O IOF e a arte de furtar - A falácia do discurso "pobres contra ricos"
IOF: O imposto que se disfarça de Justiça fiscal, mas esconde sua face regressiva nos preços que todos pagam. Como em A Arte de Furtar, o furto ocorre com aplausos e sem escândalo.
quarta-feira, 9 de julho de 2025
Atualizado em 8 de julho de 2025 14:27
Há livros que resistem ao tempo não porque registram um momento histórico, mas porque seguem descrevendo com espantosa atualidade os mecanismos permanentes do poder. A Arte de Furtar, sátira portuguesa do século XVII, é um desses casos. Apresentada com precisão e humor por João Ubaldo Ribeiro, a obra desnuda os vícios institucionais de uma administração pública que extrai, com zelo e cerimônia, aquilo que o súdito entrega sem se dar conta.
Em um de seus trechos mais citados, lê-se que "há uns que furtam por autoridade, outros por necessidade, estes por inclinação, aqueles por profissão, muitos por ocupação, e quase todos por costume". A frase poderia constar, sem ruído, em uma análise do sistema tributário brasileiro. Quase todos pagam. Mas só alguns percebem.
A tentativa recente de aumento do IOF, feita por meio dos decretos 12.466 e 12.467 e posteriormente derrubada pelo Congresso Nacional, foi apresentada como um gesto de Justiça fiscal. O argumento era simples: aumentar a tributação sobre os "ricos" para compensar perdas de arrecadação e manter o equilíbrio orçamentário. Mas como costuma ocorrer quando se trata de tributos indiretos, a aparência da medida esconde seus efeitos práticos. Não se trata de um embate entre ricos e pobres. Trata-se, mais uma vez, de um experimento de extração fiscal com efeitos regressivos mascarados.
Entre os dispositivos mais problemáticos estava a criação de uma nova hipótese de incidência sobre o desconto de recebíveis. Essa prática, amplamente utilizada por empresas brasileiras, especialmente pequenas e médias, passaria a ser formalmente tratada como operação de crédito para fins de IOF. O impacto seria imediato: aumento do custo de capital de quem depende desse mecanismo para manter o fluxo de caixa num ambiente já pressionado por juros elevados. O tributo, nesse caso, atuaria como um desincentivo à liquidez empresarial e, inevitavelmente, pressionaria os preços de bens e serviços no varejo.
Ao lado disso, os decretos aumentavam o IOF incidente sobre determinadas operações de câmbio, elevando de 0,38% para cerca de 3,5% a alíquota aplicável a cartões internacionais, cheques de viagem, compras de moeda estrangeira e remessas ao exterior para pagamento de serviços diversos, inclusive educacionais. Em tese, essas medidas atingiriam contribuintes de maior renda. Mas, como quase tudo no sistema tributário brasileiro, o impacto tende a se difundir.
O ponto central, portanto, não é quem paga mais em valor absoluto. É quem paga mais sem saber que está pagando. O brasileiro de baixa renda, aquele que compromete a maior parte do que ganha com bens essenciais, transporte, alimentação e serviços, é estruturalmente o mais vulnerável a esse tipo de tributação. Ele não envia dinheiro ao exterior, não estrutura holdings, não planeja tributação global. Mas consome produtos cujo custo embute câmbio, logística, crédito e insumos importados. E carrega, invisivelmente, a carga tributária diluída nesses elos.
Dizer que o aumento do imposto afetaria apenas os mais ricos é, portanto, ignorar como a tributação indireta funciona. É fingir que o IOF incide sobre pessoas, quando na verdade ele incide sobre fatos jurídico-tributários definidos em lei, como a liquidação de câmbio ou a antecipação de recebíveis, e não diretamente sobre a renda ou a condição pessoal do contribuinte. Como esses fatos se encadeiam dentro da estrutura econômica, o impacto do tributo se difunde, muitas vezes atingindo consumidores que não realizam diretamente o fato gerador, mas arcam com seu custo embutido nos preços dos bens e serviços. A cadeia chega ao varejo. E o varejo chega a todos, inclusive a quem jamais ouviu falar de IOF.
É comum afirmar que os contribuintes de maior renda arcariam com a maior parte do impacto do aumento do IOF, especialmente nas operações de câmbio. Mas esse raciocínio parte de uma premissa incorreta. Os decretos derrubados não alteravam o IOF incidente sobre remessas para investimento ou aplicações financeiras no exterior. Os aumentos se concentravam em remessas para pagamento de serviços no exterior, incluindo educação, viagens e uso de cartões internacionais, que representam um espectro muito mais amplo e heterogêneo de consumo.
Na prática, o efeito fiscal dessas medidas recairia sobre operações de natureza consuntiva, acessadas por uma ampla faixa da população que utiliza serviços digitais internacionais, consome educação a distância em plataformas estrangeiras, assina aplicativos de streaming ou adquire bens e serviços do exterior sem qualquer estrutura de planejamento tributário. Assim, não se pode afirmar que os mais ricos seriam os mais atingidos, muito menos que a medida teria caráter distributivo. A seletividade formal da alíquota não corresponde à seletividade real da renda.
O discurso de que esse seria um imposto "só para os ricos" é, portanto, mais político do que técnico. Ele funciona bem no jogo simbólico da opinião pública, mas fracassa quando exposto à dinâmica real da economia brasileira. E enquanto seguimos discutindo quem são os ricos, os pobres continuam sendo tributados por vias que não enxergam, não compreendem e muitas vezes sequer sabem que existem.
O episódio do IOF é apenas mais um capítulo de uma longa tradição de extração fiscal disfarçada de neutralidade técnica. Como adverte, com mordacidade, o livro citado no início deste artigo, o furto feito com arte é aquele "sem escândalo, sem violência e com aplauso" e por isso mesmo é o mais seguro, o mais louvado e o mais costumeiro de todos. Não se trata de violar a lei, mas de se valer dela com engenho, explorando a ignorância ou a passividade dos que, sem se dar conta, sustentam o sistema tributário que os oprime.
José Andrés Lopes da Costa
Advogado e mestre em Direito Tributário Internacional e Desenvolvimento pelo IBDT-SP.


