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Preço de transferência nas reorganizações societárias internacionais: Como mitigar riscos de autuação fiscal?

Reorganizações societárias internacionais exigem atenção às regras de preço de transferência para evitar autuações fiscais e garantir conformidade tributária.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Atualizado em 11 de julho de 2025 14:11

A crescente internacionalização dos grupos empresariais e as complexas reorganizações societárias transnacionais têm aumentado a atenção das autoridades fiscais quanto ao cumprimento das regras de preço de transferência, baseadas no princípio do arm's length, de modo a garantir a correta alocação dos lucros nos países onde as atividades econômicas são efetivamente realizadas.

O descumprimento de tais regras pode levar as empresas sofrerem autuações fiscais, ajustes na apuração de seus lucros e impactos significativos em sua rentabilidade. Assim, torna-se essencial observar o que a lei 9.430/1996 estabelece e quais cuidados as empresas devem ter nas operações de reorganização societária internacional.

I. O que é preço de transferência e qual sua relevância jurídico-tributária?

O preço de transferência (transfer pricing) refere-se aos valores praticados em transações comerciais entre partes relacionadas, quando localizadas em diferentes países. Essas operações podem envolver a venda de bens, a prestação de serviços, a transferência de tecnologia, o pagamento de royalties, entre outros.

O monitoramento dessas transações é essencial para evitar que grupos multinacionais manipulem os preços com o objetivo de transferir artificialmente lucros para jurisdições de baixa tributação, reduzindo a carga fiscal global.

Para combater essas práticas, o Fisco exige que os preços praticados entre partes relacionadas se adequem às metodologias de preço de transferência, objetivando que o preço praticado esteja em condições similares as negociadas entre empresas independentes em uma transação comparável, conforme preceitua o princípio do arm's length, consagrado nas diretrizes da OCDE - Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

No Brasil, esse princípio foi inicialmente adotado com a edição da lei 9.430/1996, que estabeleceu regras específicas para o controle das transações entre partes relacionadas no exterior. Esse regime, entretanto, baseava-se em métodos rígidos e presunções legais que, por vezes, resultava em distorções econômicas e falta de aderência à realidade empresarial.

Com a entrada em vigor da lei 14.596/23, o país promoveu uma reforma significativa no seu sistema de preços de transferência, alinhando-se de forma mais efetiva às diretrizes da OCDE. O novo regime exige análises mais sofisticadas, baseadas na avaliação das funções desempenhadas, dos ativos utilizados e dos riscos assumidos por cada parte da operação, especialmente em contextos de importação e exportação com empresas vinculadas.

Essas regras visam garantir que os resultados tributáveis no Brasil reflitam adequadamente a substância econômica das operações, evitando a erosão da base de cálculo e assegurando maior equidade fiscal nas transações internacionais realizadas entre empresas de um mesmo grupo.

Nesse contexto, as reorganizações societárias internacionais entre partes relacionadas situadas em diferentes jurisdições, demandam atenção redobrada, uma vez que comumente envolvem a transferência de ativos, funções e riscos, se sujeitando às regras de preços de transferência.

Diante disso, torna-se essencial uma análise criteriosa dos aspectos jurídicos e econômicos dessas operações, tanto para assegurar a conformidade com a legislação fiscal aplicável quanto para mitigar eventuais riscos de autuação por parte das autoridades tributárias.

II. Reorganização societária internacional praticada por partes relacionadas

A reorganização societária corresponde a um conjunto de alterações estruturais promovidas no âmbito de uma empresa, podendo envolver modificações na sua estrutura societária, no formato jurídico adotado ou em sua configuração organizacional interna.

Essas reorganizações são, em geral, motivadas por objetivos estratégicos, como o planejamento sucessório, a eficiência tributária, a adaptação a novos modelos de negócio ou à dinâmica de mercados globais. Também podem ser empregadas como mecanismos de reestruturação e recuperação empresarial.

No ordenamento jurídico brasileiro, tais reorganizações devem observar os dispositivos previstos na lei 6.404/76 (lei das sociedades por ações) e no CC (lei 10.406/02).

No plano internacional, as reorganizações societárias podem envolver operações de fusões, aquisições, incorporações, transferências de ativos, entre outras, entre empresas consideradas como partes relacionadas. Nestes casos, é imprescindível uma avaliação jurídica e econômica minuciosa da operação, considerando não apenas a legislação interna, mas também os tratados internacionais, os princípios de preços de transferência e as diretrizes da OCDE.

Ressalta-se que as transações praticadas entre empresa brasileira e outra empresa, enquadrada como parte relacionada, e situada no exterior, sujeitam-se às regras de preço de transferência. A empresa brasileira deverá adotar as regras previstas na lei 9.430/1996.

