"Cura gay" e liberdade religiosa: Quando legislar é censurar
O artigo analisa projetos legislativos que, ao proibir a "cura gay", violam a liberdade religiosa, desrespeitando a Constituição e a autonomia individual.
sexta-feira, 18 de julho de 2025
Atualizado às 10:26
Duas propostas legislativas - uma tramitando na ALESP - Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e outra na ALBA - Assembleia da Bahia - vêm acendendo um alerta entre operadores do Direito, juristas e comunidades religiosas. Trata-se de projetos que pretendem proibir as chamadas "terapias de conversão", conhecidas popularmente como "cura gay".
Embora os projetos sejam justificados como instrumentos de proteção à dignidade da população LGBTQIA+, ao examinarmos seus dispositivos de forma técnica e constitucional, constatamos que eles avançam perigosamente sobre direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988, como a liberdade religiosa, a livre manifestação do pensamento e o direito ao aconselhamento espiritual voluntário.
O que dizem os projetos
O PL 1495/23, de autoria da deputada Érica Malunguinho (PSOL-SP), dispõe:
"Fica proibida a oferta, o uso, a realização e a divulgação de qualquer procedimento ou atendimento que objetive a reversão da orientação sexual ou da identidade de gênero de pessoas LGBTQIA+, ainda que com o consentimento destas."
E complementa, no parágrafo único:
"Incluem-se no disposto no caput os cultos, palestras, eventos, encontros e qualquer atividade coletiva ou individual que utilize práticas de aconselhamento, orientação, imposição, condicionamento ou qualquer outra forma de interferência com o objetivo de alterar a orientação sexual ou identidade de gênero."
Já o projeto da ALBA, de autoria do deputado Hilton Coelho (PSOL), protocolado sob o 25.862/25, prevê sanções administrativas a instituições - inclusive religiosas - que promovam ações que "tenham por objetivo modificar ou coagir a orientação sexual de terceiros".
A amplitude dos textos revela um grave problema: eles atingem diretamente práticas religiosas legítimas, como cultos, orações e aconselhamentos prestados de forma voluntária e consentida, ferindo, assim, pilares centrais do Estado Democrático de Direito.
O que diz a Constituição
A Constituição Federal é clara: o art. 5º, VI, assegura a liberdade de consciência e de crença, bem como o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e suas liturgias. Os incisos IV e IX do mesmo artigo protegem a liberdade de expressão e a livre manifestação de pensamento.
O STF já se manifestou em decisões paradigmáticas sobre o tema. Na ADI 2566/DF, a Corte reconheceu a ampla proteção à liberdade de expressão, inclusive no contexto religioso. Na ADI 4275/DF, reafirmou que o Estado não pode interferir no conteúdo doutrinário de qualquer religião, tampouco impor censura prévia à sua manifestação.
Vale lembrar que o Brasil é um Estado laico, mas não ateu. A laicidade pressupõe neutralidade estatal em relação às crenças religiosas, e não hostilidade. Tanto que o preâmbulo da nossa Constituição invoca "a proteção de Deus", o que tem sido interpretado pelo STF como um símbolo cultural, sem implicar violação da laicidade.
Proibir o que é consentido?
A grande armadilha dessas propostas está em sua redação genérica e ampla, que não diferencia entre práticas abusivas - que devem, de fato, ser combatidas - e manifestações legítimas de fé, como quando um fiel busca, por sua livre e consciente vontade, aconselhamento espiritual com base em sua crença.
A tentativa de vedar esse tipo de interação, mesmo quando consentida, configura censura e afronta o princípio da dignidade da pessoa humana. A liberdade religiosa não se restringe ao direito de crer, mas abrange o direito de manifestar essa fé, ensiná-la, transmiti-la e, sobretudo, aconselhar com base nela.
A proteção à população LGBTQIA+ deve ser constantemente buscada e promovida, com base no respeito, dignidade e reconhecimento de sua cidadania plena. São pessoas, sujeitos de direito e titulares de todas as garantias constitucionais. No entanto, não é constitucionalmente aceitável que, sob o pretexto de proteger um grupo, o Estado viole os direitos de outro. A convivência democrática exige equilíbrio, não hierarquia entre liberdades.
Além disso, o CC brasileiro estabelece que as pessoas plenamente capazes podem exercer sua autonomia de vontade. O art. 4º do CC delimita os casos de incapacidade, e qualquer cidadão capaz tem o direito de buscar aconselhamento religioso, inclusive relacionado à sexualidade, se assim desejar. Uma lei estadual que interfira nesse aspecto incorre em invasão da competência da União, pois legislar sobre Direito Civil é competência privativa da União, nos termos do art. 22, inciso I, da Constituição Federal.
O papel do Estado e os limites da proteção
É legítima a preocupação com práticas que violem a dignidade de pessoas LGBTQIA+. No entanto, essa proteção precisa ser feita dentro dos marcos constitucionais, respeitando igualmente os direitos das comunidades religiosas e dos indivíduos que professam suas crenças.
Propostas como essas, da forma como estão redigidas, extrapolam os limites constitucionais ao tentar disciplinar conteúdos de fé, impor uma forma única de discurso e impedir que cidadãos adultos e conscientes escolham, voluntariamente, buscar aconselhamento espiritual. Isso não é proteção. É repressão.
Considerações finais
O combate à discriminação deve andar de mãos dadas com a proteção das liberdades fundamentais. Em uma democracia, a convivência entre diferentes visões de mundo deve ser construída com base no diálogo, no respeito e no pluralismo.
Proibir cultos, orações e conselhos baseados em doutrinas religiosas, ainda que procurados de forma espontânea, compromete a própria ideia de liberdade que se pretende proteger. O que se espera é que os legisladores, ao legislar sobre temas sensíveis, tenham como norte não apenas as intenções, mas os limites traçados pela Constituição.
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Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Projeto de Lei nº 1495/2023. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/propositura/?id=1000641566. Acesso em: 16 jul. 2025.
Assembleia Legislativa do Estado da Bahia. Projeto de Lei nº 25.862/2025. Disponível em: https://www.al.ba.gov.br/midia-center/noticias/64687. Acesso em: 16 jul. 2025.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br. Acesso em: 15 jul. 2025.
STF. ADI 2566/DF. Rel. Min. Ayres Britto. Tribunal Pleno. J. 18/06/2008.
STF. ADI 4275/DF. Rel. Min. Dias Toffoli. Tribunal Pleno. J. 15/03/2016.


