Responsabilidades por danos ambientais
Pretende-se demonstrar a necessidade de dolo e culpa nas responsabilidades civil e administrativas por danos ao ambiente, bem como o ônus da prova da Administração Pública.
quarta-feira, 16 de julho de 2025
Atualizado às 11:26
1.) Devido à unidade do Direito,1 as normas (princípios e regras) estão imbricadas num determinado regime, ou sistema, o regime jurídico-normativo.2 Por conseguinte, essas normas não se encontram avulsas, soltas, pois, se assim fosse, haveria interpretação do Direito desgarrada da realidade jurídica e social, levando ao arbítrio intemperado do aplicador da norma, ou ao abuso do órgão encarregado de decidir o caso concreto: uma decisão - administrativa ou judicial - que esteja fora dos limites jurídicos, portanto, além dos quadros identificados pelas normas jurídicas, seria, extremamente, prejudicial à democracia e ao Estado de Direito.
Daí porque, o Direito contém uma metodologia própria - que lhe confere cientificidade e autoridade -, isto é, critérios específicos de interpretação, os quais foram e são estudados por juristas, escritores, magistrados, advogados, professores e outras profissões da seara jurídica.
Neste trabalho, não se pretende verificar, ou discutir, quais seriam a metodologia e os critérios apropriados - de importância capilar - para intepretação e aplicação do Direito. Uma coisa é certa: a democracia exige fundamentação e justificação (razoabilidade) dos atos estatais, sobretudo quando a situação a ser dirimida se refira a confrontos entre governantes e particulares (pessoas jurídicas e pessoas físicas).
2.) Contudo, a fundamentação e justificação estatal, no Estado Democrático de Direito, precisa adstringir-se ao arcabouço jurídico-normativo, vale dizer, aos quadrantes da ordem jurídica, por meio de interpretação adequada, coerente, proporcional, justa, do regime, ou do sistema, a que se referiu anteriormente: haveria grandes injustiças se o órgão público não observasse as válvulas-mestras incorporadas ao Direito nacional, como o devido processo legal, a presunção de inocência, o direito de defesa, de resposta, o contraditório e demais princípios já tradicionalmente enraizados no sistema jurídico do país.
Especificamente no Direito Ambiental, não se pode olvidar a distinção entre as responsabilidades penal, administrativa e civil por danos [ambientais]. Essas 'responsabilidades', decorrentes da prática de ilícitos ambientais, são, fundamentalmente, aspectos de uma mesma substância jurídica (ilícitos e penalidades), porém, à medida dos contornos jurídicos que lhes conferem juridicidade, havendo, portanto, tipos ou espécies de ilícitos e de sanções: basicamente, criminais, administrativas e civis.3
Nesse sentido, o egrégio STJ editou a seguinte tese: "a responsabilização administrativa por dano ambiental não é objetiva como no campo civil, sendo exigido elemento subjetivo (culpa) e nexo causal entre a conduta do agente e o dano ambiental.'
Interessante este trecho do julgado:
"O STJ, no julgamento do EREsp 1.318.051/51 (relator ministro Mauro Campbell Marques, DJe de 12/6/19) passou a entender que a aplicação de penalidades administrativas não obedece à lógica da responsabilidade objetiva da esfera cível (para reparação dos danos causados), devendo obedecer à sistemática da teoria da culpabilidade, ou seja, a conduta deve ser cometida, pelo alegado transgressor, com demonstração do elemento subjetivo, e com demonstração do nexo causal entre a conduta e o dano." (AgInt no AREsp 2.292.437/ES, relatora ministra Assusete Magalhães, 2ª turma, julgado em 18/12/23, DJe de 20/12/23).
3.) A nosso ver, regra básica, a responsabilidade administrativa, a qual advém da prática de infrações administrativas e cujas sanções são aplicadas (impostas) por autoridades administrativas, pressupõe a demonstração da culpa ou dolo (elemento subjetivo) do infrator ou responsável, a cargo da Administração Pública, conforme se verá oportunamente.
Com efeito, na responsabilidade administrativa em geral, deve-se demonstrar a prática delituosa (conduta), o nexo causal entre esta e o prejuízo, bem como o dolo (vontade dirigida ao resultado) ou a culpa (negligência, imperícia, imprudência). Sem esses elementos, não há como inculcar no infrator a sanção administrativa.
Heraldo Garcia Vitta expõe:
"Ora, no regime jurídico-constitucional desse porte (...), no qual se acentua a República, a democracia e o Estado de Direito, não podemos conceber haja infrações administrativas, diante da mera voluntariedade, sem qualquer análise da culpa ou dolo do infrator."(A Sanção no Direito Administrativo, p.43, Malheiros, 2003).[4]
4.) Assim como ocorre no Direito Penal, no Direito Administrativo denominado Sancionador há necessidade da prova dos 'elementos subjetivos' do infrator da prática de ilícito administrativo.
