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A ilegalidade da prova obtida mediante tortura

O STJ, ao analisar o HC 933.395-SP, disse óbvio: São ilegais provas e condenação lastreada em prova obtida mediante tortura.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Atualizado às 13:41

Introdução

A 5ª turma do STJ, em 26/11/24, julgou o habeas corpus 933.395-SP, cuja relatoria incumbiu ao ministro Ribeiro Dantas. O writ, manejado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo em face de acórdão exarado por turma criminal do TJ/SP, versou sobre a ilegalidade da confissão e conteúdo probatório obtido por meio de violência física e tortura perpetuada pela polícia militar do Estado de São Paulo. 

O julgamento do habeas corpus deu azo ao destaque que constou no informativo de jurisprudência 836, de 10/12/24, assentando que 'a abordagem policial sem fundada suspeita e com emprego de violência física, tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante configura violação aos direitos humanos e invalida as provas obtidas, as quais devem ser desentranhadas do processo.' 

O leading case envolveu o contexto de suposta prática do delito de tráfico ilícito de entorpecentes. Conforme aludido nos autos, o paciente teria sido abordado por guarnição da polícia militar do Estado de São Paulo após denúncia anônima. A busca pessoal teria sido realizada sem reação significativa do paciente e sem que houvesse sido encontradas substâncias ilícitas em sua posse.

Somente após as sucessivas agressões físicas pela guarnição condutora da busca pessoal é que o paciente teria indicado a localização de uma sacola, próxima a uma árvore, contendo substâncias entorpecentes em seu interior. Conforme narrado no voto do exmo. ministro relator: 

"Também mediante emprego de violência, o acusado entregou quantia em dinheiro aos agentes que, salientou o voto vencido, não foi registrada na ocorrência policial. O voto narra, ainda, uma série de agressões feitas ao paciente quando este já se encontrava rendido pelas autoridades policiais: estrangulamento, murros e chicotada nas costas; todas elas compatíveis com as lesões identificadas no paciente a partir do exame de corpo de delito." 

Foi possível averiguar a situação de ilegalidade das provas obtidas em razão de a violência física e a tortura praticadas pelos policiais terem sido capturadas pelas câmeras corporais, cuja utilização pelas forças policiais restou devidamente regulamentada pela portaria 648/24, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, e que encontra resistência em algumas camadas dos atores da segurança pública dos Estados.

As imagens demonstraram, ainda, que os policiais tentaram dificultar por vezes a captura das filmagens, conforme asseverado no acórdão do STJ:  

"Os agentes policiais envolvidos na abordagem tentaram auxiliar na execução e impunidade da violência bloqueando a captura de imagem por sua câmera corporal ou apagando a lanterna para que a imagem ficasse escura. Assevera que as mídias foram encaminhadas sem áudio pela Polícia Militar, exceto por trecho que continha a confissão do flagranteado após as agressões." 

Após a detida análise do writ, a concessão da ordem foi dada de ofício pela Corte Cidadã, declarando a nulidade das provas obtidas por meio de violência e delas derivadas, absolvendo o paciente.

A decisão prolatada fulcra-se na vedação, portanto, da admissão e valoração de provas obtidas por meio ilícito, notadamente com a utilização de tortura durante a abordagem para a consecução de confissão e localização de entorpecentes.

A questão enfrentada nesse artigo se assenta em analisar o perigoso cenário jurisdicional no qual se faz necessário submeter um caso de provas obtidas mediante tortura, método que foi expurgado do direito há séculos, a um Tribunal de instância superior para que, notadamente, ele diga o óbvio.

Em um Estado Democrático e de Direito, signatário de normas internacionais e que, em seu processo constituinte, elegeu como direito fundamental a vedação à tortura, qual o motivo jurídico-social que permite com que situações desta estirpe aconteça, desde a lavratura do auto de prisão em flagrante até a prolação de acórdão condenatório cujo fundamento é eligido a partir de provas espúrias e ilícitas, as quais sequer deveriam ser admitidas, quiçá valoradas.

