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Empresas com propósito e o novo pacto fiscal: Da neutralidade à transformação

Empresas com propósito ganham espaço no novo pacto fiscal, unindo lucro e impacto social com critérios claros para benefícios tributários.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Atualizado em 17 de julho de 2025 14:50

Por muito tempo, a discussão sobre empresas com propósito foi tratada como uma questão periférica no direito brasileiro, percebida como uma derivação ética do mercado ou como um gesto voluntarista. O desafio que se coloca não é o de conceder incentivos fiscais a qualquer estrutura que reivindique um papel social. É o de distinguir, com rigor e critério, aquelas entidades empresariais que incorporam o interesse público de forma verificável, transparente e permanente. Empresas que assumem, de maneira estatutária e mensurável, finalidades coletivas relevantes não podem ser tratadas com a mesma indiferença normativa que se aplica a estruturas puramente orientadas à maximização do retorno par os acionistas.

O novo sistema tributário, ao exigir fundamentos objetivos para a concessão de benefícios, cria o ambiente institucional necessário para essa diferenciação. Tributação Transformadora (Lumen Juris, 2025) antecipa essa lógica e propõe que o reconhecimento da finalidade pública seja traduzido em norma jurídica eficaz. Essa transformação começa pelo direito societário, encontra respaldo no direito tributário e se concretiza quando o propósito passa a ser reconhecido como expressão legítima de uma economia comprometida com os valores de nosso tempo.

A EC 132 e os PLP 116, 102 e 114, que regulam sua implementação, redesenham não só a lógica da arrecadação, mas também a arquitetura institucional da política fiscal brasileira. Entre os avanços menos destacados, mas de impacto profundo, está a abertura normativa para que tratamentos tributários diferenciados sejam reconhecidos com base em critérios como sustentabilidade ambiental, impacto social positivo e promoção da justiça distributiva. Mais do que isso, a própria EC 132 insere expressamente a proteção ao meio ambiente como um dos princípios constitucionais do sistema tributário nacional, ao lado da neutralidade, da simplicidade, da transparência e da justiça fiscal. Trata-se de um reconhecimento inédito de que o tributo não é apenas instrumento arrecadatório, mas também expressão de valores constitucionais materiais.

Esse novo ambiente jurídico é fértil para que se reconheça, com seriedade, a figura das empresas com propósito. Estruturas empresariais que integram, em sua razão de ser, objetivos públicos e compromissos com a coletividade não podem ser tratadas como equivalentes funcionais de empresas orientadas exclusivamente por retorno financeiro. Se o pacto fiscal brasileiro exige racionalidade e justiça, não é mais possível tributar da mesma forma estruturas que operam com fundamentos tão distintos.

É nesse contexto que ganha centralidade a proposta de criação da SBIC - Sociedade de Benefício e Interesse Coletivo, prevista no PL 3283 de 2021. Inspirada em experiências internacionais, essa figura jurídica permitiria que empresas incorporassem, de forma vinculante, finalidades sociais ou ambientais nos seus atos constitutivos. O projeto prevê cláusulas estatutárias específicas, relatórios periódicos de impacto e deveres de governança compatíveis com a dupla finalidade da organização. Ainda assim, a proposta carece de densidade jurídica mais clara. Sua eficácia dependerá da construção de instrumentos normativos que garantam a legitimidade declaratória da missão e sua tradução prática em obrigações, métricas e consequências regulatórias.

Nesse sentido, vale lembrar que o ordenamento jurídico brasileiro já convive com entes que conciliam finalidade econômica e missão pública, como é o caso das sociedades de economia mista. Embora sejam controladas pelo Estado, essas sociedades estão sujeitas ao regime privado, competem no mercado e têm por objetivo tanto a geração de resultado quanto a realização de políticas públicas. O que distingue as SBICs é que esse duplo compromisso é assumido de forma voluntária e privada, com transparência estatutária e mecanismos de prestação de contas que podem, se bem desenhados, conferir a essas empresas um papel estrutural na arquitetura de uma economia orientada por valores. Ao lado das sociedades de economia mista, elas podem ser vistas como expressões distintas de um mesmo fenômeno: a superação da dicotomia entre lucro e interesse público na construção de modelos empresariais legitimados democraticamente.

Embora o Brasil ainda não disponha de um marco legal consolidado para as empresas com propósito, há exemplos crescentes de adoção voluntária dessa identidade institucional. Empresas como Natura, Fazenda da Toca, Grupo Gaia e Mãe Terra já revisaram seus estatutos ou práticas de governança para incorporar missões socioambientais de forma vinculante. Trata-se de uma transformação que antecipa o que o direito ainda não regulamentou. Um movimento que não parte do Estado, mas do próprio sistema empresarial, e que exige do direito não apenas aceitação, mas integração normativa.

Essa transição se insere no conceito de sustainability as a business. A sustentabilidade aqui não é custo nem filantropia. É a razão mesma de existência da empresa. Ela molda decisões estratégicas, estrutura políticas de remuneração, redefine a lógica da alocação de capital e impõe deveres adicionais de transparência, isso tudo distante das mazelas conhecidas das sociedades de economia mista que, muitas vezes, estão sujeitas a critérios políticos para a eleição de seus quadros diretivos. Quando bem estruturada, essa forma de organização não compromete a rentabilidade, mas a ancora em parâmetros éticos e institucionais que a tornam socialmente legítima.

