre jurisdição e competência é desde o momento em que incide a Constituição, porque, a respeito de regras jurídicas, há o princípio da imediatidade da incidência, que apanha as regras jurídicas processuais".
Para que não ficasse nenhuma dúvida, prosseguiu Pontes de Miranda, de modo incisivo: "Competente seria o STF mesmo se a lei, constitucionalmente válida, houvesse restituído ao STF a competência ordinária para processo e julgamento do Presidente da República. Com mais forte razão, se foi a própria Constituição que volveu à atribuição especial e não houve qualquer ressalva, no texto constitucional, no que concerne à competência do STF".
E isso porque, conforme assevera Pontes de Miranda, na parte final de seu parecer: "A Constituição de 1967 podia ter posto fora do âmbito do art. 114, I, a, o processo e julgamento dos crimes comuns, de que fossem acusados ex-Presidentes da República, que tiveram suspensos os seus direitos políticos. Não o fez. A função que tem tido, no período de 1964-1967, e terá, o STF, entra na história do Brasil; e compreende-se que nenhuma exceção se lhe haja criado, no tocante ao processamento e julgamento de crimes comuns e a litígios que sempre foram da sua competência originária".
Ao finalizar seu parecer 117, Pontes de Miranda deixava claro que a Constituição teria que ter explicitado ser da competência do STF, para processo e julgamento, os crimes comuns cometidos pelo presidente da república ainda no exercício do cargo, e não de ex-presidentes da república, uma sutileza que a força da linguagem não lhe permitiria ignorar. Ao final, como se percebe, uma advertência e uma crítica ao Supremo, caso a Corte Suprema viesse a ignorar seu papel, leia-se, afastando a competência que lhe era constitucional.
_______
1 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Dez Anos De Pareceres, v 4. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1974, p. 125-139.
2 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Dez Anos De Pareceres, v 5. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1974, p. 140-147.
3 SPOHR, Martina. Banda de Música e seu Maestro: Aliomar Baleeiro e o Golpe de 1964. Curitiba: Appris, 2024.