O preocupante cenário acende um alerta sobre qual a agenda atual do Poder Judiciário em processos criminais e sua influência nas camadas hipervulneráveis dos organismos sociais.

A vedação da tortura em suas duas facetas: punição e meio de obtenção de prova

A vedação à tortura, principalmente como meio de punição e de obtenção de prova, é uma agenda que se faz presente desde o início das discussões acerca da humanização da penalização e dos contornos do devido processo legal, cujo vetor privilegia o critério da legalidade a fim de se evitar a exasperação do poder estatal em uma persecução penal. 

Cesare Beccaria, por exemplo, em sua obra intitulada Dos Delitos e das Penas (1764), já anunciava a barbárie, e, sobretudo, a completa ineficácia da tortura como meio de confissão, uma vez que a obtenção da verdade estaria condicionada ao quantum de resistência do indivíduo ao sofrimento imposto pelo flagelo. A reflexão proposta por Beccaria é a de que um culpado forte resistirá aos métodos de tortura, de modo a torná-lo inocente, e, ao contrário, um inocente fraco seria condenado, por não suportar, pois, o martírio. Vale colacionar o excerto do clássico:

"A tortura é muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente fraco e de absolver o celerado robusto. De dois homens, igualmente inocentes ou igualmente culpados, aquele que for mais corajoso e mais robusto será absolvido; o mais fraco, porém, será condenado em virtude deste raciocínio. "

Logo após a carnificina sem paralelos da Segunda Grande Guerra (1939 a 1945), conforme conceitua Eric Hobsbawm na obra a Era dos Extremos, houve certo cenário de preocupação com os direitos básicos inerentes à existência humana, ou o que convencionou chamar, após o período, de princípio da dignidade da pessoa humana.

Para tanto, instituiu-se, em 1945, a ONU - Organização das Nações Unidas, uma organização intergovernamental intitulada como cujo objetivo se assentou na tentativa de manutenção da paz e no respeito aos direitos fundamentais dos organismos sociais, sendo que, em 10/12/1948, foi promulgada a DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos, com o: ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade tendo sempre em mente esta Declaração, esforce-se, por meio do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios países-membros quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.

O art. 5º da DUDH é claro no sentindo de que "Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante", excerto repisado no bojo do art. 5º, inciso III, da CF/88.

A preocupação brasileira com o tema, mormente após o período de centralização política interna vivenciado entre 1964 e 1985, deu azo à ratificação de diversos normativos internacionais posteriores.

O Brasil é, atualmente, signatário da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, a qual foi ratificada pelo decreto 98.386/1989, da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes das Nações Unidas, internalizada por meio do decreto 40/1991 e do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, internalizado no ordenamento jurídico pelo decreto 6.085, de 19/4/07.

Em 1997 houve a sanção da lei 9.455/1997, a qual definiu os crimes de tortura e cominou suas penas, e em 2013, a então presidente Dilma Rousseff sancionou o PL 5.546/01, transformando-o na lei 12.847/13, cuja ementa instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura; criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, com o objetivo de fortalecer a prevenção e o combate à tortura, por meio de articulação e atuação cooperativa de seus integrantes, dentre outras formas, permitindo as trocas de informações e o intercâmbio de boas práticas, vide art. 1º.

Todo o esforço Legislativo configura a tentativa - sem sucesso, conforme o caso analisado - de expurgar a tortura enquanto método de punição e obtenção de provas aptas a carrear uma persecução penal. Percebe-se, todavia, que a tortura permanece como método contumaz de uma cultura da violência inerente a relação tortuosa de poder fomentada pelas instituições de controle.

A notória resistência na utilização das câmeras corporais pelas instituições policiais aponta que há, com efeito, uma legitimação de métodos violentos para a averiguação de contextos delituosos, principalmente como meio de obtenção de provas, sendo empregadas sob o custodiado em situações de busca pessoal e em ingresso irregular em domicílio.

No sistema penitenciário/carcerário não é diferente. O constrangimento com emprego de violência ou grave ameaça em face de internos que cumprem pena privativa de liberdade ou estão acautelados preventivamente é uma realidade já conhecida do sistema de justiça criminal brasileiro. E, ainda que não o fosse de forma direta, a ausência completa de estrutura digna e as violações massivas e habituais de direitos fundamentais constituem, por si só, uma tortura estrutural velada.

