Fraude e desigualdade: O labirinto do franchising no Brasil
Reflexão sobre o sistema forjado pelas estruturas do poder político econômico e que se tornou instrumento de ruína de cidadãos que pertencem, majoritariamente, à base da pirâmide social.
quarta-feira, 9 de julho de 2025
Atualizado em 17 de julho de 2025 10:23
Surgimento das franquias no Brasil em 1991
O modelo de franquias brasileiro se inspirou na iniciativa norte americana que criou uma solução prática para empresas que desejavam expandir seus negócios sem arcar diretamente com todos os ônus estruturais dessa expansão. Expandir para outros estados e outras cidades nem sempre é um esforço com o qual o empresário está disposto a arcar para aumentar seus lucros. O franchising surgiu como alternativa regulamentada para essas dificuldades operacionais, possibilitando à matriz a amplificação dos lucros através da autorização do uso de seu nome, sua marca, padrão de comércio e eventuais segredos industriais inéditos, em troca de um pagamento mensal - os famosos royalties.
Nesse modelo, o risco financeiro de cada novo estabelecimento o é totalmente transferido ao franqueado. Mas no Brasil o nosso ordenamento jurídico permite que esse risco seja transferido além dos limites mais basilares da ética, o que tento demonstrar nesse artigo.
A legislação americana estruturou esse modelo através de uma norma federal voltada à transparência da relação entre as partes e com forte viés de proteção ao franqueado. Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, a lei Federal prevê regras, diretrizes obrigatórias e requisitos mínimos para que o contrato possa ser firmado, como a entrega prévia, ao candidato a franqueado, do documento nomeado Franchise Disclosure Document, que contém obrigatoriamente diversas informações detalhadas, e oficialmente auditadas, sobre a franqueadora e todas as empresas do seu grupo econômico, incluindo as taxas (%) de sucesso e de fracasso das unidades franqueadas, dados financeiros consolidados verificáveis através de auditoria independente, quaisquer litígios judiciais envolvendo a franqueadora e diversos outros elementos que permitem, ao interessado, tomar uma decisão inteiramente informada para, só então, assinar o contrato.
A primeira lei brasileira de franquias, que vigorou de 1991 a 2020, surgiu por aqui logo após a redemocratização, quando o Brasil se recuperava da "década perdida", marcada por forte crise econômica e empobrecimento da população nos anos 80. Em 2020 entrou em vigor a nova lei, revogando a anterior, sem mudanças significativas a título de proteção dos franqueados, mas que trouxe alterações sutis que protegem ainda mais as franqueadoras. Basta uma comparação atenta entre os requisitos da COF da lei revogada e os atuais.
A lei brasileira de franquias
No Brasil, a despeito de ter se inspirado na lei americana, a lei de franquias não replicou os itens assecuratórios mais importante para os franqueados, existentes na lei inspiradora.
Nossa legislação prevê a entrega de uma COF - Circular de Oferta de Franquia, documento com informações obrigatórias, muito mais enxuta que a americana e sem mecanismos semelhantes que possibilitem garantia de veracidade das informações fornecidas pela franqueadora. As franqueadoras brasileiras elaboram suas COFs com os requisitos legais obrigatórios mínimos, que não protegem, de fato, os franqueados, sem as informações que o franchising americano considera necessárias a uma decisão livre e esclarecida que evite surpresas à parte mais vulnerável a armadilhas contratuais.
A título de exemplo, enquanto a atual lei 13.966/19 exige apenas balanços e demonstrações financeiras da empresa franqueadora, sem necessidade de qualquer autenticidade das informações prestadas, o "Item 21" do FDD - Franchise Disclosure Document exige que a franqueadora apresente balanço patrimonial, demonstrações de resultados, mutações do patrimônio líquido e fluxos de caixa para cada um dos últimos três exercícios fiscais, todas devidamente auditadas por auditor independente certificado pelo governo (CPA), segundo os princípios contábeis aceitos no país (US GAAP) e normas de auditoria aplicáveis. Outro exemplo que demonstra a ampla margem de interpretação da lei brasileira, para que a franqueadora oculte dados importantes do candidato a franqueado, é a ausência da exigência de descrição do mercado (nível de desenvolvimento, concorrência, público-alvo, sazonalidade) - não replicada na nossa lei de franquias.
