MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Bets e Direito Penal: Fraude, lavagem e expansão punitiva

Bets e Direito Penal: Fraude, lavagem e expansão punitiva

O artigo analisa os crimes em plataformas bets, como fraude, pirâmide e lavagem, e propõe limites à atuação penal diante da inovação tecnológica e da descentralização digital.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Atualizado às 13:34

1. Introdução: A desmaterialização da criminalidade econômica

A criminalidade contemporânea, especialmente no domínio econômico, cada vez mais se manifesta de forma desmaterializada, desintermediada e transnacional. O surgimento das criptomoedas e a popularização das plataformas bets - sistemas de apostas automatizadas e descentralizadas em blockchain - evidenciam esse novo paradigma.

No Brasil, embora o marco legal dos criptoativos (lei 14.478/22) represente avanço regulatório, sua interface com o Direito Penal ainda é incipiente. O presente estudo visa justamente preencher essa lacuna, propondo uma análise crítica e propositiva acerca das possíveis incidências penais e das dificuldades práticas de persecução criminal nesses ambientes tecnológicos.

2. O ecossistema bets: funcionamento, opacidade e risco penal

As plataformas bets utilizam contratos inteligentes (smart contracts) para executar apostas de forma automática, sem a intervenção de operadores humanos. São baseadas em blockchains públicas ou privadas, e movimentam tokens digitais - muitas vezes sem qualquer lastro em moeda fiduciária - que funcionam como instrumentos de pagamento, investimento e especulação.

Essa estrutura apresenta três características criminógenas fundamentais:

  • Descentralização: a ausência de uma figura central dificulta a identificação de autores ou organizadores. A responsabilidade penal passa a exigir um esforço hermenêutico e técnico muito mais sofisticado;
  • Pseudonimato: os usuários operam por meio de carteiras digitais sem identificação formal, o que compromete os mecanismos tradicionais de rastreamento e atribuição de autoria;
  • Impressão de legalidade: plataformas bem estruturadas simulam legalidade com linguagens técnicas, páginas profissionais e contratos complexos, o que afasta a suspeita do investidor médio e encobre fraudes.

3. Principais incidências penais: análise dogmática e crítica

3.1. Lavagem de dinheiro (lei 9.613/98)

A conversão de ativos ilícitos em criptoativos, e sua posterior "limpeza" por meio de apostas automatizadas em bets, configura lavagem em três fases clássicas:

  • Colocação: compra de tokens com dinheiro em espécie ou por meio de transações disfarçadas;
  • Ocultação: pulverização em diferentes carteiras e uso de ferramentas como mixers ou tumblers;
  • Integração: reinserção dos ativos "limpos" no mercado financeiro ou imobiliário.

A jurisprudência ainda é incipiente, mas operações como Kryptos e Poyais já reconheceram a viabilidade da lavagem por meio de tokens, inclusive com decisões cautelares de bloqueio de carteiras digitais.

3.2. Pirâmide financeira e crime contra a economia popular (lei 1.521/51, art. 2º)

Muitas bets operam sob o modelo Ponzi, utilizando o capital de novos participantes para remunerar os antigos, sem atividade econômica real que sustente os lucros. A roupagem tecnológica serve para legitimar uma estrutura que, em essência, visa à captação indevida de recursos.

A jurisprudência já reconhece que, mesmo sem o elemento clássico do "produto ou serviço", a promessa de rendimentos irreais já configura crime contra a economia popular (STJ, HC 734.414/SP).

3.3. Estelionato e crime contra o sistema financeiro (CP, art. 171 e lei 7.492/86)

A simulação de legalidade, ou o oferecimento de investimento sem registro na CVM, configura conduta penalmente relevante.

Plataformas que induzem os usuários ao erro com a falsa promessa de segurança jurídica, ou com manipulação de odds e algoritmos de resultado, podem incidir no estelionato clássico ou no crime de operação irregular de instituição financeira.

3.4. Crime contra a ordem tributária (lei 8.137/90)

Embora a Receita Federal tenha iniciado o mapeamento das movimentações de criptoativos por meio da IN RFB 1.888/19, grande parte das operações via bets escapa da declaração formal. A ocultação de ganhos, sobretudo quando relacionados a rendimentos ou comissões, pode configurar sonegação fiscal e até evasão de divisas, em operações internacionais.

4. A autoria penal em plataformas descentralizadas: o desafio da imputação

O conceito de autoria no Direito Penal Clássico - centrado na figura do agente físico e na sua conduta dolosa - encontra obstáculos sérios quando confrontado com estruturas como as bets. Nesses ambientes:

  • A figura do "criador" pode estar fora da jurisdição nacional;
  • Os contratos inteligentes podem operar automaticamente, sem intervenção humana após o lançamento;
  • Há comunidades autônomas que gerenciam a plataforma (DAOs), diluindo a responsabilidade.

Aqui, ganha força a aplicação da teoria da imputação objetiva, que permite responsabilizar penalmente quem cria ou alimenta riscos proibidos, ainda que não execute diretamente a conduta típica. A jurisprudência ainda é hesitante, mas há espaço para evolução a partir do diálogo entre o Direito Penal Econômico, a teoria do domínio do fato e a doutrina da cegueira deliberada (willful blindness).

5. A atuação do Estado: limites, riscos e propostas

A expansão punitiva sobre o universo dos criptoativos demanda cuidado, para evitar:

  • Criminalização da inovação: nem toda bet é ilícita; muitas têm estrutura legítima, conforme previsto na própria lei 14.478/22;
  • Insegurança jurídica: a ausência de regulação clara cria um "limbo normativo" em que operadores de boa-fé podem ser indevidamente criminalizados;
  • Abuso de medidas cautelares: bloqueios indiscriminados de carteiras podem violar direitos fundamentais, como o devido processo legal e o direito de propriedade.

Propostas concretas:

  • Criação de núcleos especializados em criptoativos no MP e nas polícias;
  • Ampliação da cooperação internacional, via Interpol e OCDE, para rastreamento de ativos e execução penal transnacional;
  • Tipificação autônoma da fraude com criptoativos, para evitar interpretações elásticas do art. 171 e da lei 1.521/51;
  • Fortalecimento do compliance no mercado digital, com responsabilização penal subsidiária.

6. Considerações finais: o Direito Penal em tempos de descentralização

O fenômeno das bets não é, em si, um problema penal. O risco está na sua utilização como vetor de criminalidade financeira altamente sofisticada, com aparência de legalidade e grande poder de captação.

Cabe ao jurista penalista, sobretudo no Brasil, operar com categorias dogmáticas adequadas, sem ceder à tentação de punir toda inovação tecnológica. O desafio é estabelecer um equilíbrio entre repressão qualificada, segurança jurídica e incentivo à inovação responsável.

Claucio Antunes Fileti

Claucio Antunes Fileti

Advogado criminalista. Especialista em tribunal do júri, crimes econômicos, empresariais e tributários. Defende com estratégia, coragem e técnica. Sócio fundador da Claucio Antunes Advogados.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca