Protesto prévio: Medida coercitiva. PL 6.204/19 e estudo de caso
A juíza Larissa Boni Valieris determinou o protesto prévio das execuções distribuídas no JEC de Mogi das Cruzes, o que resultou, em um ano, em uma diminuição de 65,8% dos casos analisados.
sexta-feira, 18 de julho de 2025
Atualizado às 10:48
O PL 6.204/19 propõe a desjudicialização da execução civil, conferindo a um serventuário extrajudicial a tarefa de verificar os pressupostos da execução, realizar a citação, penhorar, vender, receber pagamentos e dar quitação, reservando-se ao juiz estatal a eventual resolução de litígios, quando provocado por intermédio dos competentes embargos do devedor ou outros meios de defesa.
Tal projeto delega ao tabelião de protesto a função pública da execução de títulos1-2, de modo a outorgar a um profissional de Direito devidamente concursado e remunerado de acordo com os emolumentos fixados por lei, a condução integral do procedimento executivo civil.
Além da desjudicialização, o projeto visa o fortalecimento do protesto em si. Conforme se extrai do Anuário publicado pela ANOREG - Associação dos Notários e Registradores do Brasil, "Cartórios em Números", relativo ao exercício de 20233, 54,20% dos títulos privados levados a protesto foram pagos, o que significa dizer que mais da metade dos títulos inadimplidos foram recuperados em um prazo de 12 meses, em um valor total de R$ 19.079.934.530,74. Por outro lado, o "Justiça em Números" 4 do CNJ mediu por vários anos - desde 2004 - a efetividade dos processos executivos cíveis, registrando índices que variavam entre 16 e 18%. Infelizmente, nos últimos anos, em razão da complexidade da apuração desses números, o CNJ passou a registrar tão somente a taxa de congestionamento (comparação entre os números de casos novos e baixados), sempre demonstrando um estoque elevadíssimo de execuções cíveis, bem como o índice de produtividade e desempenho dos magistrados e servidores públicos, sempre maior na fase de conhecimento que na fase de execução.
Assim, estabelecer o protesto obrigatório como requisito de admissibilidade das execuções, associado à desjudicialização da execução nos tabelionatos de protestos, seria uma medida capaz de conferir maior efetividade ao cumprimento das obrigações nesse país.
Cumpre registrar que, nos termos do art. 6 do PL 6.204/19, o protesto deve ser prévio: "Os títulos executivos judiciais e extrajudiciais representativos de obrigação de pagar quantia líquida, certa, exigível e previamente protestados, serão apresentados ao agente de execução por iniciativa do credor".5
Não obstante a proposta de desjudicialização da execução civil acima referida, verificou-se que o protesto prévio obrigatório também pode trazer maior eficácia na execução civil no âmbito judicial. É o que se constatou na vara do Juizado Especial Cível e Criminal do Foro de Mogi das Cruzes, onde a juíza titular, Larissa Boni Valieris, passou a determinar o protesto prévio em todo processo executivo em trâmite naquele juízo. Os dados estatísticos obtidos mostram-se muito próximos àqueles apresentados pela ANOREG ("Cartórios em Números") em termos de recuperação de crédito.
Esse breve artigo visa analisar o resultado das 79 decisões judiciais proferidas ao longo de um ano, entre 7/2/23 e 7/2/24, pela juíza Larissa Boni Valieris, cujo teor foi o mesmo em todos os processos executivos de natureza civil distribuídos na sua vara, qual seja:
Vistos. É sabido que há verdadeira campanha para desjudicialização dos conflitos. Trata-se de diretriz prioritária do Conselho Nacional de Justiça (Portaria 16, de 26/02/2015, artigo 1º, item VI). O Código de Processo Civil também incentiva a desjudicialização. A atuação de cartórios extrajudiciais tem muita relevância no assunto, conforme reconhece a doutrina (Ligia Arle Ribeiro de Souza. A importância das serventias extrajudiciais no processo de desjudicialização (www.egov.ufsc.br/ portal/conteudo/import%C3%A2ncia-das-serventias-extrajudicias-no-processo-de-desjudicializa%C3%A7%C3%A3; acesso em 24/08/2017). Na cobrança de dívidas, destaca-se a importância do protesto. Isso foi reconhecido pela edição da Lei Federal nº 12.767/2012, que permitiu expressamente o protesto de certidões de dívida ativa. Tal prática foi adotada pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (Portaria PGFN 429/2014) e também pela Procuradoria do Estado de São Paulo (Decreto Estadual 61.141/2015). Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu possível a exigência de prévio requerimento administrativo para o ingresso no Poder Judiciário (RE 631.240, Rel. Min. Roberto Barroso, Pleno, DJ 03/09/2014). Nos dizeres de Flávia Pereira Ribeiro, a proposta de desjudicialização da execução ou do poder de império também não afronta a Constituição Federal, uma vez que o devedor que entender que a execução realizada por uma agente privado desenvolve-se de forma injusta ou ilegal poderá socorrer-se do Poder Judiciário (...) (Desjudicialização da execução civil. São Paulo, Saraiva, 2013, p. 36). Com todo o respeito, o ingresso no Poder Judiciário não pode ser menos custoso ou sem riscos do que a tentativa de recebimento do crédito mediante o protesto do título, alternativa mais barata para a sociedade, célere e eficiente. Por esse motivo, sem essa tentativa extrajudicial mínima, não se pode admitir que exista sequer interesse de agir. Não se está a negar a jurisdição, mas apenas de prestigiar a solução extrajudicial da questão, mediante coerção indireta realizada pelo protesto. Tal solução é compatível com o princípio da razoável duração do processo, previsto no artigo 5º, LXXVIII, da Constituição Federal. Diante disso, comprove o autor o protesto do título, no prazo de 15 dias, sob pena de extinção da ação. Intime(m)-se.
A decisão analisada determina o protesto do título extrajudicial que lastreia cada um dos processos em que foi proferida, como medida de coerção ao pagamento.
No período de um ano, foram pronunciadas 79 decisões dessa natureza, o que motivou o acompanhamento processual desses casos. Registre-se, oportunamente, que entre 8/2/24 e 13/8/24 foram proferidas outras 59 decisões com o mesmo teor. Entretanto, com fins a viabilizar o estudo qualitativo e quantitativo que se pretende, estes processos não foram levados em consideração neste, uma vez não ser possível obter informações dos resultados da aplicação desta medida coercitiva em curto prazo.
Dos 79 processos analisados, observou-se que, após o proferimento da decisão determinante do protesto prévio, ocorreram as seguintes situações, conforme gráfico abaixo:
De início, verifica-se que em 16,5% dos processos houve pagamento e/ou acordo após o protesto. Ademais, em 11,4% dos processos foi registrada expressa desistência da ação, o que pode indicar provável pagamento da dívida. Desse modo, conclui-se que em 27,8% dos processos houve, muito provavelmente, o pagamento das obrigações após o protesto, representado no gráfico a seguir:
Além disso, em 38% dos casos analisados não se verificou nos autos o cumprimento da ordem judicial. Nesses casos e diante da inércia da parte, a juíza determinou nova intimação para a regularização processual por meio da comprovação do protesto prévio. Mantida a inércia, todos os processos foram extintos sem julgamento do mérito por indeferimento da petição inicial, nos seguintes termos:
Vistos. Dispensado o relatório, nos termos do artigo 38 da Lei n. 9.099/1995. Fundamento e decido. Não regularizados os autos, mesmo após determinação deste juízo (artigo 321, parágrafo único, Código de Processo Civil), é caso de reconhecimento da inépcia da inicial. Transcrevo o julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: "EMBARGOS À EXECUÇÃO - EMENDA DA PETIÇÃO INICIAL - ART. 284, CPC - DESCUMPRIMENTO - Ação autônoma - Necessidade de preenchimento dos requisitos da petição inicial (arts. 282 e 283, CPC) e da juntada das peças processuais relevantes para apreciação da causa (art. 736, parágrafo único, CPC, acrescentado pela Lei nº 11.382/2006) - Concessão de prazo não atendida - A inércia da autora no cumprimento da decisão que determinou a emenda da inicial enseja a aplicação do parágrafo único do art. 284 do CPC, acarretando o indeferimento da inicial com base no art. 295, inciso VI, do CPC - Hipótese em que não há necessidade de intimação pessoal da autora - RECURSO DESPROVIDO. (Apelação nº. 0005300-20.2012.8.26.0099, Relator(a): Sérgio Shimura; Comarca: Bragança Paulista; Órgão julgador: 23ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 24/02/2016; Data de registro: 26/02/2016). DISPOSITIVO Diante do exposto, INDEFIRO a petição inicial, nos termos do artigo 330, I, do Código de Processo Civil. EXTINGO o processo nos termos do artigo 485, I, do mesmo diploma.
