A inconvencionalidade do dolo específico na improbidade
O presente esboço busca demonstrar que o dolo específico exigido na lei de improbidade administrativa padece de inconvencionalidade por violar o art. 28 da Convenção de Mérida.
segunda-feira, 7 de julho de 2025
Atualizado em 4 de julho de 2025 15:47
A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, de dezembro de 2003, de Mérida - México, foi internalizada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do decreto 5.687/2006 e tem como finalidade a promoção e o fortalecimento das medidas preventivas eficazes e eficientes contra a corrupção; a promoção, facilitação e apoio à cooperação internacional e assistência técnica na prevenção e luta contra à corrupção; e a promoção à integridade, prestação de contas e transparência dos assuntos e bens públicos (art. 1 da Convenção).
Destaca-se que o art. 3 item 2 da Convenção de Mérida, que trata do seu âmbito de atuação, previu que "Para a aplicação da presente Convenção, a menos que contenha uma disposição em contrário, não será necessário que os delitos enunciados nela produzam dano ou prejuízo patrimonial ao Estado.", o que, por si, já exige uma interpretação conforme do § 1º do art. 11 da lei de improbidade.
O capítulo III da mesma Convenção trata da "penalização e aplicação da çei". É expresso em vários dispositivos a exigência da intencionalidade do agente (sujeito ativo), revelando, pois, o elemento subjetivo do tipo.
O art. 15, suborno de funcionários públicos nacionais, traz a fórmula: "quando cometidos intencionalmente". Igualmente dispõe o art. 16 que cuida do suborno de funcionários públicos estrangeiros e de funcionários públicos de organizações internacionais públicas. A conduta da malversação ou peculato, apropriação indébita e outras formas de desvio de bens por um funcionário público compreende também a fórmula "quando cometidos intencionalmente" o que é repetido no art. 18 em relação ao tráfico de influências, e no art. 19, no que se refere ao abuso de funções.
O enriquecimento ilícito (art. 20), suborno do setor privado (art. 21), malversação ou peculato de bens no setor privado (art. 22), a lavagem de dinheiro (art. 23), o encobrimento (art. 24) e a obstrução da Justiça (art. 25) repetem a disposição "quando cometidos intencionalmente".
Já o art. 28 da Convenção de Mérida trata do conhecimento, intenção e propósito como elementos de um delito e dispõe que "O conhecimento, a intenção ou o propósito que se requerem como elementos de um delito qualificado de acordo com a presente Convenção poderão inferir-se de circunstâncias fáticas objetivas."
Disso decorre que desde o art. 15 até o art. 25 há exigência convencional expressa do elemento subjetivo do tipo (para o sistema finalista é composto pela vontade mais a intenção). O art. 28 esclarece que os elementos para a demonstração da intenção do dolo das condutas previstas na Convenção podem ser aferidos a partir das circunstâncias fáticas.
Sublinhe-se que o art. 65.2 da Convenção traz previsão que permite cada Estado-Parte "adotar medidas mais estritas ou severas que as previstas na presente Convenção a fim de prevenir e combater a corrupção." Logo, contrario sensu não é permitido aos estados adotar medidas mais indulgentes, lenientes ou permissivas, do contrário, haveria frontal desconfiguração do propósito da Convenção.
Cabe lembrar que antes da alteração da lei de improbidade administrativa promovida pela lei 14.230/21 não havia exigência de um específico tipo subjetivo do ilícito, bastando o dolo genérico, tendo, no ponto, operado exigência que impede a própria incidência das normas que buscam enfrentar a corrupção.
Do mesmo modo, do quanto tratou a Convenção de Mérida em seus dispositivos, não se apurou exigência alguma de um especial fim de agir, resultando suficiente a simples intenção dolosa, sem qualquer complemento específico.
Disso é possível concluir que:
(i) A Convenção de Mérida exige do dolo direto para as condutas nela estipuladas;
(ii) Não há previsão de um elemento subjetivo do injusto específico;
(iii) O dolo previsto na convenção de Mérida é alcançado por circunstâncias objetivas, e não eminentemente subjetivas, como, por exemplo, a demonstração do elemento subjetivo do tipo somado de um fim peculiar. Isso conduz à conclusão de que exigir um "especial fim" para a revelar a intenção do agente é, ao fim e ao cabo, restringir a demonstração probatória somente por meio de elementos subjetivos, o que, em verdade, viola a norma do art. 28 da Convenção;
(iv) Não permitir a demonstração do dolo por meios objetivos é descumprimento da Convenção de Mérida. Ao estabelecer a regra do dolo com elemento subjetivo do injusto específico no § 2º do art. 11, há direta violação às obrigações assumidas pelo Estado Brasileiro à Convenção de Mérida. Dito de outro giro, não há como provar um "especial fim de agir" por meios objetivos, senão somente de forma subjetiva, e isso impede expressamente a aplicação do art. 28 da Convenção;
(v) A exigência de um elemento subjetivo do tipo nem sequer projetado na Convenção de Mérida compromete sobremaneira o enfrentamento da corrupção em si, pois mesmo que o agente venha a praticar conduta com dolo, não haverá punição, quiçá processo, pois faltaria ainda a necessidade da provação do fim específico;
(vi) O elemento subjetivo do ilícito exigido nos § § 1º e 2º é um elemento a mais a ser demonstrado na investigação, no processamento, no julgamento e que, como integra o elemento anímico do agente, fatalmente não alcançará demonstração processual, ainda que todas as técnicas de prova constitucionais, legais, legítimas e convencionais venham a ser empregadas;
(vii) A Convenção de Mérida não permite que os Estados-parte promovam medidas mais amplas do que a prevista na Convenção e mais complacentes com a corrupção (art. 65.2).
Por tais razões sustentamos a inconvencionalidade do § 2º do art. 11, com a redação que lhe deu a lei 14.230/21, a qual exige o elemento subjetivo do tipo "específico" em todos os atos de improbidade, previstos ou não na Lei de Improbidade, ou em tipos sancionadores que venham a ser previstos (clarividência legislativa!), por contrariedade aos dispostos nos arts. 15 a 25, 28 e 65.2 da Convenção de Mérida.


