Aplicação do Código de Defesa do Consumidor no transporte aéreo
Neste artigo reafirma-se a prevalência da aplicação do CDC sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica no transporte aéreo de passageiros, bem como afasta-se a tese de antinomia entre aquelas normas.
terça-feira, 15 de julho de 2025
Atualizado às 13:20
A CF/88, ao disciplinar o rol de direitos em seu Título II, Capítulo I, ao tratar dos direitos e garantias fundamentais e dos direitos e deveres individuais e coletivos, respectivamente, prescreveu no art. 5º, XXXII que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor", consignando, posteriormente, no art. 48 do ADCT que "o Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor".
Cumprindo-se a determinação constitucional, o estatuto consumerista (lei 8.078/90) passou a integrar a ordem jurídica brasileira, passando a disciplinar as relações entre consumidores e fornecedores, acompanhando toda a dinâmica que envolve essa relação jurídica, a fim de se evitar e reparar os prejuízos causados ao consumidor.
O CDC operou verdadeira revolução no ordenamento jurídico brasileiro, caracterizada, principalmente, pela interdisciplinaridade de suas normas, as quais alcançam matérias de ordem civil, administrativa, penal e processual, estatuindo uma série de regras e princípios próprios, que lhe conferem autonomia disciplinar.
Sobre a especialidade que caracteriza o CDC, Sergio Cavalieri Filho entende que o estatuto consumerista deve ser entendido como "sobre-estrutura jurídica multidisciplinar, normas de sobredireito aplicáveis em toda e qualquer área do direito onde ocorrer uma relação de consumo" (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 8ª edição. São Paulo, Atlas, 2009, p. 467).
Sendo assim, sempre que se estiver diante de uma relação de consumo, aplicar-se-ão, via de regra, as normas do CDC. Diz-se via de regra porque há exceções, uma vez que, mesmo havendo uma relação de consumo, outras normas poderão ser invocadas para solucionar eventual crise jurídica. Isso decorre da aplicação da teoria do diálogo das fontes1, amplamente estudada pela professora Claudia Lima Marques, que tomou como marco teórico as lições do mestre alemão Erik Jayme - professor da Universidade de Heidelberg. Resumidamente, o diálogo das fontes permite que diversas fontes legislativas sejam aplicadas a um mesmo caso, porém sempre objetivando a solução mais favorável à parte vulnerável na relação jurídica.
Nesse contexto, cabe destacar que em 1985 a 106ª sessão plenária da ONU estabeleceu, através da resolução 39/248, o princípio da vulnerabilidade do consumidor, reconhecendo-o como a parte mais fraca na relação de consumo, tornando-o, portanto, merecedor de tutela jurídica específica, exemplo este seguido pela legislação consumerista brasileira.
Pois bem, foi com base na vulnerabilidade do consumidor - pedra de toque de todo o sistema que o protege - que o CDC estatuiu prazo prescricional diferenciado em relação a outros diplomas legais que cuidam da matéria no que se refere à responsabilidade civil, em regra etiquetada no seu art. 27.2
Por sua vez, o Código Brasileiro de Aeronáutica (lei 7.565, de 19/12/1986) prevê no art. 317 o prazo prescricional de 2 anos para a ação que objetive a reparação por danos causados a terceiros na superfície (inciso II).3
Qual norma aplicar?
Entende-se que, a partir da edição do CDC não há que se falar em antinomia, exatamente em razão de as relações entre consumidor e fornecedor estarem sujeitas às regras do CDC. São relações entre sujeitos desiguais, em que resta evidenciada a vulnerabilidade do consumidor sob diversos aspectos (fático, técnico, econômico, jurídico, digital etc.), e por isso não se aplicam as regras do Código Brasileiro de Aeronáutica.
A prevalência das normas do CDC sobre as regras do CBA, quando o caso envolver relação de consumo, se encontra consolidada no repertório de julgados do STJ (v.g. REsp 1.678.429/SP, REsp 1.281.090/SP e REsp 747.447/AL), em que se reconheceu a aplicação do prazo prescricional de 5 anos previsto no art. 27 do CDC.
Destarte, a ocorrência de defeito na prestação do serviço de transporte aéreo é pressuposto para a aplicação da prescrição quinquenal prevista pelo CDC, pois a responsabilidade por fato do produto ou do serviço (art. 14 do CDC)4 reclama a ocorrência de riscos à saúde ou segurança do consumidor ou de terceiros, isto é, responsabilidade por risco ou ofensa à sua incolumidade física e/ou psíquica.
