Infidelidade patrimonial: O PL 4.705/23 e a autoria
Análise crítica do PL 4.705/23 expõe sua falha central: Não solucionar o problema da autoria nos crimes econômicos. Reflexão densa e necessária sobre responsabilização penal.
segunda-feira, 7 de julho de 2025
Atualizado em 4 de julho de 2025 15:58
1. Introdução
A criminalidade empresarial desafia os modelos tradicionais de imputação penal. A crescente complexidade das estruturas societárias, aliada à fragmentação de funções e à opacidade decisória, tornam a delimitação da autoria um problema central. Nesse contexto, o PL 4.705/23 busca preencher uma lacuna normativa ao propor a tipificação do crime de infidelidade patrimonial. Contudo, a análise detalhada do seu conteúdo revela inconsistências dogmáticas e lacunas que comprometem sua efetividade prática.
2. O conteúdo do PL
O projeto acrescenta ao CP o art. 168-B, criminalizando a conduta de quem "abusa dos poderes de administração de um patrimônio alheio [...] com o fim de obter vantagem de qualquer natureza em benefício próprio ou de outrem, mediante infração do dever de salvaguarda". A pena prevista é de reclusão de um a cinco anos, além de multa.
3. A fragilidade dogmática da descrição típica
Apesar de inspirar-se em modelos estrangeiros como o §266 do StGB alemão (Untreue), o PL 4.705/23 incorre em imprecisões conceituais. A descrição típica não delimita com clareza os elementos objetivos e subjetivos do tipo. O conceito de "abuso dos poderes de administração" é vago e abre margem à insegurança jurídica, violando o princípio da taxatividade penal. Além disso, a expressão "patrimônio alheio" carece de definição legal precisa, sobretudo no contexto das estruturas societárias modernas, em que os interesses patrimoniais são difusos e coletivos.
4. O problema da autoria em organizações complexas
Conforme destaca Rodrigo de Grandis - em sua tese de doutorado na USP em 2018 - um dos maiores entraves na repressão penal à criminalidade econômica reside na dificuldade de atribuir a autoria penal de forma legítima e fundamentada em ambientes corporativos. A noção tradicional de autoria direta, centrada no domínio do fato, é insuficiente para lidar com as dinâmicas das grandes corporações. Nesses contextos, prevalece a descentralização decisória, e a responsabilidade real se dilui entre diversos agentes com funções e graus de influência distintos.
5. A imputação objetiva e a necessidade de critérios rígidos
A teoria da imputação objetiva, conforme desenvolvida por Claus Roxin, oferece instrumentos teóricos mais adequados para lidar com os crimes econômicos. Essa teoria exige que a conduta do agente crie ou aumente um risco juridicamente desaprovado, cuja realização concreta deve ser atribuível ao agente. O PL 4.705/23, ao não incorporar essa estrutura analítica, falha em oferecer critérios seguros para a identificação do agente responsável, restringindo-se a uma formulação genérica que pode ser inócua na prática judicial.
6. A inadequação do projeto à realidade societária brasileira
O projeto desconsidera aspectos fundamentais da realidade societária brasileira, como os mecanismos de proteção aos minoritários, os deveres fiduciários dos administradores e a pluralidade de órgãos decisórios. Como observa a doutrina societária, a identificação do agente que efetivamente abusou de poderes administrativos requer uma análise detalhada da cadeia decisória, algo que o projeto não prevê. A ausência de previsão sobre a coautoria, autoria mediata ou responsabilidade por omissão agrava ainda mais esse cenário.
7. Comparação com modelos estrangeiros
Nos ordenamentos europeu e latino-americano, a tipificação da infidelidade patrimonial é acompanhada de uma construção jurisprudencial sólida que delimita sua aplicação. Na Alemanha, por exemplo, o §266 do StGB é interpretado em consonância com uma rica dogmática penal, o que não ocorre no Brasil. Sem o devido arcabouço doutrinário e jurisprudencial, a simples transposição normativa tende ao fracasso, podendo gerar arbitrariedade ou inefetividade.
8. Conclusão
Embora o PL 4.705/23 represente um esforço legítimo de atualização do Direito Penal frente à criminalidade empresarial, sua formulação atual não resolve o problema da autoria. Ao contrário, corre o risco de ampliar a insegurança jurídica e dificultar ainda mais a responsabilização penal efetiva. Urge que o legislador aprofunde o debate técnico, incorporando as contribuições da dogmática penal e do Direito Comparado, com vistas à criação de um tipo penal claro, objetivo e funcionalmente adequado à realidade corporativa brasileira.