Nos termos do art. 23 da lei 9.430/1996, é considerada parte relacionada à pessoa jurídica domiciliada no Brasil:

(i) sua matriz, quando domiciliada no exterior;

(ii) sua filial ou sucursal estabelecida no exterior;

(iii) qualquer pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no exterior cuja participação societária a caracterize como controladora ou coligada, na forma dos §§ 1.º e 2.º do art. 243 da lei das S.A.;

(iv) a pessoa jurídica no exterior caracterizada, por sua vez, como controlada ou coligada da empresa brasileira;

(v) entidade no exterior que, juntamente com a brasileira, esteja sob controle societário ou administrativo comum, ou quando, no mínimo, 10 % do capital de cada uma pertença à mesma pessoa física ou jurídica;

(vi) pessoa física ou jurídica no exterior que, em conjunto com a empresa brasileira, detenha participação societária em terceira entidade que as torne controladoras ou coligadas desta;

(vii) associada da empresa brasileira em consórcio ou condomínio, enquanto durar a associação;

(viii) pessoa física residente no exterior que seja cônjuge, companheiro, parente ou afim até o terceiro grau de diretor, sócio ou acionista controlador da brasileira;

(ix) pessoa física ou jurídica no exterior que possua exclusividade, como agente, distribuidor ou concessionária, na compra ou venda de bens, serviços ou direitos da empresa brasileira; e

(x) pessoa física ou jurídica no exterior em relação à qual a empresa brasileira detenha exclusividade, nas mesmas condições, para aquisição ou comercialização de bens, serviços ou direitos.

Assim, transações envolvam partes relacionadas, conforme as situações previstas acima, podem expor fiscalmente a empresa brasileira quando não aplicadas as regras de preço de transferência, se sujeitando a eventuais autuações fiscais.

Nas reorganizações societárias internacionais, em grande parte, há dificuldade de comprovar que operações efetuadas entre partes relacionadas obedeceram ao princípio do arm's length e refletem a substância econômica real das operações. Essas situações se revelam quando:

  • Transferência de intangíveis sem remuneração compatível: ocorre quando ativos valiosos, como marcas, patentes, tecnologia e know-how, são transferidos entre entidades vinculadas sem uma contraprestação adequada, o que pode configurar erosão da base tributária e transferência artificial de lucros.
  • Desalinhamento entre risco assumido e retorno auferido: caracteriza-se pela situação em uma das partes relacionadas assume riscos operacionais, financeiros ou de mercado, mas não recebe remuneração proporcional, em descompasso com as regras de preço de transferência.
  • Emprego de entidades intermediárias sem substância econômica: refere-se à utilização de empresas situadas em jurisdições com tributação favorecida ou paraísos fiscais, que não exercem funções reais nem assumem riscos significativos, configurando práticas como treaty shopping ou planejamento tributário abusivo.
  • Inconsistência ou ausência de documentação comprobatória: inclui a falta de relatórios econômicos, análises comparativas funcionais, estudos técnicos ou benchmarkings que justifiquem os preços praticados nas transações intragrupo, em desacordo com as exigências previstas na IN RFB 2.246/24, que regulamenta o novo regime de preços de transferência no Brasil, em conformidade com os padrões da OCDE.

A Receita Federal do Brasil, em alinhamento com as diretrizes do Plano BEPS (Base Erosion and Profit Shifting), promovido pela OCDE e pelo G20, tem intensificado a fiscalização sobre essas operações. Espera-se, das empresas, um elevado grau de diligência na elaboração da documentação comprobatória, bem como uma fundamentação econômica robusta das transações realizadas, especialmente nos casos de reorganizações internacionais que possam afetar a alocação de lucros entre diferentes jurisdições.

Nesse contexto, torna-se essencial que os grupos empresariais adotem uma postura proativa, estruturando suas operações com base em critérios técnicos sólidos, tais como análises funcionais detalhadas, modelos de valuation (avaliação de empresas e ativos) de intangíveis e documentação de suporte aderente à nova regulamentação brasileira e às melhores práticas internacionais.

Essa abordagem é indispensável não apenas para reduzir vulnerabilidades fiscais, mas também para assegurar plena conformidade com o princípio do arm's length, conforme reiteradamente exigido pelas autoridades fiscais nacionais e organismos multilaterais.

Como mitigar os riscos de autuação fiscal sobre preços de transferência em reorganizações societárias internacionais?

Para reduzir os riscos de autuação fiscal em operações de reorganização societária que impactem a definição dos preços de transferência, é essencial que os grupos empresariais adotem uma abordagem técnica, preventiva e devidamente documentada. A seguir, destacam-se as principais medidas de mitigação:

  1. Planejamento Tributário com Fundamentação Econômica Real: A estruturação de reorganizações societárias deve estar fundamentada em propósitos empresariais legítimos e transparentes, tais como:

(i) Aumento da eficiência operacional;

(ii) Reorganização da cadeia de suprimentos;

(iii) Expansão para novos mercados;

(iv) Consolidação de funções administrativas ou produtivas.

A adoção de estruturas artificiais, voltadas exclusivamente à redução da carga tributária, sem correspondência com a realidade operacional das empresas, pode ser considerada abusiva e resultar na desconsideração da operação pelas autoridades fiscais. Nesses casos, aplica-se o princípio da prevalência da substância econômica sobre a forma jurídica.