Além de conter mais essas e outras exigências, do que a lei brasileira, as exigências previstas pela Franchise Rule não apenas indicam de forma objetiva cada informação obrigatória, mas carregam uma construção semântica intrinsecamente protetiva aos interesses do candidato a franqueado. Em cada item, observa-se que a construção do enunciado vai além de meras exigências e previsões formais, incorporando conceitos gerais e abertos que antecipam potenciais tendências de prejuízo futuro e impõem ao franqueador o dever de clareza em diversos aspectos. Enquanto aqui, a legislação brasileira possui uma redação genérica para boa parte dos requisitos da COF, que podem ser cumpridos sem maior detalhamento e profundidade pelas franqueadoras. Itens como "histórico resumido do negócio franqueado" ficam a total cargo de quem redige a COF, sem critérios mínimos desse histórico que, já avisa a lei, pode ser "resumido" e conter os dados que a franqueadora entender melhor.
O candidato a franqueado brasileiro não tem, na verdade, acesso a nada além do histórico narrativo produzido exclusivamente pelo próprio franqueador e sem informações detalhadas, objetivas e verificáveis, como seria justo. Essa sintetização não é obra do acaso, como explico mais adiante.
Mitigação do direito de anulação por vício de consentimento previsto em lei
No Direito Civil brasileiro, de modo geral, quando um dos contratantes se vê lesado por vício no seu consentimento, pode pleitear a anulação do contrato dentro do prazo decadencial de quatro anos, contados da data de assinatura. Esse vício contratual, em regra, não se convalida com o tempo, mas pode ser confirmado espontaneamente pelo contratante prejudicado e há, ainda, previsão de que se parte do contrato for cumprida pelo próprio prejudicado, ciente daquele vício, o contrato se confirma tacitamente.
O contrato de franquia, porém, embora formalmente classificado como contrato empresarial e sujeito ao regime geral do direito civil, demonstra-se claramente incompatível com a aplicação pura e simples da regra geral de convalidação tácita de vícios do consentimento. Isso porque, não só na prática, mas também na hipótese normativa que o legitima, trata-se de um tipo de contrato que compromete consideravelmente o patrimônio de uma das partes para poder aderir a ele e tomar uma decisão de risco com base na confiança e na boa-fé objetiva, além da aparente proteção da lei de franquias, da COF e do contrato.
A lei que deveria proteger, tornou-se, portanto, um instrumento de legitimação de vícios ocultos, especialmente pela falta de informações que o legislador brasileiro escolheu não inserir na norma como essenciais (falo sobre isso em tópico próprio). Trata-se de informações que são, justamente, cuidadosamente ocultadas dos candidatos à franquia, e até mesmo do público em geral, classificadas como informações privadas e segredo comercial(!), que são guardadas a sete chaves e, por isso tudo, praticamente impossíveis de serem acessadas de forma independente, mesmo após a assinatura do contrato.
No entanto, como o direito civil já prevê, escolha sem informação não é decisão, mas mera ilusão.
No contrato de franquias, em que o candidato só tem a opção de aderir ou não, há terreno fértil para que essa adesão seja fundada em erro essencial sobre uma realidade, muitas vezes perigosa, que não foi disponibilizada ao franqueado. Isso porque a própria legislação permite à franqueadora não inserir na COF elementos vitais para avaliação irrestrita das particularidades e peculiaridades empresariais daquela franquia específica.
Em outras palavras, a própria lei permite que o franqueado seja induzido a erro sobre a realidade do negócio, pois as informações mais importantes que a COF estipula são totalmente manipuláveis e inverificáveis, existindo ampla margem narrativa para a criação de uma falsa percepção de segurança e sucesso e ocultação de cenários reais sobre a viabilidade comercial da unidade franqueada.
