Neurociência e TEAF: O que o sistema de Justiça precisa saber
O TEAF resulta da exposição pré-natal ao álcool, causando prejuízos cognitivos e comportamentais. Invisível na maioria dos casos, é confundido com má conduta, dificultando diagnóstico e apoio.
terça-feira, 22 de julho de 2025
Atualizado em 24 de julho de 2025 10:52
Introdução
O TEAF - Transtorno do Espectro Alcoólico Fetal - tradução oficial para FASD - Fetal Alcohol Spectrum Disorder - descreve um conjunto de alterações físicas, cognitivas, emocionais e comportamentais resultantes da exposição ao álcool durante a gestação. A forma mais grave, conhecida como SAF - Síndrome Alcoólica Fetal, apresenta características faciais típicas, comprometimento do crescimento e disfunção cerebral. No entanto, a maioria dos casos de TEAF não exibe sinais físicos evidentes, o que torna essa condição amplamente invisível.
Essa invisibilidade tem consequências concretas: crianças e adolescentes com TEAF costumam ser rotulados como desatentos, impulsivos, indisciplinados ou desmotivados. O desconhecimento sobre os efeitos do álcool no cérebro em desenvolvimento contribui para a falta de diagnóstico e de intervenções adequadas - e, em alguns casos, para a responsabilização injusta de comportamentos que têm origem neurobiológica. Este artigo discute os impactos neurocientíficos e sociais do TEAF e propõe caminhos para políticas públicas e práticas institucionais mais informadas.
Como o álcool afeta o cérebro em desenvolvimento
A neurociência tem avançado na compreensão dos efeitos do álcool sobre o cérebro fetal. O etanol atravessa facilmente a placenta e se acumula no organismo do feto, alcançando concentrações de álcool no sangue semelhantes às da gestante. Essa exposição, mesmo em doses consideradas leves, interfere diretamente na formação e maturação de estruturas cerebrais críticas.
Dentre as regiões mais vulneráveis estão o hipocampo (memória e aprendizado), o córtex pré-frontal (planejamento, julgamento e autocontrole), o cerebelo (coordenação motora e equilíbrio emocional) e os gânglios da base (regulação de comportamento). O álcool compromete a neurogênese, a migração celular e, especialmente, a plasticidade sináptica que se trata da capacidade das conexões neuronais de se fortalecerem com a experiência.
Com a plasticidade prejudicada, o cérebro em desenvolvimento perde parte de sua habilidade de adaptar-se ao ambiente, consolidar aprendizagens e regular emoções. Isso explica por que indivíduos com TEAF apresentam dificuldades persistentes em contextos educacionais e sociais, mesmo que intelectualmente tenham potencial para se desenvolver.
Prevalência e subdiagnóstico: A epidemia invisível
Apesar de sua gravidade, o TEAF é amplamente subnotificado. Estudos realizados em maternidades públicas brasileiras, como os de Marini et al., identificaram taxas de 38,7 casos de TEAF por mil nascidos vivos, incluindo 1,5 por mil da forma completa (SAF). Estimativas nacionais sugerem que entre 1,9 e 9,5 milhões de brasileiros possam estar no espectro, o que representa de 0,94% a 4,68% da população.
A ausência de marcadores laboratoriais confiáveis torna o diagnóstico complexo. Ele depende de uma avaliação clínica minuciosa que combine histórico gestacional, exames físicos, avaliação neuropsicológica e análise funcional. Tal abordagem exige equipes multidisciplinares capacitadas, algo ainda escasso na maioria das regiões brasileiras.
Em consequência, a maioria das crianças afetadas permanece sem diagnóstico, sem apoio escolar individualizado e sem acesso a terapias essenciais. Em contextos vulneráveis, onde fatores como pobreza, negligência e baixa escolaridade dos cuidadores já impactam o desenvolvimento, o TEAF atua como fator de risco adicional - perpetuando desigualdades e trajetórias de exclusão.
