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Crimes licitatórios e o Direito Penal como espantalho

O Direito Penal não pode ser tribunal de honra dos vencidos, nem palanque dos vencedores. Precisa ser, simplesmente Justiça.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Atualizado às 13:27

1. O mito da modernização penal da lei 14.133/21

Muito se tem falado sobre os avanços da nova lei de licitações (lei 14.133/21). O discurso institucional é de modernização, eficiência e combate à corrupção. Mas, quando o olhar é técnico e desconfiado - como deve ser no Direito Penal - o que se vê é outra coisa: uma nova roupagem para velhas ambiguidades, e uma perigosa ampliação da fronteira penal sobre atos muitas vezes administrativos, interpretativos ou até mesmo opinativos.

A chamada "criminalização da licitação" parece ter se sofisticado, mas na prática serviu para empoderar órgãos de controle e ampliar os instrumentos de responsabilização com um verniz técnico que não resiste à análise constitucional.

2. A ilusão da tipicidade penal clara

O legislador, ao inserir os arts. 337-E a 337-O no CP, acreditou estar sendo objetivo. Mas o que fez foi incluir expressões que, do ponto de vista dogmático, beiram o subjetivismo perigoso. Termos como "fraude por qualquer meio" ou "perturbar a realização do certame" escancaram a vulnerabilidade da técnica legislativa penal, comprometendo o princípio da legalidade e abrindo margem para atuações persecutórias desmedidas.

Mais do que isso: tipificou condutas que já eram passíveis de responsabilização na esfera administrativa ou cível, criando um ambiente propício ao bis in idem e à judicialização de decisões técnico-administrativas.

3. Direito Penal simbólico e as vítimas invisíveis

Na prática, os gestores públicos, empresários e servidores que atuam em licitações passaram a viver sob o receio constante de serem criminalizados. É o Direito Penal do medo, e não o da legalidade. Há uma tentativa de transformar toda falha formal ou interpretação divergente em crime - ainda que não haja dolo específico ou resultado lesivo concreto.

É o retorno do Direito Penal simbólico: cria-se a figura do criminoso licitatório abstrato para agradar a opinião pública, sem observar os limites materiais do Direito Penal. As vítimas invisíveis desse processo são os bons gestores, os empresários corretos e os próprios cofres públicos, que enfrentam paralisações, inseguranças e retração de investimentos.

4. Defesa técnica e o papel contra-hegemônico do advogado criminalista

Nesse novo cenário, a atuação da defesa deve ir além do processo. Deve ser proativa, estratégica e contramajoritária. A defesa deve atacar os vícios estruturais da lei, questionar a vagueza dos tipos, exigir provas técnicas e desconfiar das "certezas fáceis" da acusação.

Nos processos penais baseados em licitações, é essencial:

  • Mapear todas as etapas do certame, inclusive digitais;
  • Verificar se há confusão entre erro administrativo e dolo penal;
  • Avaliar se houve excesso por parte dos órgãos de controle;
  • Promover perícias contábeis e administrativas próprias, a fim de demonstrar a boa-fé do agente.

A defesa é a última barreira contra o populismo penal e o punitivismo institucional travestido de moralidade pública.

5. Conclusão: nem tudo que parece fraude é crime

O verdadeiro combate à corrupção não se faz com tipos penais genéricos ou criminalização da gestão pública. Faz-se com técnica, transparência e respeito às garantias constitucionais. A lei 14.133/21 trouxe avanços, sim. Mas também trouxe riscos: seus crimes licitatórios são uma armadilha jurídica para os desavisados, e um campo fértil para atuações arbitrárias.

Que o advogado criminalista saiba disso, e que o Judiciário tenha coragem de resgatar o Direito Penal da tentação de se tornar instrumento de governo e opinião pública.

Claucio Antunes Fileti

Claucio Antunes Fileti

Advogado criminalista. Especialista em tribunal do júri, crimes econômicos, empresariais e tributários. Defende com estratégia, coragem e técnica. Sócio fundador da Claucio Antunes Advogados.

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