A dimensão real dessas distorções linguísticas dispostas na lei brasileira pode ser facilmente constatada mediante uma simples comparação entre as exigências da lei de franquias americana, para a FDD a ser entregue aos interessados, e a norma brasileira, quanto às exigências para a COF. São documentos que, em teoria, têm a mesma função. Mas na prática, não têm. E, para agravar mais a disparidade entre o sistema de franquia brasileiro e aquele que a "inspirou", dois detalhes precisam ser ressaltados: (i) nos EUA é possível que cada Estado complemente, por suas próprias leis, as garantias já previstas na lei federal, ao contrário do Brasil, que não permite essa regulamentação; e (ii) o governo norte americano mantém um órgão forte e rígido de fiscalização do sistema de franquias, que cuida para que as franqueadoras não abusem de seu poder econômico sobre os franqueados, coibindo prejuízos injustos.
Aqui, certamente nossos parlamentares não permitiriam a criação de um órgão regulador. Isso porque quem faz lobby é quem tem poder e quem tem poder é quem tem dinheiro.
A venda da justiça
Desde 1988, o Brasil consolidou-se como um Estado fundado na lei, oficializando o sistema da civil law. Para eventuais leitores não familiarizados, isso significa que o nosso sistema jurídico é baseado principalmente em leis escritas e codificadas objetivamente. Originariamente, no Brasil, todo poder emana do povo que o exerce através de representantes eleitos ou diretamente, conforme previsões da Constituição - como por plebiscito, por exemplo.
No entanto, nesses 37 anos de Constituição Federal, estamos assistindo a um movimento crescente de fortalecimento normativo da jurisprudência. Ou seja, decisões dos tribunais passaram a ter força vinculante, aproximando alguns aspectos do nosso sistema ao da common law, modelo jurídico originário da Inglaterra baseado em precedentes judiciais.
Assim, a jurisprudência brasileira vem deixando de ser referência e meio de pacificação de controvérsias sobre leis objetivamente criadas, para se tornar, em determinadas situações, fonte obrigatória de direito. Teses de repercussão geral, temas repetitivos, súmulas vinculantes e jurisprudências consolidadas passaram a não apenas suprir lacunas legais, mas também a redefinir o sentido de dispositivos legais.
Ocorre que esse modelo favorece a manutenção e até o agravamento das desigualdades, a depender da lógica história sob a qual o país foi construído. Sob essa ótica, a aproximação ao modelo common law pode transformar a Justiça Civil brasileira em instrumento indevido de favorecimento da desigualdade que deveria, ao menos, conter.
Essa inadequação está refletindo seriamente no setor de franquias. A jurisprudência pacificou a redução do prazo decadencial para pleitear a anulabilidade do contrato, de quatro anos, para seis meses, geralmente, e definiu como automaticamente presumida a ciência do franqueado, sobre seu vício de consentimento, para a partir da assinatura do contrato.
Esse fenômeno, porém, que prejudica imensamente os franqueados, não ocorre em um vazio de poder.
O acesso pleno e facilitado aos tribunais superiores e à capacidade de influenciar a formação jurisprudencial, certamente são um privilégio em qualquer lugar do mundo. Lutar pelos seus direitos na justiça, com armas de qualidade, é uma vantagem para os que estão no topo. O acesso total aos mecanismos da jurisdição, com defesa técnica de qualidade, é para quem o dinheiro não é um problema - e não é esse o caso de franqueados no geral e menos ainda quando eles se encontram falidos.
Enquanto cidadãos pobres mal conseguem contratar um advogado generalista experiente ou arcar com despesas de locomoção do causídico até o fórum para despachar com o juiz, grandes empresas e pessoas influentes contam com bancas de advocacia renomadas, rapidez na elaboração de memoriais, acesso fluido a gabinetes, transporte aéreo imediato para sustentações orais e tradição em despachar pessoalmente com ministros de tribunais superiores.
