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A guerra do IOF e "a soma de todos os erros"

A matéria explora a crise institucional gerada por erros nos Decretos do IOF, revelando falhas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na separação de funções.

terça-feira, 15 de julho de 2025

Atualizado às 11:31

Por uma questão estritamente lógica, se uma proposição apresentada for entendida como errada, sua antítese haverá de estar certa, ou vice-versa. Por conseguinte, é ilógico que proposições antagônicas estejam, concomitantemente, corretas ou equivocadas. Não é o caso da celeuma travada em torno da edição de três decretos, pelo Poder Executivo, cujo mais recente foi suspenso pelo Poder Legislativo, ganhando uma proporção estratosférica, que desborda uma discussão pontual.  Ao mesmo tempo em que a modificação das alíquotas do IOF, por discricionariedade condicionada do Executivo, esbarra em questões relacionadas à essência desse imposto extrafiscal, a edição do decreto legislativo, e a posterior judicialização da questão política subjacente, traz à tona debates complexos acerca da atual crise institucional.

Com isso, afloram-se discussões em torno da separação de poderes, o primoroso poder de não decidir invocado usualmente pelo STF e a crise republicana brasileira - esta que levou a que alguns autores, como o professor Pedro Serrano, levantassem a possibilidade de uma ditadura legislativa1.

Dito isto, a questão a ser aqui analisada não será subsumida a uma investigação acerca do mero conformismo dos decretos do Poder Executivo com as regras constitucionais-tributárias de divisão e atribuição de competências e suas respectivas exceções (considerando-se que tal possibilidade é uma minorante da máxima da legalidade estrita). Tampouco ensaiar-se-á, simploriamente, sobre o eventual desvio de finalidade do Poder Executivo na majoração das alíquotas do IOF ou a inconstitucionalidade do alargamento da hipótese de incidência. Por óbvio, tais questões serão enfrentadas, pois esbarram numa discussão antiga do STF, acerca da "natureza jurídica do IOF" e seus limites e possibilidades, mas não se restringirá a isso.

Inicialmente, deve-se recordar que a Constituição Federal, em seu art. 153, inciso V, dispõe que "Compete à União instituir impostos sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários". O texto constitucional é expresso ao dispor, em seu §1º, que "é facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas do imposto enumerado no inciso V" - (IOF).

Por sua vez, a lei 8.894, de 1994, dispõe, em seu art. 1º, que "O Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos e Valores Mobiliários será cobrado à alíquota máxima de 1,5% ao dia, sobre o valor das operações de crédito e relativos a títulos e valores mobiliários". O §2º, do mesmo dispositivo legal, prevê que o Poder Executivo, obedecidos os limites máximos fixados na lei, poderá alterar as alíquotas tendo em vista os objetivos das políticas monetária e fiscal.

Outrossim, o art. 49, inciso V, da CF, prevê que "É da competência exclusiva do Congresso Nacional sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa". Dessa forma, percebe-se que a natureza jurídica do Decreto Legislativo é a defesa das prerrogativas institucionais do Poder Legislativo, como instrumento de check and balances, eis que a sua atuação, enquanto "fiscalizador" do Poder Executivo, é impedir que, por vias transversas, este legisle por meio de decreto, eis que tal função é típica do Poder Legislativo e se dá mediante a edição de lei específica.

Uma vez colocada(s) a(s) questão(ões) técnica(s) nuclear(es), bem como seus embasamentos legais, deve-se prescrutar, olhando-se ao caso concreto, se são inconstitucionais, e em quais pontos, os decretos 12.466/25, 12.467/25 e 12.499/25, e se os Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) agiram bem, dentro de suas atribuições institucionais, (i) editando os decretos no Executivo; (ii) sustando os decretos por medida legislativa e (iii) deixando de apreciar, de pronto, a judicialização da questão.

Em relação à edição dos decretos pelo Poder Executivo, deve-se considerar que houve uma sucessão de decretos, mais precisamente três, e que trataram do IOF sob diversos aspectos, entre eles (i) remanejando alíquotas e (ii) alargado a hipótese de incidência do art. 2º, inciso III, do decreto 6.306/07, que, em sua redação original, reestabelecida pelo decreto legislativo 176/25, dispõe que o IOF incide sobre "operações de seguro realizadas por seguradoras".

Toda essa sucessão de fatos levantou um enorme dissenso entre os juristas brasileiros, culminando, sob algumas perspectivas, em análises simplórias e desvinculadas de todos os pormenores que envolvem o tema, reclamando, assim, uma estudo mais aprofundado.

Do ponto de vista constitucional e infralegal, foi analisado acima que há expressa autorização para que o Poder Executivo proceda a alteração das alíquotas do IOF mediante decreto que, para fins daquilo que dispõe o próprio art. 96, do CTN, considera-se um dos instrumentos da denominada "legislação tributária". Contudo, essa "flexibilização" está limitada pela legalidade, razão pela qual, qualquer intento de alargar a hipótese de incidência, demanda lei em sentido estrito.

É essa a discussão que, salvo exceções pontuais, passou desapercebida em alguns posicionamentos que se ativeram a uma análise apenas da majoração de alíquotas. Dessa forma, cumpre questionar se o Executivo, ao alterar a redação do art. 2º, inciso III, do decreto 6.306/07, pelos decretos 12.666 e 12.499, ambos de 2025, fazendo constar que o IOF incidiria sobre "operações de seguro realizadas por seguradoras, entidades abertas de previdência complementar e outras entidades equiparadas a instituições financeiras", alargou a hipótese de incidência do IOF, já que a redação originária não contempla as entidades abertas de previdência complementar e tampouco as entidades equiparadas a instituições financeiras.

No ponto, um dos grandes questionamentos foi a incidência de IOF aos planos VGBL, que são veiculados por entidades abertas de previdência complementar e, anteriormente, não estavam sujeitos à incidência de IOF. Nesse sentido, em que pese a possibilidade de equiparação de algumas operações dessas empresas a operações de seguro, entende-se que essa modificação, por ser decorrente de analogia e ter grande impacto a alguns setores, é de competência do Congresso Nacional e deve ser veiculada mediante lei, precedida de um amplo debate público. Nesse sentido é a posição de Hamilton Dias de Souza e Daniel Corrêa Szelbracikowski (IOF: Executivo deve se submeter à lei2).

Outrossim, superada esta discussão, remanesce o questionamento quanto à posição dos três Poderes. O Executivo, ao editar os decretos 12.466/25, 12.467/25 e 12.499/25 agiu, parece-nos, dentro dos limites legais que lhe atribuem a prerrogativa de remanejamento das alíquotas, restando controversa apenas a tentativa de ampliação da hipótese de incidência do IOF para alguns casos.

Pode-se não concordar com isso, pois a extrafiscalidade inerente ao imposto respectivo seria incompatível com uma finalidade prioritariamente arrecadatória (essa foi historicamente nossa posição sobre o assunto). Porém, há uma vasta jurisprudência do STF que, há muito tempo, firmou-se no sentido de que é possível o aumento do IOF, mesmo que haja um incremento arrecadatório, até porque este é um consectário lógico do aumento de qualquer tributo.  

Em excerto extraído do RE 126.9641/PR, o ministro Edson Fachin esclareceu que "(...) o caráter extrafiscal do IOF, de atuar na regulamentação de segmentos estratégicos de mercado e da balança comercial, não desnatura a sua finalidade arrecadatória, sendo possível a sua cobrança com o escopo de obtenção de recursos financeiros. A alteração da alíquota do IOF pelo Poder Executivo, no caso, afigura-se associada ao poder discricionário do Governo de adoção de medidas econômicas que melhor atendam aos objetivos da política fiscal e monetária, para alcançar o equilíbrio econômico do País, contidos no CTN, art. 65; na lei 8.894, de 1994; e nos decretos 6.306, de 2007 e 6.339, de 2008. Também se encontra em conformidade com o disposto no§ 1º do art. 153 da Constituição Federal, que autoriza seja mitigado o princípio da legalidade estrita em matéria tributária. Dessa forma, ante à justificativa para implantar o adicional de alíquota do IOF, não se vislumbra desvio da finalidade extrafiscal de majoração do tributo. Primeiro, porque a referida atribuição pertence ao Poder Executivo, faculdade exercida de acordo com os objetivos da política fiscal e monetária".