  1. Documentação Técnica e Jurídica Detalhada: A robustez documental é um dos principais pilares para a defesa da conformidade dos preços de transferência. Para isso, a empresa deve manter atualizados e organizados os seguintes elementos:

(i) Análises funcionais: descrição precisa das funções desempenhadas, ativos utilizados e riscos assumidos por cada entidade vinculada;

(ii) Estudos de benchmarking: comparações com empresas independentes do mercado, para apuração de margens e parâmetros praticáveis;

(iii) Relatórios Master File e Local File: conforme previsto nas Diretrizes da OCDE, para contextualizar a estrutura global e detalhar as operações locais;

(iv) Justificativas metodológicas: explicações técnicas e econômicas que fundamentem a escolha do método de valoração adotado, em conformidade com a IN RFB 2.246/24.

A ausência, inconsistência ou insuficiência dessa documentação pode fragilizar a posição da empresa em procedimentos de fiscalização, comprometendo sua capacidade de demonstrar a aderência ao princípio do arm's length.

  1. Celebração de APAs - Acordos de Preços Pré-Aprovados: Os APAs (Advance Pricing Agreements) constituem instrumento preventivo eficaz, por meio do qual a empresa pode formalizar, junto à Receita Federal do Brasil, um acordo que define previamente os critérios de valoração aplicáveis às suas transações intercompany. A adoção desse mecanismo proporciona: (i) maior segurança jurídica; (ii) redução do risco de litígios; (iii) estabilidade nas operações internacionais; e (iv) reforço da postura de conformidade do contribuinte.

O novo arcabouço normativo, em especial a lei 14.596/23 e a IN RFB 2.246/24, impõe aos grupos empresariais o dever de revisar e atualizar seus procedimentos internos, de modo a assegurar plena conformidade com o princípio do arm's length e com os padrões internacionais de integridade tributária.

Considerações finais

A convergência entre os temas de preços de transferência e reorganizações societárias internacionais figura entre os aspectos mais estratégicos do planejamento tributário de grupos multinacionais. Com a recente reformulação do regime brasileiro, alinhada às diretrizes da OCDE, ganha relevo a necessidade de assegurar a coerência econômica das operações, a consistência da documentação técnica e a adoção de práticas alinhadas aos padrões internacionais de conformidade fiscal.

A mitigação dos riscos de autuação fiscal exige a conjugação de uma governança tributária estruturada, transparência nas transações entre partes relacionadas e aderência efetiva aos princípios do arm's length e às normas do novo marco regulatório brasileiro. Tais medidas contribuem não apenas para a segurança jurídica das operações, mas também para a integridade e estabilidade do sistema fiscal como um todo.

Os preços de transferência assumem papel central na proteção da base tributária dos Estados e na alocação justa dos lucros entre jurisdições. Para os grupos multinacionais, isso impõe uma mudança de paradigma: mais do que mitigar riscos, trata-se de internalizar uma cultura de conformidade e previsibilidade, em que o planejamento tributário seja indissociável da governança corporativa e do compromisso com a integridade fiscal.

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BRASIL. Lei 14.596, de 14 de junho de 2023. Dispõe sobre regras de preços de transferência relativas ao Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14596.htm. Acesso em: 28.05.2025.

BRASIL. Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6404compilada.htm. Acesso em: 28.05.2025.

BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406compilada.htm. Acesso em: 28.05.2025.

BRASIL. Instrução Normativa RFB 2.246, de 28 de setembro de 2023 (publicada no DOU em 31 de dezembro de 2024). Dispõe sobre os preços de transferência a serem praticados nas transações efetuadas por pessoa jurídica domiciliadas no Brasil com partes relacionadas no exterior e dá outras providências. Disponível em: https://normasinternet2.receita.fazenda.gov.br/#/consulta/externa/142308/visao/multivigente. Acesso em: 01.06.2025.

FERNANDES, Rayneider Brunelli Oliveira e Rafhael Frattari Bonito. Treaty shopping: planejamento tributário no plano internacional ou forma de abuso de direito (?). Revista da Faculdade de Direito da UERJ-RFD- Rio de Janeiro, v.1, n.23, 2013. Disponível em: laurahigino,+4treaty.pdf. Acesso em: 02.06.2025.

Beatriz Carol Fiel dos Santos

Beatriz Carol Fiel dos Santos

Advogada, graduada em Direito, com ênfase em Direito Tributário, pela Universidade Paulista - UNIP (2019), inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo (OAB/SP) (2022). Membro efetivo do Comitê de Direito Tributário da 33ª Seccional da OAB/SP - Jundiaí (2025-2027). Advogada do Departamento Tributário no TM Associados.

Beatriz Giansante Moquiute

Beatriz Giansante Moquiute

Advogada, graduada em direito, com ênfase em direito tributário, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2021), inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo (OAB/SP) (2022). Pós-Graduada e especialista em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) (2022-2023). Advogada e Líder do Departamento Tributário no TM Associados

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