Prevenção e políticas públicas: A intervenção mais eficaz
A boa notícia é que o TEAF é 100% prevenível. A única forma segura de evitar seus efeitos é a abstinência total de álcool durante a gestação. No entanto, muitas mulheres desconhecem esse risco. Pesquisas mostram que cerca de 15% das gestantes no Brasil consomem bebidas alcoólicas, e há tendência de aumento do uso abusivo entre mulheres em idade fértil.
Nesse contexto, políticas públicas de prevenção têm papel decisivo. Campanhas educativas claras, acessíveis e culturalmente sensíveis devem informar sobre os riscos do consumo de álcool na gravidez. Estratégias como o Projeto Hera - iniciativa do governo federal que visa capacitar milhares de profissionais da saúde e da assistência social para prevenir o uso de álcool e outras drogas entre gestantes, lactantes e mães na primeira infância - representam passos importantes nessa direção. Além disso, grupos de apoio, acolhimento pré-natal qualificado e articulação intersetorial podem contribuir para a construção de uma cultura de prevenção efetiva. Identificação, Intervenção e Justiça Informada
Além da prevenção, é fundamental reconhecer e apoiar quem já vive com os efeitos do TEAF. Para isso, são necessárias três frentes de atuação:
- Identificação precoce: Incluir a triagem de histórico gestacional e sinais de desenvolvimento atípico no atendimento básico de saúde e educação. O diagnóstico oportuno permite intervenções que reduzem prejuízos e melhoram a qualidade de vida.
- Intervenções adaptadas: Crianças e adolescentes com TEAF se beneficiam de estratégias pedagógicas diferenciadas, terapias multidisciplinares e apoio familiar contínuo. A adaptação deve considerar suas limitações cognitivas e emocionais, priorizando a inclusão.
- Capacitação institucional: Profissionais da saúde, educação e justiça precisam conhecer os efeitos do TEAF. Isso evita interpretações equivocadas de comportamentos e permite que decisões (inclusive jurídicas) sejam fundamentadas em evidências neurocientíficas.
A neurociência, nesse sentido, não substitui o direito, mas pode ampliar sua capacidade de entender realidades humanas complexas. Ao revelar os efeitos invisíveis da exposição ao álcool durante a gestação, ela convida o sistema de justiça a agir com empatia, prudência e proporcionalidade.
Capacidade civil e sua intersecção com o Transtorno do Espectro Alcoólico Fetal
A concepção clássica de capacidade civil no ordenamento jurídico brasileiro está prevista nos arts. 3º e 4º do CC. Segundo o art. 3º, absolutamente incapazes são apenas os menores de 16 anos.
No entanto, o art. 4º, em especial o inciso III, reconhece como relativamente incapazes aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade.
Este é precisamente o caso de indivíduos diagnosticados com o TEAF - Transtorno do Espectro Alcoólico Fetal, condição neurocomportamental que pode gerar impactos permanentes em funções executivas, raciocínio abstrato, controle de impulsos e compreensão de normas sociais, o que prejudica a autonomia decisória.