Melhor dizendo, quem define os contornos da jurisprudência, portanto, são aqueles que detêm o poder econômico. O sistema de precedentes trata-se, provavelmente, do sistema jurídico preferido de quem não enfrenta restrições financeiras para ações judiciais. Leis objetivas e elaboradas por efetivos representantes do povo são menos interessantes para quem não se enquadra dentre esses destinatários.
E, como ocorre com a lei de franquias, a jurisprudência brasileira tornou-se um instrumento de controle e hegemonia, servindo aos interesses do franchising e de suas principais beneficiárias, as franqueadoras.
O franqueado, por sua vez, deposita confiança na proteção que a lei de franquias aparentemente lhe garante, acreditando que não precisará contar com o amparo de um Poder Judiciário cronicamente sobrecarregado, com número de magistrados proporcionalmente insuficiente para a população de um país com ampla proteção de direitos e garantias fundamentais e progressivo aumento de direitos civis - graças aos constituintes.
Esse quadro de saturação leva ao fortalecimento de uma jurisprudência defensiva, não declarada, mas com trajes de políticas de redução da judicialização.
Apresentada como necessário à racionalização do Poder Judiciário, essa medida trará efeitos devastadores a longo prazo para a nação. Enquanto grandes empresas e conglomerados econômicos contam com recursos técnicos e financeiros para defender juridicamente seus interesses da melhor forma imaginável, em todas as instâncias e até o último dos Embargos de Declaração, os que fazem parte da base da pirâmide social encontram cada vez mais barreiras do sistema de justiça para a tutela de seus direitos.
A exemplificar, no tema franquias, o Judiciário adota um posicionamento de contenção que, intencional ou não, acaba por preservar as desigualdades sociais e regionais - as franqueadoras estão sediadas, em geral, em grandes centros urbanos, enquanto as unidades franqueadas estão espalhadas por cidades de todos os tamanhos pelos rincões do Brasil.
Embora a própria lei de franquias já mitigue o direito de anulação ao não exigir informações essenciais e ao estruturar um modelo contratual que permite a ausência de informações, o sistema judiciário aprofunda essa desigualdade, por exemplo, ao reduzir o prazo decadencial para pleitear a anulação e ao presumir a ciência do vício, pelo franqueado, desde a assinatura do contrato. Além disso, a jurisprudência exige que as dificuldades que deram causa à falência do franqueado decorram diretamente das informações omitidas, quando, na realidade, tais omissões viabilizam o insucesso, mas não constituem sua causa imediata - o que mostra o grau de injustiça desse requisito criado jurisprudencialmente.
Em última análise, a deferência judicial ao poder econômico no franchising não se explica apenas pela capacidade técnica superior das bancas de advogados, mas também pela própria lógica sistêmica de autopreservação de um judiciário sobrecarregado que não permite condições de aumento proporcional de seu efetivo pelas questões financeiras que se formaram ao longo dos anos. Proteger os vulneráveis, nesse caso, significaria enfrentar a avalanche de litígios que o déficit de magistrados não propicia. Assim, tem se tornado mais fácil sacrificar os direitos dos mais desfavorecidos, também no direito de franquia.
A justiça passou a usar uma nova "venda", que a impede de enxergar os sistemicamente prejudicados, em fidelidade ao "pacta sunt servanda" - expressão jurídica latina que significa que o que foi pactuado deve ser cumprido.
O desequilíbrio entre o franqueado e a franqueadora antes, durante e depois do contrato
É importante refletir que o franqueado não pode saber, ao assinar o contrato, que determinadas informações seriam relevantes para sua decisão esclarecida, sem ter acesso a elas. É tarefa impossível. Trata-se de informações relevantes sobre processos judiciais contra outros franqueados, reclamações e índices reais de falência das unidades, que permanecem ocultas porque a COF brasileira não exige tais dados e nem comprovação de autenticidade dos que são exigidos, ao contrário da legislação americana.
