Apple no Alvo do CADE: Autopromoção ou abuso de poder?
No artigo, critico a condenação da Apple pelo CADE, debatendo os limites entre autopromoção legítima, inovação e abuso de poder em ecossistemas digitais fechados como o iOS.
sexta-feira, 4 de julho de 2025
Atualizado às 15:52
Em mais um dia glorioso na luta contra os gigantes digitais, o respeitado CADE - sempre atento à ordem econômica e ao bem-estar da concorrência - decidiu mirar sua lupa regulatória para a Apple1. O motivo? Algo verdadeiramente chocante: a empresa estaria favorecendo seus próprios produtos e serviços dentro do. próprio ecossistema. Um verdadeiro atentado à neutralidade dos apps! Afinal, onde já se viu uma plataforma digital promover seus próprios serviços em vez dos concorrentes? Isso é quase tão absurdo quanto um restaurante recomendar o prato da casa!
A recomendação técnica da Superintendência-Geral do CADE sugere a condenação da Apple por conduta anticompetitiva, acusando a empresa de dificultar a atuação de concorrentes ao impedir, por exemplo, o uso do NFC por outras carteiras digitais que não o Apple Pay. Além disso, a Apple teria o descaramento de cobrar taxas de até 30% de desenvolvedores que usam sua App Store - como se oferecer infraestrutura, segurança, curadoria e alcance global tivesse algum custo. Ora, vejam só.
Mas convenhamos: não seria esperado que uma empresa cuide bem de seu próprio jardim? Joseph Schumpeter, economista consagrado por suas ideias sobre inovação e "destruição criativa"2, já dizia que a competição nem sempre se dá pelo altruísmo entre empresas, mas pela capacidade de inovar, de integrar e de oferecer uma experiência de usuário coesa. Em um ecossistema como o iOS, que é projetado para funcionar como um sistema fechado e integrado, é lógico - e até desejável - que seus elementos conversem entre si com fluidez. Culpar a Apple por isso seria como condenar uma orquestra por ensaiar junta.
Herbert Simon, outro nome de peso, ao falar de racionalidade limitada, nos lembraria que empresas agem dentro das limitações do ambiente e tomam decisões com base em seus objetivos3. Logo, privilegiar seus próprios produtos é não só natural, mas quase inevitável. Esperar imparcialidade plena de uma plataforma privada é, no mínimo, otimista.
O mais curioso é que o consumidor, esse ser racional com polegares opositores e planos de dados, ainda possui o poder de escolha. Se preferir usar o Google Pay ou o Samsung Pay, pode comprar outro dispositivo. Pode inclusive não usar nada - como fazem muitos com cartão de débito e uma boa dose de desconfiança digital. E se escolhe Apple Pay, que mal há nisso?
Milton Friedman, defensor ferrenho do livre mercado, provavelmente reviraria os olhos diante da ideia de uma autoridade estatal punir uma empresa por promover o próprio serviço. Para ele, a liberdade de escolha já seria a melhor garantia contra abusos - e interferências como essa do CADE beiram uma paternalização do consumidor, como se ele não soubesse o que está fazendo ao clicar em "Aceito os termos".
Nada disso significa desmerecer a importância do CADE, que cumpre um papel essencial no combate a monopólios abusivos, cartéis e outras práticas lesivas ao mercado. Mas, neste caso, a recomendação de condenação parece mais uma tentativa de forçar um ideal de concorrência neutra em um ambiente que, por definição, é proprietário. O iOS pertence à Apple. Esperar que ela trate os concorrentes com o mesmo carinho que dedica ao Apple Pay é pedir que o vendedor da Coca-Cola ofereça Pepsi com sorriso no rosto.
Ao final, resta ao consumidor observar o espetáculo regulatório com certa perplexidade. A Apple, claro, seguirá ajustando seus termos aqui e ali, mas dificilmente abandonará a ideia de que seu ecossistema deve funcionar como uma extensão de sua visão estratégica. E talvez o CADE precise lembrar que, entre proteger a concorrência e punir o sucesso de quem integrou bem seus próprios produtos, há uma linha tênue que separa a defesa do mercado da simples burocracia punitiva.
Sim, o CADE é grande. Mas às vezes, até os grandes tropeçam em cascas de maçã.
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1 CONSELHO ADMINISTRATIVO DE DEFESA ECONÔMICA (CADE). SG/Cade recomenda condenação da Apple por conduta anticompetitiva no ecossistema iOS. Brasília: CADE, 28 jun. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/cade/pt-br/assuntos/noticias/sg-cade-recomenda-condenacao-da-apple-por-conduta-anticompetitiva-no-ecossistema-ios. Acesso em: 30 jun. 2025.
2 SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, socialismo e democracia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1984.
3 SIMON, H. A racionalidade do processo decisório em empresas. Rio de Janeiro: Multipl. v. 1, n. 1, 1980.