Práticas anticompetitivas em licitações e os concorrentes prejudicados
Os efeitos práticos de condutas anticoncorrenciais nas licitações e como combater a imposição de penalidades administrativas pela inexecução dos contratos.
sexta-feira, 4 de julho de 2025
Atualizado às 15:52
Imagine uma situação hipotética: você, sócio-administrador de uma empresa terceirizada que atua, junto à Administração Pública, no fornecimento de mão-de-obra especializada de anestesiologistas. Após anos de experiência em diversos Estados de sua região, busca expandir a sua atuação, concorrendo e se sagrando vencedor de licitação para prestação do serviço em nova localidade.
Em vias de assinar o contrato oriundo da licitação, todavia, você se depara com uma situação: os médicos anestesiologistas, ao serem procurados pela sua empresa para seguirem com a oferta de seus serviços - agora sob sua gestão - alegam estar impedidos, pela Cooperativa à qual estão vinculados, de assinar quaisquer tipos de contrato com outras possíveis administradoras de sua mão-de-obra.
Como resultado, a sua empresa - que foi legalmente declarada vencedora do certame - vê-se impossibilitada de iniciar a execução do contrato, já que, diante do impedimento fixado pela Cooperativa, não dispõe de profissionais suficientes para executar o serviço em questão, o que acaba sendo configurado pela Administração Pública como a infração administrativa tipificada no art. 155, VI, da lei 14.133/21.1
Situações como a ilustrada, infelizmente, são mais comuns no cenário nacional do que se aparenta. É o caso, por exemplo, das investigações atualmente em curso, empreendidas pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, acerca de possíveis práticas anticompetitivas no mercado de anestesiologia do Distrito Federal.2
Tal conduta se traduz enquanto prática vedada por lei, notadamente a Constituição Federal que, em seu art. 173, §4º, estabelece que o Estado deve reprimir, por meio da lei, qualquer abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário de lucros.3
A lei 12.529/11, por sua vez, disciplina o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, e tipifica como infrações - atraindo a aplicação de sanções - as práticas anticoncorrenciais como a limitação ou impedimento do acesso de novas empresas ao mercado, a imposição de barreiras artificiais à concorrência e o abuso de posição dominante.
Apesar dos consideráveis avanços na tentativa de conter tais práticas, pouco se fala dos seus efeitos para aqueles concorrentes que gozam de um prejuízo concreto no âmbito das licitações. Isso porque, conforme já explicitado, estarão sujeitos a possíveis penalidades pela inexecução total ou parcial do contrato.
Na ausência de uma teoria geral que norteie a aplicação das normas sancionadoras, duas opções podem ser ventiladas pelo sujeito prejudicado, através de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico. A um, pode-se invocar a aplicação da excludente de responsabilidade civil do Fato de Terceiro4, em se tratando da ocorrência de circunstância que independe de ação ou omissão da empresa.
A dois, é possível destacar que, com base nos princípios da razoabilidade e do consequencialismo, a valoração das circunstâncias fáticas nesse caso leva à necessidade de a autoridade sancionadora isentar-se da aplicação de penalidades ao fornecedor ou, ainda, optar pela sanção menos gravosa. Tal alternativa pode ser extraída através de interpretação do art. 20, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, ao aduzir:
Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
Ao tratar do supracitado artigo, Fredie Didier Jr. e Rafel Alexandria5 o qualificam enquanto "postulado hermenêutico do pragmatismo", ao regular a forma de aplicação das normas jurídicas, determinando que, na atividade decisória, as consequências práticas da decisão devem ser sopesadas para fundamentar a opção pelo atendimento de um ou outro direito.
Não apenas isso, como também institui uma regra, ao impor ao julgador o dever de motivação, na esteira do art. 93, IX, da Constituição Federal de 1988, qual seja: para além de identificar os possíveis sentidos do princípio incidente no caso, bem como de considerar as consequências da adoção de cada um deles, deve o aplicador da lei comparar as soluções possíveis com vistas a identificar qual a medida necessária e adequada ao caso concreto.6
É preciso concentrar esforços, portanto, do ponto de vista da livre concorrência, não apenas na contenção e repressão de práticas anticompetitivas, mas também na produção de conhecimento jurídico hábil a salvaguardar os eventuais prejudicados diante das condutas ilícitas.
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1 "Art. 155. O licitante ou o contratado será responsabilizado administrativamente pelas seguintes infrações: (...) VI - não celebrar o contrato ou não entregar a documentação exigida para a contratação, quando convocado dentro do prazo de validade de sua proposta; (...)"
2 CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA. Cade apura indícios de cartel no mercado de anestesiologia do Distrito Federal. Gov.br Notícias, Brasília, abr. 2025. Disponível em: < https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/noticias/cade-apura-indicios-de-cartel-no-mercado-de-anestesiologia-do-distrito-federal>. Acesso em 28 jun. 2025.
3 "Art. 173. (...) § 4º A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros."
4 "Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir". (Código Civil)
5 DIDIER JR., Fredie; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Dever judicial de considerar as consequências práticas da decisão: interpretando o art. 20 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, nº 73, jul./set. 2019, p. 115-132.
6 Idem.


