Business Judgment Rule: Risco e responsabilidade do gestor empresarial
Pode um gestor ser punido por um mau negócio? Este artigo analisa a Business Judgment Rule, delineando a extensão da responsabilidade do gestor, tema indispensável no mundo corporativo
terça-feira, 1 de julho de 2025
Atualizado às 14:15
Introdução: O dilema da decisão e o risco do administrador
A atividade empresarial é, por sua essência, uma arena de riscos. Administradores e sócios-controladores são diariamente desafiados a tomar decisões estratégicas complexas, muitas vezes com informações limitadas e sob a pressão do tempo, buscando maximizar o valor para a empresa e seus sócios. Nesse cenário, como o Direito pode equilibrar duas necessidades aparentemente conflitantes: a de responsabilizar gestores por atos ilícitos e a de lhes garantir a liberdade necessária para inovar e assumir riscos calculados, sem o receio paralisante de uma posterior revisão judicial de suas escolhas?
A resposta a essa questão fundamental do direito societário moderno tem sido construída, em grande parte, sobre os pilares da responsabilidade subjetiva do administrador e da doutrina da Business Judgment Rule. Embora originária do sistema da common law, seus princípios encontram eco no ordenamento jurídico brasileiro. Este artigo se propõe a dissecar, de maneira clara e objetiva, mas sem a pretensão de esgotamento desse vasto assunto, o regime de responsabilização de administradores no Brasil e a aplicação, implícita e explícita, da Business Judgment Rule pelos nossos tribunais, com especial atenção aos precedentes do STJ e do TJ/SP.
1. A responsabilização de Administradores no Brasil: Deveres, limites e a natureza da obrigação
A regra geral no direito societário brasileiro, estabelecida no art. 158 da lei 6.404/1976 (lei das sociedades por ações), é a de que o administrador não responde pessoalmente pelas obrigações que contrai em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão. responsabilidade pessoal é a exceção, e somente se configura quando o gestor atua:
1. Com culpa ou dolo, dentro de suas atribuições ou poderes; e/ou,
2. violação da lei ou do estatuto.
Para compreender o alcance dessa responsabilidade, é imperativo analisar os deveres fiduciários que norteiam a atuação do administrador, principalmente o dever de diligência e o dever de lealdade.
- Dever de diligência (Art. 153 da LSA): Exige que o administrador empregue, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo "homem ativo e probo" costuma empregar na administração de seus próprios negócios. Trata-se de uma obrigação de meio, e não de resultado. O administrador não garante o sucesso do negócio, mas sim que empregará os melhores esforços e a técnica adequada para atingir os objetivos sociais. O insucesso de uma decisão, por si só, não gera responsabilidade se a conduta foi diligente.
- Dever de lealdade (Art. 155 da LSA): Impõe ao administrador o dever de servir à companhia com lealdade, vedando o uso de oportunidades comerciais ou informações em benefício próprio ou de terceiros, e exigindo a abstenção em operações com conflito de interesses.
A jurisprudência do STJ é pacífica ao confirmar que a responsabilidade do administrador é subjetiva, dependendo da comprovação de sua culpa ou dolo. Um precedente paradigmático que solidifica essa visão é o REsp 1.349.233/SP, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão:
"Por atos praticados nos limites dos poderes estatutários, o administrador assume uma responsabilidade de meio e não de resultado, de modo que somente os prejuízos causados por culpa ou dolo devem ser suportados por ele. Daí porque, em regra, erros de avaliação para atingir as metas sociais não geram responsabilidade civil do administrador perante a companhia, se não ficar demonstrada a falta de diligência que dele se esperava (art. 153 da LSA)."
(STJ, REsp 1.349.233/SP, Rel. ministro Luis Felipe Salomão, 4ª turma, julgado em 3/2/2015)
Ressalta-se que no caso em questão, o STJ manteve a condenação do administrador nas instâncias ordinárias, por entenderem que houve excesso de poder por parte dele.
Assim, a estrutura legal brasileira já fornece a base para a proteção da decisão empresarial, ao exigir a prova de um ilícito (culpa, dolo, violação da lei) para que a responsabilização ocorra.
2. A Business Judgment Rule: Origem, conceito e finalidade
A BJR - Business Judgment Rule é uma doutrina judicial criada e consolidada pelos tribunais norte-americanos, especialmente as cortes do estado de Delaware, um centro nevrálgico do direito societário mundial. Ela nasceu da necessidade prática de impedir que os juízes, agindo com a "sabedoria do retrospecto" (hindsight bias), substituíssem o julgamento de mérito dos administradores pelo seu próprio.
Conceito: A BJR estabelece uma presunção juris tantum (relativa) de que, ao tomar uma decisão empresarial, os administradores agiram:
- De boa-fé (good faith);
- De maneira informada (informed basis), ou seja, após se inteirarem de todas as informações razoavelmente disponíveis; e,
- Sem interesse pessoal na transação (disinterestedness), acreditando honestamente que a decisão era no melhor interesse da companhia.
