Reforma da lei das sociedades por ações
O PL 2.925, de 2023, e seu substitutivo, que propõem alterações na LCVM e na LSA, não devem ser votados em regime de urgência.
sexta-feira, 11 de julho de 2025
Atualizado às 11:02
I - Retirada do PL 2.925, de 2023, e do substitutivo de 30/6/25, acrescidos ao PL 3.899, de 2012
Um artigo, que vise examinar, com ânimo sereno e espírito crítico, um projeto de lei de reforma da LSA, é, substancialmente, uma reflexão imparcial da matéria, por conseguinte sem a preocupação de ferir susceptibilidades de seus dignos autores, mas com o cuidado para não ferir a sua honra e dignidade.
Quando se pretende reformar ou revogar um código ou uma lei vigente, é mister atentar para o legado dos juristas que participaram de sua concepção e redação e inteirar-se das profícuas discussões, as mais das vezes renhidas, na academia, entre os especialistas, na sociedade e no Congresso Nacional, como ocorreu com a LSA, cujos debates foram acompanhados, domingo após domingo, semanas a fio, pelos leitores do extinto Jornal do Brasil, no início dos anos 70.
A revogação do CC, de Clóvis Beviláqua, e sua substituição pelo CC/02, por exemplo, exigiram amplo e sólido conhecimento da doutrina pátria e alienígena e da jurisprudência dos tribunais e atenção às mudanças, por vezes radicais, experimentadas pela sociedade (v.g., multiparentalidade; uniões homoafetivas; capacidade civil de pessoas com deficiência; acordos pré-nupciais e regime patrimonial flexível; tutela da vulnerabilidade de idosos e hipervulneráveis; personalidade digital e herança digital).
A reforma da LSA, de Alfredo Lamy Filho, J.L. Bulhões Pedreira, Modesto Carvalhosa, Fábio Konder Comparato e outros juristas de nomeada, demanda notável saber no campo do Direito, da economia e do mercado de capitais e de valores mobiliários, familiaridade com o Direito Comparado, vagar para ler, atentamente, o PL (e o substitutivo), e tempo, muito tempo, para "relê-lo, apreendê-lo, aprofundá-lo, repesá-lo, confrontá-lo, tudo necessário para lhe conhecer com segurança as faltas, e emendá-las com acerto" (Rui Barbosa, Réplica, Ed. OAB-RJ e Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980, v. I, p. 22).
Por isso e muito mais, é juridicamente inaceitável e politicamente descabido que a modernização da LSA sobre temas de extrema complexidade seja votada em regime de urgência.
O príncipe dos advogados brasileiros considerava a elaboração de uma lei um "terreno escabroso e esmarrido" (ob. cit., p. 11), o que o levou a escrever: "Em trabalho de largo fôlego, alinhavado a correr, não há nódoa, lacuna, despropósito, de que se vigiem com segurança os mais capazes, ainda que especialistas sejam, e se trate de sua especialidade. A experiência universal todos os dias nos confirma a velha parêmia a pressa é inimiga da perfeição. Pudera eu acrescentar que é mãe do tumulto, da incongruência, da irreflexão e do erro. Obra atropelada é obra manca, desastrada, infiel ao pensamento do artista, vilipendiosa a seu nome. (...) A lei da precipitação é a lei do atropelo e do ataranto, a lei do descuido e do desazo, a lei da fancaria e da aventura, a lei da inconsciência e da mediocridade. Sob a pressão da urgência, ninguém produziu nunca, em produzirá jamais coisa, que resista à prova do saber, do gosto, do tempo." (idem, p. 71)
Convidado a participar do evento "reforma da lei das S/A e da lei de mercado de capitais", que seria realizado na OAB/RJ, no dia 13/6/25, com a finalidade de debater as inovações sugeridas pelo Poder Executivo, e ciente da lição da Águia de Haia, resolvi fazer um chamado ao bom senso, à razão e ao espírito crítico dos nobres membros da Câmara dos Deputados.
Qual a forma mais rápida e contundente de dirigir-lhes um apelo ao discernimento e à lucidez?
Denunciando, com argumentos incontestáveis, um erro crasso do PL.
Um erro do PL que evidencia a imperiosa necessidade de se repensar, com desvelo, sem açodamento, se ele deve ser mantido no bojo do PL 3.899, de 2012, e votado com celeridade, ou se deve ser retirado e passar a ser objeto de projeto de reforma da lei das sociedades anônimas.
Resumo parte da minha exposição para demonstrar quão imprescindível é ler, reler e tresler o PL; discuti-lo e rediscuti-lo; revisar cada palavra, cada linha, cada oração; esmiuçar, questionar, ponderar, detidamente, artigo por artigo, sem prazo para terminar.
Segundo a exposição de motivos 00.045/23, do Ministério da Fazenda, a "proposta" do PL foi "discutida com ampla gama de especialistas e entidades representativas de instituições do mercado de capitais", inclusive com a CVM (item 2).
É curial que a colaboração de especialistas na formulação do PL não significa que ele seja inatacável, infenso a equívocos, imune a críticas, quer quanto à "estrutura", ou "sistemática externa", quer quanto à "sistemática interna".
Estrutura é a maneira como a lei organiza as matérias em capítulos temáticos e em ordem lógica e funcional, formalidade essencial para a escorreita interpretação e aplicação dos princípios e regras, que constituem o seu conteúdo.
A sistemática interna visa à interação e à harmonia entre as normas com o objetivo de formarem um todo homogêneo.
Após discorrer sobre as sistemáticas externa e interna, senti-me autorizado a asseverar: o PL incorreu em flagrante heresia jurídica.
Por que cheguei a essa indiscutível conclusão?