No plano comparado, os modelos estrangeiros oferecem precedentes relevantes. Nos Estados Unidos, as Benefit Corporations integram o direito societário estadual e impõem deveres aos administradores que vão além da proteção do acionista, exigindo consideração explícita dos impactos sociais e ambientais das decisões empresariais. A certificação voluntária como B Corp complementa essa estrutura com métricas auditáveis. Na França, a société à mission, prevista no CC desde 2019, exige que a missão da empresa esteja inscrita no estatuto, acompanhada por um comitê independente de acompanhamento e por relatórios públicos que devem ser avaliados por terceiros. Na Itália, combina-se cláusulas estatutárias com obrigações de reporte anual, reconhecendo a compatibilidade entre lucro e missão sem sacrificar a clareza jurídica.

Esses modelos revelam que não se trata de premiar intenções, mas de reconhecer estruturas que assumem riscos adicionais e geram valor público mensurável. São experiências normativas que traduzem em forma jurídica aquilo que muitas vezes permanece na retórica empresarial. E são, acima de tudo, compatíveis com sistemas jurídicos exigentes, inclusive de matriz romano-germânica como o brasileiro.

Em Tributação Transformadora, propus que o sistema tributário não pode se restringir à neutralidade formal. Ele deve expressar uma arquitetura normativa coerente com os compromissos constitucionais assumidos pelo Estado. Isso inclui a redistribuição da riqueza, a proteção ambiental e o estímulo a formas econômicas que internalizem as externalidades positivas de sua atuação. Empresas com propósito não pedem privilégio. Pedem reconhecimento jurídico como figuras que contribuem para o adensamento institucional da democracia econômica.

Com a reforma tributária, o Brasil passa a exigir que qualquer benefício fiscal tenha justificativa clara, mensuração de resultados e transparência na concessão e na manutenção. Essa nova lógica elimina as margens para favores setoriais casuísticos e abre espaço para que modelos como a SBIC disputem legitimamente um tratamento tributário diferenciado. Para isso, será preciso que sua estrutura jurídica evolua, incorporando exigências de governança, fiscalização e accountability que assegurem sua efetividade. O tratamento diferenciado, quando houver, deverá ser construído com base em impacto real, compromisso institucional e aderência a finalidades públicas verificáveis.

Empresas com propósito são um ponto de inflexão no debate sobre a função da empresa na sociedade contemporânea. Representam uma transição do modelo exclusivamente contratual para uma compreensão institucional da atividade econômica. São, portanto, parceiras potenciais de um novo pacto fiscal e social que busca alinhar arrecadação, justiça e sustentabilidade. O tributo, nesse cenário, deixa de ser apenas instrumento de financiamento do Estado. Passa a ser ferramenta de reconhecimento, de indução e de transformação e as empresas deixam de ser orientadas apenas pela lógica do lucro para incorporar efetivamente a função social prevista na Constituição.

O desafio que se coloca não é o de conceder incentivos fiscais a qualquer estrutura que reivindique um papel social. É o de distinguir, com rigor e critério, aquelas organizações que incorporam o interesse público de forma verificável, transparente e permanente. Empresas que assumem, de maneira estatutária e mensurável, finalidades coletivas relevantes não podem ser tratadas com a mesma indiferença normativa que se aplica a estruturas puramente orientadas por critérios privados. O novo sistema tributário, ao exigir fundamentos objetivos para a concessão de benefícios, cria o ambiente institucional necessário para essa diferenciação.

Esse ambiente é também o espaço onde o direito societário, o direito ambiental e o direito tributário podem atuar de forma coordenada. Ao reconhecer a função transformadora da empresa com propósito, o direito societário contribui para redesenhar as finalidades empresariais e reforçar compromissos de governança. O direito ambiental estabelece parâmetros materiais de atuação e impõe responsabilidades claras quanto ao impacto ecológico das atividades econômicas. O direito tributário, por sua vez, pode operar como mecanismo de indução positiva, premiando comportamentos empresariais alinhados ao interesse coletivo e traduzindo em norma fiscal aquilo que o pacto constitucional já antecipa como valor.

Quando caminham juntos, esses ramos do direito deixam de apenas reagir às disfunções do mercado e passam a orientar a economia para fins que sejam compatíveis com a preservação da vida, a equidade social e a integridade das instituições democráticas. Essa lógica e propõe que o reconhecimento da finalidade pública seja traduzido em norma jurídica eficaz. Essa transformação começa pelo direito societário, encontra respaldo no direito tributário e se concretiza quando o propósito passa a ser reconhecido como expressão legítima de uma economia comprometida com os valores do século XXI.

José Andrés Lopes da Costa

José Andrés Lopes da Costa

Advogado e mestre em Direito Tributário Internacional e Desenvolvimento pelo IBDT-SP.

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