Sem esses elementos, dentre vários outros, o franqueado entra no negócio confiando pura e simplesmente na narrativa de sucesso construída pela franqueadora.
E, mesmo quando constata que o negócio não é tão próspero quanto lhe foi vendido, sua reação imediata, na maioria das vezes como pequeno empreendedor sem outra fonte de renda, não é pensar a anulação do contrato, mas acreditar que poderá reverter o quadro comercial de sua unidade.
Isso ocorre tanto pela esperança, típica do nosso povo, quanto porque negócios de comércio, em geral, não geram lucro nos primeiros meses, menos ainda com os investimentos iniciais e altas taxas contratuais a pagar. Já tendo comprometido todas as suas economias com taxas iniciais, reformas, mobiliário, estoque, funcionários e despesas operacionais, resta ao franqueado pouca ou nenhuma condição financeira de valer-se da Justiça . Além disso, há o forte receio de multas elevadas e outros vários prejuízos, em um cenário de total insegurança sobre eventual procedência de uma ação judicial, quando a jurisprudência desestimula os franqueados, de maneira altamente eficaz.
E o que ocorre é que a esperança do pequeno empreendedor ludibriado acaba punida pelo Poder Judiciário que deveria protegê-lo.
A lei de franquias impõe ao candidato a confiança legítima nas informações da Circular de Oferta de Franquia e na narrativa construída pela franqueadora. A boa-fé objetiva estabelece dever de lealdade, de modo que, mesmo quando o franqueado começa a perceber sinais de que algo não está conforme prometido, sua reação natural não é concluir ter sido vítima de fraude, mas continuar acreditando que, com esforço e dedicação, o negócio poderá prosperar e o prejuízo suportado pode ser recuperado.
Nessa situação, a esperança não é a confirmação tácita do vício de consentimento, mas sim expressão de fé na própria humanidade. Punir essa ilusão, convertendo-a em confirmação tácita pelo cumprimento parcial do contrato ou ciência presumida do vício, é ignorar a realidade concreta das relações de franquia no Brasil.
Na prática, quando o franqueado percebe a dimensão do problema e sua vinculação com o vício de consentimento - geralmente muito depois de seis meses - já perdeu o direito de anular o contrato, diante de prazo decadencial curto e ciência presumida do erro induzido, criados pela jurisprudência.
Em última análise, essa contradição revela o caráter patrimonialista não só da lei de franquias, mas do próprio sistema jurídico brasileiro, que continua tratando como equivalentes partes brutalmente desiguais, perpetuando injustiças sob o discurso formal da autonomia da vontade.
Um recorte histórico e sociológico brasileiro e seus reflexos na lei de franquias
É preciso, ainda, trazer contornos importantes para esse quadro preocupante. "Corta" para o período pós redemocratização brasileira, quando o primeiro projeto de lei de franquias, do deputado federal Magalhães Teixeira (SP), em 1991, declaradamente buscou evitar maiores proteções aos franqueados.
Em seu projeto de lei inaugural do setor de franquias, o deputado proponente afirmou, por escrito em com todas as letras, que buscava "evitar o excesso de intervencionismo nas relações entre franqueado e franqueador" para não tornar a lei um "empecilho" para esse novo modelo de negócio.
Seu objetivo expresso era incentivar as empresas interessadas em expandir como franqueadoras, sem as dificuldades próprias de um negócio balanceado entre ambas as partes. No projeto, que se tornou lei, não foi reproduzido o mesmo nível de exigência e cuidados protetivos como da legislação americana.
Provavelmente, a prioridade do parlamentar era viabilizar e atrair o modelo de negócio ao país naquele período, buscando efeitos imediatistas, mas sem qualquer preocupação como o que certamente ocorreria décadas depois, como o que somente está vindo à tona porque uma franqueada da Cacau Show furou a bolha do sistema.
Como se sabe, desde a formação do Estado brasileiro, o Poder Legislativo historicamente serve para assegurar privilégios de grupos dominantes, consolidando a desigualdade social como traço permanente do país. Os parlamentares brasileiros, também em 1991, tinham suas preferências pessoais, econômicas e ideológicas e se reconheciam em determinadas categorias da sociedade, o que influenciava e ainda influencia seus projetos de lei.