No mesmo sentido assevera os fundamentos da decisão proferida no bojo da arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) 347, a qual reconheceu um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário brasileiro, responsável pela violação massiva de direitos fundamentais dos presos.

Tem-se, à vista do exposto, que os meios violentos para se alcançar a obtenção de provas e a punição do indivíduo que transgrida a norma penal encontram-se à margem da legislação brasileira hodierna. O Estado que utiliza a tortura como uma agenda contínua de conduta em face de seus cidadãos que eventualmente tenham praticados delitos iguala-se a esses, com a agravante de conduzir situação com a qual se comprometeu evitar, à luz de todos os normativos de direitos fundamentais e humanos signatários.

Conforme bem assevera o professor Aury Lopes Jr, se ao Estado compete produzir o Direito, então ele também precisa se submeter ao Direito, mormente por ser o Direito um meio de contenção de tendências absolutistas, delimitando o próprio Poder Estatal.

As duas faces da tortura, em que pese serem de essência homogenia, isto é, ambas se fundamentam na tendência de exasperação de poder por meio da utilização da violência, alcançam resultados distintos; pois, na espécie, a tortura utilizada como meio de obtenção de prova contamina o processo penal, tornando o escopo probatório carreado ilícito e, por conseguinte, comina na absolvição do acusado; e a tortura como forma de punição constrói significativa barreira na legitimação do monopólio do poder de punir do Estado.

A jurisprudência do absurdo: Quando se precisa dizer o óbvio

Extrai-se por inadmissível ter de haver jurisprudência sedimentada em informativo cujo teor diz o óbvio: o 'emprego de violência física tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante configura violação aos direitos humanos e invalida as provas obtidas, as quais devem ser desentranhadas do processo.'

Ora, a CF/88 estampa como direito individual, revestido como cláusula pétrea (vide art. 60, CRFB/1988) que serão inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

A norma é repetida na legislação infraconstitucional, qual seja o CPP, que em seu art. 157 aduz que são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.

A análise de ilicitude ou ilegitimidade da prova deve ou, ao menos, deveria recair no momento de sua admissão, o que importaria em expurgar o conteúdo probatório ilícito antes de sequer conhecê-lo, e, por sua vez, valorá-lo.

A eleição de uma admissibilidade de uma prova ilícita dar-se-ia tão somente à luz da proporcionalidade a favor do réu, ou seja, conforme preleciona o professor Aury Lopes Jr, seria viável a utilização do conteúdo de prova ilícita quase esse se mostrasse favorável ao réu, notadamente em razão da máxima eficácia dos direitos fundamentais coligidos no bojo da CF/88.

A exegese axiológica das normas consignadas alhures se fundamenta, inclusive, na Convenção Americana de Direitos Humanos, e, conforme bem ratificado no voto do relator do writ objeto desse estudo: 'A Convenção Americana de Direitos Humanos e o CPP vedam o uso de provas obtidas mediante tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante, devendo tais provas ser consideradas nulas.'

De toda sorte, não há margem para relativização e admissão de prova que são obtidas por meios ilícitos, tampouco realizar sua valoração para fins de fundamentação de decreto condenatório.

Cinge-se do caso analisado que o juízo da primeira instância admitiu e valorou o conteúdo probatório, apesar de haver imagens claras que demonstraram a obtenção de confissão por meio de tortura, e, ainda diante do óbvio, pugnou pela condenação do acusado, o que, ainda mais absurdo, foi ratificado pelo TJ/SP.

O fato de haver duas decisões judiciais, sendo a segunda prolatada por órgão colegiado, de manutenção de uma condenação cujas provas foram obtidas por meio de tortura expõe a chaga de um Poder Judiciário signatário de uma agenda absolutista e, em última instância, de um Direito Penal Simbólico, de emergência, que justifica o fim pelos meios ao largo do que proclama a legislação e a própria CF/88.