Outros precedentes do STF rumam ao mesmo sentido, entendendo que o caráter extrafiscal do IOF não desnatura a sua finalidade arrecadatória. No ponto, é razoável de se considerar que não há como realizar uma classificação estanque entre tributos fiscais e extrafiscais, pois, na atualidade, alguns tributos, inclusive, ostentam de maneira muito tênue ambas as finalidades.

Em que pese isso, deve-se mencionar que o ministro Alexandre de Moraes, ao proferir decisão conjunta no âmbito da ADI 7827, da ADI 7839 e da ADC 96, pareceu enveredar para uma possível mudança de entendimento do STF, que parece estar mais minucioso na análise das finalidades subjacentes ao remanejamento das alíquotas

Como se pode depreender da decisão do ministro Alexandre de Moraes, "O ato do Chefe do Executivo é discricionário, porém a finalidade subjacente ao ato que modifica as alíquotas é determinante para a sua validade, eis que não é qualquer aspecto da fiscalidade brasileira que permitirá um aumento ou um decréscimo na alíquota do imposto, pois sua função regulatória e extrafiscal deve estar bem fundamentada".

A decisão proferida pelo ministro Alexandre de Moraes fornece uma pista sobre as possíveis conclusões do julgamento, oportunidade em que o Poder Judiciário analisará as ditas finalidades subjacentes, que são as razões que justificaram a edição do decreto, pelo Executivo.

Em outro trecho da decisão conjunta, aporta-se que:

Essa dúvida na finalidade da edição do decreto, apontada por ambas as Casas do Congresso Nacional na edição do decreto legislativo, é razoável quando o Ministério da Fazenda divulgou um potencial acréscimo de dezenas de bilhões às contas públicas: R$ 20,5 bilhões em 2025 e R$ 41 bilhões em 20263 e, ainda, em pronunciamentos à mídia, defendeu a alta do IOF como medida eminentemente arrecadatória, necessária para atingir a meta fiscal4 e necessária para equilibrar as contas públicas eivadas por déficits5. O impacto financeiro relatado por uma das requerentes aponta a existência de séria dúvida sobre a natureza difusa da medida, a atingir diversos setores econômicos indiscriminadamente, sem atenção para qualquer mensuramento relativo aos fins exigidos pela extrafiscalidade.

(...)

A existência de séria e fundada dúvida sobre o uso do decreto para calibrar o IOF para fins puramente fiscais, em juízo de cognição sumária, é suficiente para analisar eventual desvio de finalidade na utilização excepcional do art. 153, §1º da Constituição Federal, pois a modificabilidade deste tributo, sem a certeza de servir a propósitos extrafiscais, como os da política monetária, indicando- em tese- objetivos meramente arrecadatórios, ainda que a alíquota do imposto venha a ser elevada dentro do patamar máximo previsto em lei (art. 65, CTN; arts. 1º e 5º, lei 8.894/1994), poderia indicar desvirtuamento da previsão constitucional de "equalização".

O desvio de finalidade, se efetivamente comprovado, é causa de inconstitucionalidade, pois se o ato normativo que disciplina o tributo é editado sem observar tratar-se de um instrumento de extrafiscalidade, mas sim com a finalidade de atingir a meta fiscal e sanar as contas públicas, com fim diverso daquele pretendido pelo Poder Constituinte ao delimitar o ordenamento tributário, ficará demonstrada a existência de incompatibilidade do instrumento normativo.

A partir dessas considerações, e independentemente do julgamento do mérito das ações que tramitam em conjunto, a decisão do ministro Alexandre de Moraes, de chamar os poderes para uma mediação, é questionável, como já pontuou o jurista Pedro Serrano6. Primeiro porque se trata de uma matéria indisponível, cujo substrato se confunde com o núcleo duro da Constituição, como a possível violação da separação de poderes e os limites e possibilidades de cada um dos poderes na defesa de suas funções institucionais.

