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Governança das contratações públicas na lei 14.133/21

Quem cuida da execução contratual decide o futuro da política pública? A nova lei exige mais que burocracia: impõe gestão com técnica e responsabilidade.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Atualizado às 11:28

O termo "governança" encontra-se bastante difundido no meio jurídico, principalmente diante do recente holofote que vem sendo lançado sobre as políticas ESG - Environmental, Social and Governance tanto no mercado privado quanto no âmbito das organizações públicas, mas a ideia de estruturação de processos para a garantia de resultados remonta ao surgimento do mercado de capitais (entre o final do século XIX e a década de 1930), quando a gestão de uma empresa não mais precisava ser exercida por seu proprietário1.

A crise do Wellfare State de 1980 evidenciou um Estado super inflado e endividado que passou a promover a desestatização de serviços por ele antes monopolizados, para se reservar ao papel de regulador dos mercados que passaram a atuar nas áreas por ele antes ocupadas.

Alex Fabiane Teixeira e Ricardo Corrêa Gomes2 propuseram uma interessante revisão conceitual sobre a governança pública, e, a partir de uma visão crítica, identificaram que, a partir da da crise de 1980, instaurou-se maior desconfiança entre o cidadão e o Estado que, por sua vez, estimulou a busca por instrumentos de accountability, diante da preocupação do titular do dinheiro público não apenas com a concretização das políticas públicas, mas também com a gestão eficiente de seu ativo.

Embora, atualmente, novos aspectos tenham sido incorporados ao conceito de governança, em especial relacionados à políticas de integridade e combate à corrupção, a garantia da eficiência administrativa almejada pelo titular do dinheiro público foi o estopim da preocupação com a governança pública, mencionada expressamente no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, de 19953.

O presente estudo se debruça no aspecto da governança pública relacionado à gestão eficiente do dinheiro público, que necessariamente perpassa as compras públicas, regulamentadas no Brasil desde o Império. 

O decreto 2.926/1862, tido como norma introdutora do procedimento licitatório no Brasil, detalhou regras contratuais, assim como diversas atribuições relacionadas à fiscalização dos contratos por condutores, o que foi mantido, com adaptações, pelo decreto 4.536/1922, durante a República que antecedeu a ditadura militar4.

Após a regressão sobre a publicidade e transparência das contratações públicas ocorrida durante o período ditatorial, percebida pela supressão de regras detalhadas acerca da execução de contratos públicos no decreto, com a redemocratização do país, voltou a haver explicitação de regras relacionadas à fase de execução dos contratos firmados pela Administração Pública. 

A lei 8.666/1993, editada na vigência da Constituição de 1988, já evidenciava alguma preocupação com instrumentos de governança, pois, muito embora não tenha feito referência expressa ao instituto, trazia disposições singelas sobre planejamento e controle das contratações, prevendo expressamente a obrigação de designar um representante da Administração para acompanhar e fiscalizar a execução contratual.

Ocorre que, quando da publicação da lei 8.666/1993, ainda havia resquícios de um diagnóstico realizado pelo Governo FHC sobre retrocesso ocorrido durante o período de redemocratização ensejador de encarecimento do custeio da máquina administrativa e de ineficiência dos serviços públicos5, que somente viria a ser tratado a partir da implementação da Administração Pública a partir do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado de 1995, que previu expressamente práticas de governança pública e contemplou a EC 19/1998, que consagrou o princípio da eficiência no caput do art. 37 da Constituição.

Após a consolidação de diversas práticas decorrentes da implementação da Administração Pública Gerencial e da atuação reiterada dos órgãos de controle externo em prol da eficiência nas contratações públicas, iniciaram a surgir normativos com instrumentos de governança, como a lei 13.303/16 (lei das estatais), o decreto Federal 9.203/17 (política de governança da Administração Pública Federal) e, por fim, a lei 14.133/21 (lei de licitações e contratos administrativos).

A lei 14.133/21, objeto de análise deste estudo, ao revogar os diplomas anteriores e consolidar o novo marco das contratações públicas, inaugurou um paradigma normativo centrado na gestão por resultados, no controle de riscos e na responsabilização funcional calcada na prevenção. A governança das contratações públicas, nessa nova ordem jurídica, deixa de ser um conceito abstrato e passa a constituir eixo estruturante de todo o ciclo contratual.

Esse novo modelo é evidenciado por diversos dispositivos da lei, que incorporam expressamente princípios e instrumentos de governança. O art. 11, por exemplo, prevê que os agentes públicos devem atuar com base nos princípios da governança pública, tais como o planejamento, a eficiência, o controle e a transparência. 

A exigência de planejamento prévio, consagrada em dispositivos como os arts. 17 a 20, deixa evidente que a governança sobre as contratações deve ter uma visão abrangente do processo, a partir de uma cadeia lógica de decisões estratégicas que compõem o ciclo de vida da contratação. 

Já o art. 169 dispõe sobre as três linhas de defesa nas contratações públicas, remetendo diretamente à lógica institucional de compliance, na qual a atuação direta dos servidores (primeira linha), o controle interno (segunda linha) e os órgãos de controle externo (terceira linha) funcionam de maneira integrada para garantir a conformidade e a integridade das contratações.

Nesse contexto, a figura do gestor e do fiscal de contrato, atuantes na primeira linha de defesa, ganha centralidade e passa a ser vista não apenas como mecanismo de controle da execução contratual, mas como elemento essencial para a efetividade da governança pública.

O art. 117 da lei 14.133/21 é emblemático nesse sentido, ao atribuir ao fiscal do contrato a responsabilidade pelo acompanhamento da execução contratual e pela adoção das providências necessárias à regularidade do ajuste. 

Complementarmente, o art. 7º, §3º, reconhece de forma expressa a separação entre as funções de gestor e fiscal, o que sinaliza uma estrutura funcional voltada à segregação de funções e à mitigação de riscos institucionais - lógica típica da governança.

Não por acaso, a própria exigência de capacitação e certificação técnica dos agentes públicos designados para essas funções, prevista nos arts. 7º, II, e 18, §1º, X, além do art. 173, reforça que o Estado espera desses servidores um desempenho qualificado, e, em contrapartida, assume o dever de estruturar mecanismos institucionais que garantam condições adequadas para o cumprimento dessas atribuições.

Ao tratar a gestão e a fiscalização contratual como instrumentos da governança, a nova lei rompe com a visão burocrática da fiscalização como mera formalidade e da gestão como simples encadeamento de atos administrativos. Ao contrário, a atuação desses agentes deve ser estratégica, técnica e contínua, funcionando como a principal barreira preventiva contra a má execução contratual, fraudes e desperdícios.

Portanto, a governança das contratações públicas na lei 14.133/21 não apenas estrutura um novo modelo decisório para a Administração Pública, mas redefine o papel dos agentes públicos envolvidos na execução contratual, exigindo deles não só conhecimento técnico e responsabilidade funcional, mas também atuação estratégica integrada aos objetivos institucionais do órgão ou entidade.

_________

1 LUNARDI, Guilherme Lerch. Um Estudo Empírico e Analítico do Impacto da Governança de TI no Desempenho Organizacional. Tese de doutorado. 2008. Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/13248;

2 TEIXEIRA, Alex Fabiane; e GOMES, Ricardo Corrêa. Governança Pública: uma revisão conceitual. ENAP Revista do Serviço Público - RSP, v. 70, n. 4, p. 519-550. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/jspui/handle/1/5422;

3 MARX, César Augusto. A Nova Governança Pública e os princípios ESG. Controle Externo: Revista do Tribunal de Contas do Estado de Goiás, Belo Horizonte, ano 3, n. 6, p. 115-125, jul./dez. 2021. Disponível em: https://revcontext.tce.go.gov.br/index.php/context/article/view/140;

4 ALVES, Ana Paula Gross, A evolução histórica das licitações e o atual processo de compras públicas em situação de emergência no Brasil, REGEN Revista de Gestão, Economia e Negócios Vol. 1 No. 2 (2020). Disponível em: https://repositorio.idp.edu.br/handle/123456789/3567

5 BRASIL. Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado de 1995. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/fhc/plano-diretor-da-reforma-do-aparelho-do-estado-1995.pdf;

Michel De Cesare

VIP Michel De Cesare

Procurador do Ilhabelaprev. Membro da Comissão de Direito das MPEs da OAB/SP. Especialista em Direito Tributário. Cursando especialização em Direito Administrativo.

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