A jurisprudência reconhece a necessidade de intervenção nesse tipo de caso. Vejamos:
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE CURATELA - MAIOR INCAPAZ - ALTERAÇÃO DO COMPORTAMENTO COM INFANTILIDADE - SÍNDROME ALCÓOLICA FETAL - ATRASO MENTAL - POSSIBILIDADE - ANÁLISE DA SITUAÇÃO DO CURATELADO CASO A CASO - NECESSIDADE. - A pessoa maior de 16 anos, possuidora de deficiência física, mental ou intelectual, deve ser considerada relativamente incapaz. - Inobstante tal previsão do Estatuto da pessoa com deficiência, constatada por laudo médico a incapacidade para a prática dos atos da vida civil por parte da apelada, é possível, decretar a interdição, por se tratar de medida protetiva adequada à tutela dos interesses do incapaz, o qual não possui o discernimento necessário para a prática dos atos negociais e patrimoniais. (TJ/MG, Câmara Justiça 4.0, Ap. 5000586-06.2023.8.13.0778, rel. des. ÉLITO BATISTA DE ALMEIDA, j. 5/8/2024, Dje. /6/8/2024)
Ademais, observa-se, também, uma evolução jurisprudencial no sentido de reconhecer o dever do Poder Público, em assegurar atenção integral às pessoas com TEAF - Transtorno do Espectro Alcoólico Fetal. Sobretudo no contexto educacional. Os tribunais têm reiteradamente determinado que a Administração Pública implemente políticas específicas e ofereça suporte técnico e pedagógico adequado, promovendo, assim, a inclusão efetiva e o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA - DIREITO À EDUCAÇÃO - MENOR - RETARDO MENTAL LEVE E TRANSTORNO DE DÉFICIT DE ATENÇÃO - PROFESSOR DE APOIO - ACOMPANHAMENTO - NECESSIDADE COMPROVADA - IMPOSIÇÃO DE MULTA COMINATÓRIA - CABIMENTO - SENTENÇA MANTIDA - RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Consoante o texto constitucional, a educação é direito de todos e dever do Estado, devendo o ensino ser ministrado visando à igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, sendo que a Lei de diretrizes e bases da educação nacional assegura a contratação de professores capacitados para atendimento às crianças com dificuldade de aprendizagem ou necessidades especiais, de forma a garantir sua integração nas classes comuns. 2. Comprovado o quadro clínico de retardo mental leve e transtorno de déficit de atenção, revela-se necessário o acompanhamento por professor de apoio, devendo ser mantida a sentença que impôs ao ente estatal a obrigação de disponibilizar profissional especializado para os menores. 3. A multa coercitiva visa dar cumprimento ao princípio da efetividade da jurisdição, no sentido de se assegurar o cumprimento da obrigação, de modo que deve ser mantida. 4. Sentença mantida. 5. Recurso não provido. (TJ/MG, 2ª Câmara Cível, Ap. 0049812-49.2018.8.13.0452, rel. des. RAIMUNDO MESSIAS JÚNIOR, j. 20/7/2021, Dje. 21/7/2021)
Assim, a abordagem jurídica do TEAF exige não apenas a proteção prevista nas searas civil e penal. Sobretudo, a formulação de políticas públicas interdisciplinares, que assegurem à criança com esse transtorno, o respeito ao seu desenvolvimento neurocognitivo, a efetiva inclusão escolar e social. Bem como, a prevenção da institucionalização inadequada. Destaca-se, e, tal cenário, o papel ativo do Poder Judiciário, que tem suprido omissões do Estado por meio de decisões garantidoras de direitos fundamentais.
Conclusão
O Transtorno do Espectro Alcoólico Fetal representa um dos maiores desafios de saúde pública silenciosos do país. Suas causas são evitáveis, seus impactos são profundos e seu reconhecimento é urgente. Romper com o ciclo de invisibilidade exige informação, prevenção, diagnóstico precoce e atuação intersetorial.
Ao integrar a neurociência às políticas públicas e ao sistema de justiça, damos um passo decisivo para construir uma sociedade mais justa, inclusiva e baseada em evidências. Reconhecer o TEAF é, acima de tudo, um ato de responsabilidade coletiva.
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Referências
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https://www.sbp.com.br/imprensa/detalhe/news/sbp-cria-grupo-de-trabalho-sobre-transtorno-do-espectro-alcoolico-fetal/
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https://www.gov.br/mds/pt-br/noticias-e-conteudos/desenvolvimento-social/noticias-desenvolvimento-social/prevencao-ao-uso-de-drogas-e-alcool-por-maes-gestantes-e-lactantes-recebe-reforco-de-r-6-2-milhoes.
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