Quando essa presunção se aplica, os tribunais se recusam a analisar o mérito da decisão, mesmo que ela tenha resultado em prejuízos. O foco do controle judicial se desloca do resultado da decisão para o processo decisório. A BJR não é um salvo-conduto para a negligência grosseira, a fraude ou o conflito de interesses. Se o autor da ação de responsabilidade conseguir derrubar a presunção, provando que um desses três pilares não foi observado, o ônus se inverte, e o administrador precisará provar a justeza e a correção de sua decisão (entire fairness).
A finalidade da regra é multifacetada:
- Incentivar a tomada de riscos: Negócios exigem inovação e riscos. A BJR encoraja administradores a não serem excessivamente conservadores.
- Atrair talentos: Profissionais qualificados se sentiriam desestimulados a assumir cargos de gestão se pudessem ser responsabilizados por qualquer decisão que, em retrospecto, se mostrasse equivocada.
- Respeitar a expertise: Reconhece que administradores, e não juízes, são os especialistas em gestão de negócios.
3. A aplicação da Business Judgment Rule no Direito brasileiro
Embora não tenhamos um dispositivo legal que codifique expressamente a BJR, sua aplicação no Brasil é uma realidade, seja de forma implícita, derivada dos próprios artigos da Lei das S.A., seja de forma explícita, como vem ocorrendo em decisões judiciais mais recentes.
O art. 159, § 6º, da lei das S.A. é frequentemente citado como o "equivalente funcional" brasileiro da BJR. Ele estabelece que o juiz poderá reconhecer a exclusão da responsabilidade do administrador se convencido de que este agiu de boa-fé e visando ao interesse da companhia. Esse dispositivo, combinado com a natureza subjetiva da responsabilidade, cria um "porto seguro" (safe harbor) para o administrador diligente.
A visão do STJ
No Brasil, embora a Business Judgment Rule não esteja expressamente positivada, sua aplicação tem sido reconhecida e desenvolvida pela jurisprudência. O STJ tem consistentemente adotado uma postura de deferência à decisão empresarial, alinhada aos princípios da BJR, mesmo sem nomear a regra em todos os julgados. REsp 1.601.555/SP (Rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, 2019): Neste julgamento, o STJ acolheu a essência da doutrina, estabelecendo que o controle judicial sobre os atos dos administradores não deve incidir sobre o mérito da decisão empresarial - ou seja, se foi boa ou ruim do ponto de vista econômico -, mas sim sobre o processo decisório. A análise se restringe a verificar se o gestor agiu de forma informada, leal e sem abuso de poder, impedindo que o juiz, com o conforto da retrospectiva, se substitua ao administrador para avaliar uma escolha de negócio.
REsp 1.337.265/SP (Rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 2018): Embora discutindo o abuso de poder de controle, o julgado reforça a autonomia da decisão empresarial ao afirmar que "não compete ao Poder Judiciário adentrar o mérito das decisões tomadas pelo acionista controlador na condução dos negócios sociais, ressalvada a hipótese de abuso do poder de controle". Essa deferência é a essência da BJR.
A aplicação explícita pelo TJ/SP
Sendo o principal centro de litígios societários do país, o TJ/SP tem sido pioneiro na aplicação explícita da BJR em suas decisões, reconhecendo-a como uma ferramenta interpretativa válida.
Apelação cível 1002549-61.2016.8.26.0565 (2019): Este é um dos julgados mais emblemáticos, pois o tribunal nomeia a doutrina diretamente para fundamentar sua decisão, demonstrando a perfeita distinção entre o mérito da decisão e a violação de deveres.
"Prevalência, neste ponto, da business judgment rule (regra da autonomia da decisão empresarial) - Abuso da controladora identificado, no caso, quanto à destinação de parcela dos lucros retidos à diretoria, na forma de bônus - Elementos do caso concreto que denotam que tal mecanismo foi utilizado para distribuir uma parcela maior dos lucros dos exercícios examinados em benefício do controlador indireto (...) em prejuízo da minoritária - Deliberações anuladas apenas neste ponto..."
Neste caso, o TJ/SP aplicou a BJR para validar a decisão de reter lucros (mérito empresarial), mas anulou a destinação desses lucros (ato com conflito de interesses), mostrando a aplicação cirúrgica e correta da doutrina.
Conclusão
A análise conjunta da legislação brasileira e da jurisprudência de ponta evidencia que a Business Judgment Rule, mais do que uma teoria estrangeira, é um princípio vivo e atuante no direito societário nacional. Ela não representa uma imunidade absoluta para administradores, mas sim um critério de deferência judicial qualificada, que protege a decisão empresarial informada, leal e de boa-fé, contra o julgamento anacrônico do "engenheiro de obra pronta"
A correta aplicação da BJR pelos tribunais brasileiros, notadamente pelo STJ e TJ/SP, é vital para a segurança jurídica e para o fomento de um ambiente de negócios dinâmico e inovador. Ao focar a análise judicial no processo decisório em vez de no resultado econômico, o Judiciário cumpre seu papel de coibir ilícitos sem se converter em um "superadministrador", garantindo que o risco, elemento indissociável da atividade empresarial, seja gerido por quem de direito: os próprios agentes de mercado.