De lá para cá, nada mudou em relação a quem domina o poder político. Mas a cultura do franchising se transformou profundamente, passando de um modelo emergente, voltado a interessados em empreender em determinado ramo, para um sistema altamente profissionalizado, utilizando-se de um marketing poderoso e construção de narrativas de sucesso, na prospecção ativa de franqueados que só querem ter uma fonte de renda segura.
O estilo de prospecção que se consolidou no Brasil, e que predomina fortemente até hoje entre a categoria das franqueadoras, principalmente com a influência da cibercultura intensa, é de empresas que abordam ativamente os possíveis franqueados e se utilizam de sistemas de vendas que vão muito além de simplesmente ofertar o negócio a interessados espontâneos.
Utiliza-se de comunicação persuasiva planejada, baseada em técnicas de marketing e comunicação de framing, construindo uma imagem de sucesso, estabilidade e reconhecimento. Via de regra, a franqueadora possui um departamento de prospecção e expansão ativo. Existem, até mesmo, empresas que são altamente especializadas nesse serviço para franquias, se comprometendo com metas ousadas e estratégias agressivas de vendas.
As franqueadoras contam, por exemplo, com assessorias de imprensa que as inserem em notícias e matérias em veículos de mídia convencionais, além de canais especializados, como Pequenas Empresas & Grandes Negócios, com conteúdo que exalta seus resultados positivos e potencial de mercado. Mas nunca mencionam qualquer índice de fracasso, como seria de se esperar em um modelo baseado na boa-fé e transparência que é terreno fértil para grande desequilíbrio contratual.
Há um mercado muito rico de divulgação de franquias, com realização de grandes feiras atrativas para novos "investidores", com estandes chamativos e vendedores treinados a garantir uma imagem de franquia de sucesso.
Há uma associação poderosa de defesa dos interesses das franqueadoras, que organiza eventos frequentes, feiras e exposições de grande porte para divulgação das franquias, com marketing agressivo, prêmios diversos para as diversas categorias, comissões focadas em defender os interesses das suas representadas, cursos de capacitação de vendas de franquias sob os mais variados enfoques, e mais uma gama de itens de suporte para o setor.
Os franqueados, por seu turno, possuem algumas associações, descentralizando a força da representatividade, sem grande influência e que certamente são monitoradas de perto.
Sites especializados em investimentos - alguns dedicados exclusivamente ao franchising - que produzem conteúdos sobre o setor, divulgam cases de sucesso e apresentam matérias como "as 15 franquias mais promissoras para o próximo ano" ou listas segmentadas por faixa de investimento: até 30 mil, 100 mil, 250 mil reais, e assim por diante. Esses veículos certamente não se sustentam sozinhos.
Todo esse aparato comercial é potencializado pelos algoritmos das redes sociais e dos sites de pesquisa, além dos anúncios pagos em todas as plataformas possíveis, que entregam as "oportunidades imperdíveis" diretamente a quem apenas "pensou" em pesquisar sobre franquias.
Ou seja, a atual situação econômica e social brasileira, marcada por um mercado saturado de microempreendedores carentes de formação gerencial sólida, combinada com a consolidação de um sistema de prospecção agressiva e persuasiva das franqueadoras, cria um ambiente estrutural de vulnerabilidade dos possíveis franqueados.
Esse panorama é totalmente distinto de quando a primeira lei de franquias surgiu no Brasil, época em que o franchising ainda estava em formação. A nova lei de franquias, de 2020, replica a anterior sem alterações significativas para os franqueados e, se for analisada bem de perto, até trouxe ainda mais proteção às franqueadoras para a proteção no que diz respeito ao dolo na omissão de informações.