Além disso, o STF tem uma longa tradição de analisar questões vinculadas a conformidade de decretos editados pelo Poder Executivo e que esbarram em questões de desvio de finalidade, tendo, como se afirmou acima, uma jurisprudência assente no sentido de não prescrutar minuciosamente as finalidades subjacentes. Ainda que esse entendimento fosse agora modificado, o judiciário devia ter prosseguido para proferir uma decisão e não atuar como um mediador político, o que sequer encontra guarida na Constituição.

Por fim, erra também o Poder Legislativo, ao editar o decreto legislativo 176/25, sustando, na integralidade, dos decretos do Poder Executivo. A iniciativa foi justificada no argumento de que: "Além da incontroversa inadequação técnica da medida - que encarecerá o custo do capital de giro e empréstimos, pressionando a inflação - Lula recorre ao IOF para tentar cumprir a regra fiscal sem abdicar de sua obsessão pelo aumento desenfreado dos gastos públicos, com cargos, emendas secretas, doações vultosas a 'ONGs amigas', shows e toda a sorte de mordomias a si, ao cônjuge e militantes". Isso, pois, desborda da competência institucional para a edição de normas dessa natureza, uma vez que se justifica em outros elementos alheios às prerrogativas do Congresso, e não uma possível invasão de competência, nos termos do art. 49, inciso V, da CF.

Essa competência de analisar o desvio de finalidade, como bem pontuado por Marcela Cunha Guimarães (Validade do decreto do IOF: da função extrafiscal ao desvio de finalidade7) é (e só pode ser) do Poder Judiciário. Ainda que se cogite que os Decretos tenham ampliado a hipótese de incidência, o que legitimaria a ação do Poder Legislativo, a sustação deveria ser parcial, sucedida de ajuizamento de ADI para a análise do eventual desvio de finalidade dos decretos editados pelo Poder xecutivo.

Assim, a "soma de todos os erros" que acima se esboçou, é indicativa de uma atual crise institucional que está presente no Brasil, em que se confundem os papeis das instituições e, com frequência, desvirtua-se as atribuições de cada um dos Poderes, em que se judicializam em excesso questões que deveriam ser resolvidas na arena política e se forja instrumentos políticos atípicos, como o decreto legislativo 176/25 - crítica compartilhada por autores como Lenio Luiz Streck e Pedro Serrano que, ao emitirem parecer ao Ministério da Fazenda, levantaram a inconsistência e inadequação da postura do legislativo.

Enfim, o Executivo errou ao ampliar a base de incidência do imposto e desconsiderar sua prioritária finalidade extrafiscal (ainda que houvesse jurisprudência para tanto); o Legislativo errou ao suspender totalmente todos os efeitos dos decretos, mediante a edição de decreto que vai além da prerrogativa constitucionalmente; e, por fim, o Judiciário errou ao tentar conciliar o inconciliável (inconstitucionalidades não se negociam!), além de liminarmente decidir em sentido diametralmente oposto a jurisprudência pacificada sobre o assunto.

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1 Vide entrevista ao Canal 247.Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PuMiqIkvxiI.

2 https://www.conjur.com.br/2025-jul-04/iof-executivo-deve-se-submeter-a-lei/.

3 https://www.gov.br/fazenda/ptbr/central-de-conteudo/publicacoes/apresentacoes/2025/Maio/iof-maio2025.pdf

4 https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/07/01/governo-vaifazer-proposta-ao-congresso-sobre-corte-de-beneficios-fiscais-dizhaddad.ghtml

5 https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/aposcamara-pautar-votacao-haddad-diz-que-iof-equilibra-contas-publicas/

6 Conferir entrevista do jurista em: https://www.youtube.com/watch?v=PuMiqIkvxiI&ab_channel=TV247.

7 https://www.conjur.com.br/2025-jul-01/validade-do-decreto-do-iof-da-funcao-extrafiscal-ao-desvio-de-finalidade/#:~:text=Isso%20porque%20o%20IOF%2C%20enquanto,configura%2Dse%20abuso%20de%20poder.

Letícia de Mello

VIP Letícia de Mello

Doutoranda em Direito (UNISINOS); Especialista em Direito Penal Econômico (IDPEE); Especialista em Direito e Processo Penal (FMP); Especialista em Direito Tributário (FMP); Professora; Advogada.

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