Porque ele propõe o acréscimo do art. 27-G ao capítulo VII-B da lei 6.385, de 1976, (LCVM), que tem por epígrafe "Dos crimes contra o mercado de capitais".
Em um capítulo que define crimes e comina penas, é inaceitável a inserção de um artigo que trata da responsabilidade civil de administradores de companhias pelos prejuízos sofridos por investidores.
No dia 30/6/25, portanto 17 dias após, foi apresentado um "substitutivo" que propõe o acréscimo do "Capítulo VII - C - Da Responsabilidade Civil" à LCVM, altera o art. 27 - G, caput, e seu § 1º e cria o § 4º.
II - Questões complexas e controvertidas que devem ser objeto de novo projeto de lei para serem incluídas na LSA
O art. 27-G, com a redação do substitutivo, dispõe: "Os administradores de companhias abertas são civilmente responsáveis, no limite de sua atuação, pelos prejuízos sofridos por investidores em decorrência de infração a legislação e a regulamentação relativas a divulgação de informações ao mercado de valores mobiliários."
O § 1º estabelece: "A responsabilidade civil de que trata este artigo aplica-se, ainda, aos acionistas controladores do emissor (...)."
O § 4º reza: "As companhias não são responsáveis pelos danos sofridos pelos investidores nos termos do caput, exceto nas ofertas de distribuição ou aquisição em que figurarem como ofertantes."
Os dois erros de regência por omissão da crase na terceira e quarta linhas do art. 27 - G, caput, atribuo-os à pressa na redação do Substitutivo, assim como à pressa as escolhas do PL nas matérias sumariamente expostas a seguir.
A - Exoneração da responsabilidade das companhias por atos ilícitos de seus controladores e administradores: art. 27 - G, §§ 1º e 4º.
A leitura e a análise de um projeto de lei começam - obrigatoriamente - por uma peça essencial: a exposição de motivos, a qual, embora não vincule o Poder Judiciário, obriga o Poder Executivo a ser rigorosamente fiel às diretrizes que o levaram a dirigir-se ao Congresso Nacional.
Por que a exposição de motivos é importante?
Porque ela dá a conhecer os fundamentos de ordem política, social, econômica e jurídica da proposta de criação, alteração ou supressão de uma ou mais regras; exprime os princípios e os valores que devem ser considerados na redação dos dispositivos; define a finalidade do projeto; é elemento relevante na interpretação sistemática e teleológica e aplicação da lei; porque a exposição de motivos e o texto do projeto devem primar pela coerência, harmonia e unidade; porque a exposição de motivos e o texto do projeto não podem ser colidentes, menos ainda contraditórios.
Quais os fundamentos, princípios, valores e finalidades que o Executivo deveria transformar em norma jurídicas cogentes através do PL e do substitutivo à vista da EM - exposição de motivos 00.045/2023-MF?
Os expostos no item 1: "(...) Projeto de Lei com o objetivo de aperfeiçoar os mecanismos de tutela privada dos direitos de acionistas minoritários contra prejuízos causados por atos ilícitos de acionistas controladores e administradores de companhias abertas, visando a conferir maior segurança jurídica para investidores do mercado de capitais."
Em face do texto claro da EM, o que seria razoável esperar?
Na falta de previsão na LSA sobre a legitimidade ativa dos acionistas minoritários para pleitearem contra as companhias abertas e fechadas reparação dos prejuízos diretos ou reflexos causados aos seus patrimônios por abuso ou desvio ou excesso de poder, ou violação da lei ou do estatuto social, ou qualquer ato ilícito de controladores e administradores, seria razoável esperar que, com a introdução do art. 27 - G na LCVM (embora devesse ser na LSA), o sistema "de tutela privada dos direitos de acionistas minoritários contra prejuízos causados por atos ilícitos de acionistas controladores e administradores de companhias abertas" fosse - real e induvidosamente - aperfeiçoado, isto é, que o projeto e o substitutivo instituíssem a responsabilidade das companhias por atos ilegais de seus controladores e administradores .
Em suma: se o PL e a EM têm por escopo "aperfeiçoar os mecanismos de tutela privada dos direitos de acionistas minoritários" e "conferir maior segurança jurídica para investidores do mercado de capitais", a forma verdadeiramente eficaz é legitimar os acionistas minoritários e demais investidores a ajuizar ação de reparação das perdas e danos contra a companhia, seus controladores e administradores.
O que, entretanto, pretendem o PL e o substitutivo?
Não obstante indubitável que os administradores não têm, em regra, capacidade financeira para indenizar minoritários e investidores prejudicados, e os controladores, as mais das vezes, estejam "blindados" por uma "pirâmide" de holdings em paraísos fiscais, o PL e o substitutivo propõem a criação da norma do art. 27 - G, § 4º, que exonera tout court as companhias abertas de ressarcirem os danos causados aos minoritários e investidores por atos ilícitos de seus controladores e órgãos diretivos, dando ensejo, aliás, a uma odiosa discriminação: milhares de companhias fechadas podem ser compelidas, por sentença transitada em julgado, a indenizar seus minoritários e investidores; as companhias abertas, não!
B - Matérias objeto de discussão no evento da OAB/RJ, que devem ser reexaminadas e que impõem a retirada do PL e do substitutivo
Foram também objeto de discussão no evento da OAB/RJ os seguintes temas: class action (art. 27-H); liquidação dos danos (art. 27-H, §§ 13 e 14); ações derivadas societárias (arts. 159 e 246 da LSA); arbitragem (art. 27-I); transação (art. 122 da LSA); sucumbência (arts. 27-H, §11-III, e 159, §5-A, e 246, §2 e § 2º-C, da LSA); poder de polícia da CVM (art. 9º da lei 6.385/76).