Lembrando-se que no Juizado Especial não há obrigatoriedade de postulação por advogado, a ausência de qualquer manifestação nos autos em 38% dos casos deve ser considerada como a falta de interesse no prosseguimento do feito em razão do pagamento do título encaminhado para protesto. Assim, somados aos valores acima indicados como muito provavelmente pagos em 27,8% dos casos, encontra-se o percentual de 65,8% dos processos listados como muito provavelmente pagos após a ordem de protesto, sendo essa, então, a taxa de efetividade da medida coercitiva determinada ex officio por aquele juízo.
Nesses termos, a leitura das obrigações provavelmente pagas passa a ser:
Ainda, identificou-se que a medida não foi efetiva em 19% dos casos, pois apesar de realizado o protesto, não houve o pagamento esperado. Nesses casos, os processos seguiram seu curso normal visando a busca de patrimônio. Cumpre registrar que em muitos desses casos restou constatado que o devedor tinha outros protestos em seu nome - de modo que a medida não seria mesmo efetiva.
Verificou-se também que o título era inábil para protesto em 7,6% dos casos, como, por exemplo, nas hipóteses de execução de contratos de honorários advocatícios, os quais prescindem de assinatura de duas testemunhas. E, por fim, assinalado sob o grifo de "outros", também correspondente a 7,6% dos casos, estão os processos nos quais houve extinção ou redistribuição por questões processuais tais como competência do juizado especial, ilegitimidade, entre outros pressupostos ou condições da ação.
Assim, verifica-se que o protesto prévio é importante ferramenta na busca do adimplemento das obrigações e sua utilização deve ser privilegiada não apenas no contexto da desjudicialização da execução civil, nos termos do PL 6.204/19, mas também nas ações já em tramitação perante o Poder Judiciário.
A iniciativa da juíza Larissa Boni Valieris, ao determinar o protesto prévio em todo processo executivo distribuído na vara do Juizado Especial Cível e Criminal do Foro de Mogi das Cruzes resultaram, no intervalo de um ano, em uma diminuição de 65,8% dos 79 processos analisados e, muito provavelmente, em decorrência da satisfação do crédito reclamado.
Assim, tornar obrigatório o protesto prévio revela-se uma alternativa efetiva para diminuir os "gargalos" da execução civil, seja no Judiciário, seja no tabelião de protesto - novo agente de execução, nos termos do PL 6.204/19.
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1 O poder de império pode ser delegado, por opção legislativa, de modo a mantê-lo sob a esfera estatal. Os atos de constrição patrimonial não podem ser realizados por qualquer particular, mas sim por entes delegados pelo próprio Estado, que assim passam a exercer função pública de forma privada. In: RIBEIRO, Flávia Pereira Ribeiro. A desjudicialização da execução civil. 3. ed. Curitiba: Juruá, 2022. p. 36-37.
2 A execução forçada é um ato de força privativo do Estado. Realiza-se por meio de invasão da esfera patrimonial privada do devedor para promover coativamente o cumprimento da prestação a que tem direito o credor. (...) O direito de praticar a execução forçada é exclusivo do Estado, cabendo ao credor apenas a faculdade de pedir a sua atuação (direito de ação). In: THEODORO JÚNIOR, Humberto. Processo de execução. 22. ed. São Paulo: Liv. E Ed. Universitária de Direito, 2004. p. 56.
3 ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL. Cartório em números: Especial desjudicialização. 5.ed. Disponível em: https://www.anoreg.org.br/site/wp-content/uploads/2024/01/Cartorios-em-Numeros-5a-Edicao-2023-Especial-Desjudicializacao.pdf. Acesso em: 07 ago. 2024.
4 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em: 07 ago. 2024
5 SENADO FEDERAL. Projeto de lei nº 6.204 de 2019. Dispõe sobre a desjudicialização da execução civil de título executivo judicial e extrajudicial; altera as Leis nª a nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996, a nº 9.492, de 10 de setembro de 1997, a nº 10.169, de 29 de dezembro de 2000, e a nº 13.105 de 16 de março de 2015 - Código de Processo Civil. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8049470&ts=1594037651957&disposition=inline. Acesso em: 07 ago. 2024.
Flávia Pereira Ribeiro
Pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, da ABEP, do CEAPRO e do IASP. Idealizadora da tese da "desjudicialização da execução civil" que é referência ao PL 6.204/2019/SN. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Sociedade de Advogados.