Noutra obra, o mesmo autor explica:
"Alguns pontos de contato entre esses dois ramos do Direito [Direito Penal e Direito Administrativo] devem ser referidos; princípios, por assim dizer, básicos, estruturais do Direito, constituem dogmas comuns nas duas esferas jurídicas. Sem isso, o Direito seria um ocaso, decadente, sem sentido, írrito, maculado, pois, na própria substância."(Heraldo Garcia Vitta, Responsabilidade Civil e Administrativa por Dano Ambiental, p.158, Malheiros, 2008).
5.) Finalmente, em casos determinados na legislação, a obrigação de reparar o dano - responsabilidade civil - pode prescindir do dolo ou da culpa. Isso ocorre, dentre outras hipóteses, na responsabilidade civil por danos ambientais: o infrator, ou o responsável, responde, de forma objetiva, pelos prejuízos causados ao ambiente (conforme salientado no julgado acima).
Basta demonstrar-se o fato, o dano e o liame ou nexo causal entre o fato e o dano; não se discute, na área de reparação civil de danos ambientais, o elemento subjetivo do infrator ou responsável. É situação já consolidada no meio jurídico, pois decisões judiciais e farta doutrina acenam nesse sentido. Cuida-se, ademais, de responsabilidade civil solidária de todos que tenham concorrido para os prejuízos ambientais (Heraldo Garcia Vitta, Responsabilidade..., cit., p.86).
6.) Com esses apontamentos, pode-se avançar para a seguinte discussão: no âmbito das sanções administrativas (inclusive ambientais), a quem compete demonstrar, provar, a culpa ou dolo do infrator? Segundo entendimento corrente, a presunção de legitimidade do ato administrativo impõe a obrigação ao infrator o ônus da prova quanto à sua inocência. Noutro dizer: por conta da presunção da veracidade dos fatos atribuídos ao infrator, por ato administrativo (auto de infração), compete-lhe provar, no processo administrativo, ou judicial, sua inocência, como a falta da culpa ou dolo.
Com todo o respeito, não se pode acolher esse ponto de vista; em virtude do princípio da presunção de inocência, inerente ao regime de penalidades em geral, o ônus da prova é de quem 'acusa' o infrator: no âmbito criminal, o Ministério Público, em processo judicial, terá essa incumbência; na seara administrativa, a autoridade administrativa competente, no bojo do processo administrativo, deverá provar o fato, os danos, o nexo causal e o dolo ou culpa do infrator:
"É preciso que a Administração, como condição para impor as respectivas penalidades, demonstre os fatos, produzindo provas, ainda quando o administrado [acusado ou infrator] não os tenha impugnado perante a Administração ou o Judiciário. O princípio da verdade material e o da inocência das pessoas levam a Administração, no procedimento administrativo instaurado para impor penalidades administrativas, a produzir provas quanto ao motivo do ato - aplica-se o adágio: quem alega, prova!" (Heraldo Garcia Vitta, Poder de Polícia, p.228, Malheiros, 2009. Grifos originais).
O ônus da prova - a cargo da autoridade pública - quanto aos motivos do ato administrativo (fatos atribuídos ao infrator), aos danos ambientais, ao nexo causal e, sobretudo, à culpa ou dolo são fundamentais à responsabilização administrativo-ambiental (imposição da penalidade administrativa).
7.) Logo, se não houver a demonstração, pelo órgão público competente, dos requisitos para a responsabilidade administrativa, o interessado poderá pedir a anulação ou reforma da decisão, mediante recurso hierárquico à autoridade superior, no âmbito da Administração Pública; ou, por meio de ação judicial, solicitar a invalidação do processo administrativo.
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1 Nos termos da abalizada doutrina de Norberto Bobbio, o sistema normativo é um ordenamento, isto é, "uma entidade unitária constituída pelo conjunto sistemático de todas as normas." (O Positivismo Jurídico, p.197, Ícone, 1995).
2 Seguindo os preciosos ensinamentos de Geraldo Ataliba e de Celso Antônio Bandeira de Mello [Elementos de Direito Tributário, p.18 e ss, RT, 1978], escrevemos: "O caráter sistemático do Direito faz com que ele seja unitário. O direito é um conjunto harmônico em que as partes guardam relações de harmonia e equilíbrio entre si. É um sistema que não tem vazios, enclausurado, fechado. A lacuna é da norma, e não do sistema. Não se pode isolar um único instituto jurídico para ser estudado separadamente, porque ele faz parte de um sistema. Não há norma jurídica avulsa, isolada."(Heraldo Garcia Vitta, Aspectos da Teoria Geral no Direito Administrativo, p.24, Malheiros, 2003. Grifos originais).
3 Cf. Nelson Hungria, "Ilícito administrativo e ilícito penal", RDA, Seleção Histórica, 1945-1995, p.15).
4 O autor refere à voluntariedade da seguinte forma: "A voluntariedade da conduta reduz-se à posse de consciência e de liberdade, de quem produza essa conduta; a intencionalidade não é elemento essencial."(idem, ibidem, p.40, grifos originais).