Hoje, porém, essa combinação de tecnologia, mídia direcionada, uma legislação contida e que histórica e declaradamente pretende proteger as franqueadoras, transforma potenciais franqueados em alvos fáceis de um modelo de negócio que os protege muito pouco, ou praticamente não os protege, e favorece majoritariamente aos grupos econômicos empresariais que lucram tanto com o sucesso quanto com a falência de uma classe de (muito) menor poder aquisitivo.
Conclusão
Em última análise, a legislação e o sistema de justiça brasileiro, no que se incluem as câmaras de arbitragem, tornam esses microempreendedores - já vulneráveis - instrumento de "lucro sem risco" para as franqueadoras, perpetuando um modelo de exploração protegido pela máxima da liberdade contratual e capacidade civil plena dos contratantes.
A jurisprudência ignora a realidade sócio econômica estrutural desse setor.
O prazo de seis meses, que representa 1/8 do prazo originariamente cabível para anulação de contratos, funciona como obstáculo criado à tutela de direitos que são a base da sociedade igualitária, nos termos dos objetivos e fundamentos da Constituição Federal. Validam-se relações contratuais marcadas por forte desigualdade em diversos aspectos. Em vez de garantir equilíbrio contratual, o sistema jurídico brasileiro transforma a boa-fé objetiva em escudo para práticas potencialmente abusivas permitindo o desfalque financeiro de uma quantidade grande de cidadãos, por sua natureza, já inseridos em um contexto de desigualdade econômica perante as franqueadoras.
Nada deveria escapar do crivo da boa-fé, nem mesmo para proteger o Poder Judiciário da crescente judicialização, natural no contexto de um país de dimensões como o nosso e com a magnitude de direitos que aumentam continuamente desde 1988.
Ao final, os franqueados são relegados à própria sorte e sujeitos a um sistema que não garante justiça social ou distributiva, preferindo o acatamento a uma liberdade contratual predatória e uma capacidade de decisão não tão plena quanto parece. Os seus patrimônios são revertidos às franqueadoras, deixando-os em completo desfalque financeiro e com diversos reflexos negativos em suas vidas, porque confiaram que a lei e o Poder Judiciário os protegeria de algo que sequer conheciam.
___________
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 4 jul. 2025.
BRASIL. Lei nº 13.966, de 26 de dezembro de 2019. Dispõe sobre o sistema de franquia empresarial. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 dez. 2019. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13966.htm. Acesso em: 4 jul. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.955, de 15 de dezembro de 1994. Dispõe sobre o contrato de franquia empresarial. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 dez. 1994. Revogada. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8955.htm. Acesso em: 4 jul. 2025.
SISTER, Tatiana Dratovsky. Contratos de franquia: origem, evolução legislativa e controvérsias. 2016. Dissertação (Mestrado em Direito Comercial) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/handle/handle/23188. Acesso em: 4 jul. 2025.
UNITED STATES. Code of Federal Regulations. Title 16 - Commercial Practices. Part 436 - Disclosure Requirements and Prohibitions Concerning Franchising (Franchise Rule). [S.l.], [20--?]. Disponível em: https://www.ecfr.gov/current/title-16/chapter-I/subchapter-D/part-436. Acesso em: 4 jul. 2025.
UNITED STATES. Federal Trade Commission. Franchise Rule Compliance Guide. [S.l.], [s.n.], [20--?]. Disponível em: https://www.ftc.gov/system/files/documents/plain-language/bus70-franchise-rule-compliance-guide.pdf. Acesso em: 4 jul. 2025.
BRASIL. Congresso Nacional. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei das Franquias de 1991: manifestação do deputado autor do projeto. Diário do Congresso Nacional, Brasília, DF, p. 62/272, 09 abr. 1991. (página 62/272, 2º parágrafo) Disponível em: https://imagem.camara.leg.br/Imagem/d/pdf/DCD09ABR1991.pdf#page=60. Acesso em: 4 jul. 2025.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2011. v. 1. (https://www.academia.edu/38061688/A_crítica_da_razão_indolente_contra_o_desperdício_da_experiência, acesso em 04/07/2025)


