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Dolo e imprudência: Da origem simples à complexidade dogmática atual

Neste artigo, exponho como a dogmática penal obscureceu a distinção entre dolo e imprudência e defendo uma imputação clara, racional e fiel ao Estado de Direito.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Atualizado às 13:27

A ciência do Direito Penal é uma das mais exigentes do pensamento jurídico. Ela se propõe a justificar um dos atos mais radicais que um Estado pode praticar contra seus cidadãos: a privação da liberdade. Justamente por isso, deve ser construída com rigor metodológico, respeito às garantias constitucionais e compromisso com a racionalidade. Mas não é isso o que se observa quando se trata da imputação penal, especialmente no que diz respeito ao dolo e à imprudência.

Desde os tempos mais remotos, o Direito Penal oscilou entre a simplicidade originária e a sofisticação dogmática. A imputação sempre foi o eixo central da responsabilização penal. Ocorre que, ao longo do tempo, a clareza inicial deu lugar a estruturas conceituais cada vez mais complexas - muitas vezes distantes das exigências de um Estado Social e Democrático de Direito.

A distinção fundamental entre dolo e imprudência parece simples: há condutas praticadas com intenção e outras sem. No entanto, a dogmática penal criou categorias intermediárias, presumidas e ambíguas, que acabaram por obscurecer essa separação essencial. A figura do dolo eventual, por exemplo, é uma das mais emblemáticas manifestações dessa degeneração conceitual.

É necessário revisitar os fundamentos. A essência da conduta penalmente relevante repousa sobre dois modos de agir: com vontade (dolo) ou sem vontade (imprudência). Não existe, até hoje, outra forma plausível de imputação penal legítima. Essa constatação, longe de ser simplista, é fruto de uma análise histórica, filosófica e jurídica que revela o quanto nos afastamos da estrutura originária da imputação penal. E eu deixo isso muito claro em minhas obras sobre o tema.

Na Antiguidade clássica, tanto na Grécia quanto em Roma, a imputação por dolo ou por imprudência era resolvida com naturalidade. As Leis de Drácon, na Grécia, já estabeleciam a diferença entre o homicídio voluntário (phónos ékousios) e o involuntário (phónos ákousios). O Direito Romano avançou nesse caminho. A Lex Numae e os textos das Doze Tábuas já identificavam o dolo como manifestação inequívoca da vontade, enquanto a imprudência era tratada de forma distinta, geralmente com sanções de cunho reparatório.

O Digesto romano é exemplo notável dessa clareza: "aquele que matou um homem sem intenção pode ser absolvido, mas aquele que, ao ferir com a intenção de matar, mesmo sem consumar a morte, deve ser condenado como homicida." O critério era claro: a vontade. O legislador não deixava dúvidas de que, para haver imputação a título de dolo, era necessário que o agente quisesse o resultado.

Mas essa simplicidade foi sendo substituída por construções que, muitas vezes, atendem mais aos interesses do Estado do que à lógica jurídica. A dogmática penal moderna, marcada pelo influxo de concepções germânicas e canônicas, buscou sistematizar o dolo e a culpa com base em elementos cognitivos e volitivos que, embora relevantes, passaram a ser utilizados para justificar presunções e ficções incompatíveis com os princípios do devido processo legal.

A partir da fusão de tradições jurídicas distintas - romana, germânica e canônica - surgiram noções dogmáticas que, embora sofisticadas, obscureceram a essência do dolo e da imprudência. A intenção consciente de violar a norma, fundamento do dolo para os romanos, cedeu espaço a modelos que admitem a imputação sem vontade manifesta. Essa mudança comprometeu não apenas a coerência da teoria do delito, mas também a legitimidade da sanção penal.

O exemplo do futebol é ilustrativo. A questão "mão na bola ou bola na mão" mostra como o mesmo fato físico (o toque entre mão e bola) pode ser avaliado de forma completamente distinta a depender da intencionalidade. O árbitro precisa decidir se houve vontade de tocar na bola. Assim também no Direito Penal: a distinção entre dolo e imprudência depende da essência da conduta, não de suas consequências. Quando se ignora essa exigência, o Direito Penal se afasta de sua função garantidora.

Em obras como as de Mommsen e Pessina, vê-se que o conceito de dolo sempre esteve ligado à ideia de dolus malus, ou seja, à vontade delituosa consciente. Essa vontade é que diferencia o engano, a fraude, a violência moral e a responsabilidade penal. No entanto, o advento de sistemas penais autoritários e a consolidação do poder punitivo estatal levaram ao esvaziamento desse critério, substituindo-o por modelos que favorecem a punição por presunção.

O Código Napoleônico de 1810 e outras codificações europeias do século XIX chegaram a omitir expressamente o dolo de suas disposições, presumindo-o como condição implícita. Isso só reforça a tendência de reduzir a imputação a um julgamento moral, onde a vontade do agente é muitas vezes ignorada ou substituída por construções interpretativas convenientes.

O ponto de partida da Teoria Significativa da Imputação é a necessidade de retornar à simplicidade estrutural da imputação penal. Se alguém causa um resultado típico, só há duas alternativas: ou quis produzi-lo (dolo) ou não quis, mas o causou por imprudência. Não se trata de rejeitar a sofisticação da ciência penal, mas de restaurar a clareza conceitual e o compromisso com os princípios constitucionais.

A partir disso, propõe-se uma nova sistematização: dolo (vontade de alcançar o resultado) e imprudência consciente, classificada em: gravíssima, grave e leve - de acordo com o grau de previsão e desprezo ao dever de cuidado. Esse modelo substitui a ficção do dolo eventual por uma análise objetiva, racional e coerente com o Estado de Direito.

Portanto, a questão do dolo e da imprudência não é apenas uma disputa terminológica ou teórica. É uma disputa de legitimidade. A imputação penal deve ser técnica, clara, objetiva e compatível com os direitos fundamentais. Superar modelos que admitem a presunção de vontade é condição necessária para que o Direito Penal recupere seu compromisso com a justiça e a legalidade.

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Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).

Antonio Sanches Sólon Rudá

VIP Antonio Sanches Sólon Rudá

Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

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