Outra dúvida pode surgir no que toca ao prazo prescricional previsto no art. 27 do CDC, e se situa em suposta antinomia entre este e o CC. É que, ao apreciarmos as possíveis soluções para as antinomias, costuma-se apontar o critério cronológico como sendo o primeiro a ser observado para solucioná-las. Nesse passo, sendo o CC norma editada posteriormente ao CDC, e prevendo prazo prescricional de 3 anos para a pretensão de reparação civil (art. 206, V), não teria tal regra revogado aquela estatuída pelo codex consumerista?
A resposta é negativa. Flávio Tartuce, com precisão, ensina que dentre todos os critérios existentes (cronológico, da especialidade e hierárquico) "o cronológico é o mais fraco de todos, sucumbindo diante dos demais. O critério da especialidade é o intermediário e o da hierarquia o mais forte de todos, tendo em vista a importância do texto constitucional" (TARTUCE, Flávio. Direito Civil 1: Lei de Introdução e parte geral. 8ª edição. São Paulo: Método, 2012, p. 38).
Posto isto, sendo o CDC norma especial, por proteger um sujeito de direitos específico - o consumidor -, suas normas prevalecem sobre as do CC, que regula relações entre pessoas em situação de equilíbrio.
Contudo, o que dizer no caso de se argumentar que o Código Brasileiro de Aeronáutica também é lei especial? Isto é, poder-se-ia suscitar antinomia entre duas leis especiais (CDC x CBA). Mais uma vez, cite-se a lição de Sergio Cavalieri Filho:
"(...) o Código de Defesa do Consumidor, em observância a preceito constitucional (Constituição Federal, art. 5º, XXXII), veio para implantar uma Política Nacional de Relações de Consumo, vale dizer, estabeleceu uma ordem jurídica uniforme e geral destinada a tutelar os interesses patrimoniais e morais de todos os consumidores, bem como o respeito à as dignidade, saúde e segurança (Código de Defesa do Consumidor, art. 4º). Ao assim dizer, disciplinou não só aquilo que não estava disciplinado, como, ainda, alterou a disciplina que já existia em leis especiais, vale dizer, concentrou em um único diploma a disciplina legal de todas as relações contratuais e extracontratuais do mercado de consumo brasileiro. E se nessa ordem jurídica, nessa consolidação de princípios a respeito do consumidor, não foram excepcionados privilégios previstos em leis anteriores, não mais condizentes com a realidade social, é for; coso concluir que o objetivo da nova lei foi justamente eliminá-los" (Op. cit., p. 321).
Assim, também restará fulminado qualquer possível sustentação no sentido de que o código do consumidor, como lei geral posterior, não derrogou, no que lhe for contrário, o Código Brasileiro de Aeronáutica, como lei especial anterior (lex posteriori generalis non derrogat priori speciali).
Em conclusão, pode-se afirmar que são de nenhum efeito os argumentos apresentados pelas companhias aéreas nas defesas e contestações apresentadas, conforme se trate de processo administrativo ou judicial, no sentido da aplicação do Código Brasileiro de Aeronáutica às relações de consumo. Trata-se de matéria pacificada na doutrina consumerista e em todos os tribunais brasileiros, com destaque para o STJ, já que é o tribunal responsável por uniformizar a aplicação da legislação Federal.
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1 "É o atual e necessário 'diálogo das fontes' (dialogue de sources), a permitir a aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas convergentes. 'Diálogo' porque há influências recíprocas, 'diálogo' porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente (...) ou mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato. Uma solução flexível e aberta, de interpretação ou mesmo a solução mais favorável aos mais fracos da relação (tratamento diferente dos diferentes)". (MARQUES. Claudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 24-25.)
2 Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.
3 Art. 317. Prescreve em 2 (dois) anos a ação:
(...)
II - por danos causados a terceiros na superfície, a partir do dia da ocorrência do fato.
4 Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
§ 1° O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I - o modo de seu fornecimento;
II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III - a época em que foi fornecido.
§ 2º O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas.
§ 3° O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar:
I - que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste;
II - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituição/Constitui%C3%A7ao.htm
_______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm
_______. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm
________. Lei nº 7.565, de 19 de dezembro de 1986. Dispõe sobre o Código Brasileiro de Aeronáutica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7565.htm
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 8ª edição. São Paulo, Atlas, 2009.
MARQUES. Claudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil 1: Lei de Introdução e parte geral. 8ª edição. São Paulo: Método, 2012.