A necessidade de se propor um habeas corpus como sucedâneo de recurso especial ao STJ, ante a enérgica ilegalidade do meio utilizado para obtenção de prova, acaba por expor a obscuridade de decisões judiciais em matéria criminal, principalmente as que ostentam como parte acusado que se encontram em situação de vulnerabilidade social e econômica, sob os quais recaem a acentuada violência física e psicológica manejada como meio de controle pelas agências de polícia.

Ao contrário, é no Poder Judiciário que se deve encontrar o último fôlego de um Estado Democrático e de Direito, a tutela jurisdicional é a responsável por evitar tendências absolutistas e igualar a aplicabilidade da legislação, pois é fundamentada, sempre, em regras básicas inerentes ao devido processo legal. 

Da conclusão

O absurdo que reside na necessidade de um Tribunal Superior debruçar-se sobre um caso de enérgica ilegalidade envolvendo obtenção de prova por meio de tortura, suscitando teor jurisprudencial óbvio, de modo a restaurar situação de ilegalidade perpetuada desde a atuação das forças policiais até a segunda instância do Poder Judiciário de um Estado Democrático e de Direito, expõe que caminhamos a passos lentos na consecução da busca pela efetiva e justa tutela jurisdicional, penalizando, de mais a mais, a parcela socioeconômica hipervulnerável da sociedade, a qual está sujeita, conforme se vê, a práticas desta natureza e sua ratificação posterior por quem, ao contrário, deveria estancar as ilegalidades.

Portanto, cinge-se que o cenário da atual prestação da tutela jurisdicional em casos criminais, precipuamente no âmbito da justiça estadual, é, no mínimo, preocupante, expondo o alinhamento dos órgãos judicantes de controle com a seletividade proposta por Direito Penal simbólico e de ocasião, que em nada contribui para estancar o contexto de criminalidade, ao contrário, aposta na marginalização violenta daqueles que já se encontram em situação de debilidade social, legitimando provas obtidas em contexto de tortura e ilegais sob o pretexto de uma atuação simbólica na tentativa de justificar uma falsa sensação de punidade.

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Superior Tribunal de Justiça (STJ). Informativo de Jurisprudência nº 836 de 10 de dezembro de 2024. Disponível em [https://processo.stj.jus.br/jurisprudencia/externo/informativo/?b=INFJ&materia=&orgao=&ano=&relator=&operador=e&thesaurus=JURIDICO&p=true&l=25&refinar=S.DISP.&acao=pesquisar&dtdj=&dtde=&ordem=&isPesquisaDefault=false&pesquisaPorNumero=S&livre=836] 

Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Regras internacionais para o enfrentamento da tortura e maus-tratos/ Conselho Nacional de Justiça; Coordenação: Luís Geraldo Sant'Ana Lanfredi - Brasília: CNJ, 2016. 52 p. - (Série Tratados Internacionais de Direitos Humanos). Disponível em [https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/09/c9175bd2c46c4de6b67468beed359d4c.pdf] 

Ministério da Justiça. Portaria do Ministro n. 648/2024. Estabelece diretrizes sobre o uso de câmeras corporais pelos órgãos de segurança pública. Disponível em [https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-seguranca/seguranca-publica/PORTARIA648de2024.pdf] 

Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF n. 347, Rel. Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 04/10/2023. 

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. [Tradução J. Cretella Júnior e Agnes Cretella]. 2. ed. rev. e ampl., 2. tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal / Aury Lopes Jr. - 22. ed. - São Paulo: Saraiva Jur, 2025. 1.432 p. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm] Acesso em: 09 de maio de 2025. 

BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em [https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm] Acesso em: 09 de maio de 2025. 

Organização dos Estados Americanos, Convenção Americana de Direitos Humanos ("Pacto de San José de Costa Rica"), 1969. 

Eduilson Borges de Lima Júnior

Eduilson Borges de Lima Júnior

Professor de Direito. Servidor Público atualmente lotado na Defensoria Pública da União (DPU). Advogado Criminalista. Presidente da Comissão de Ciências Criminais da OAB/DF Subseção Gama.

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