Furto famélico e a fome do Estado para condenar
Análise crítica da jurisprudência do STJ sobre o furto famélico evidencia contradições dogmáticas e insensibilidade estatal frente à realidade da fome no país.
terça-feira, 22 de julho de 2025
Atualizado em 21 de julho de 2025 15:05
Recentemente vem se somando decisões no STJ, a exemplo daquela proferida no EAREsp 2.791.926, em que se estabeleceu o entendimento de que "Independentemente do valor bem, para ser considerado famélico, a subtração deve recair sobre alimento consumível imediatamente em situação em que o agente não tenha alternativas para garantir a sua subsistência naquele momento - ponto de contato com a inexigibilidade de conduta adversa."
A rigor, não com estas palavras, a Corte da Cidadania está a exigir, para caracterização do que se nomeou como Furto Famélico, uma situação de quase periclitação da vida (ou a própria falência vital humana) como condição para reconhecimento do instituto.
A questão comporta correta análise de cunho dogmático que, com as licenças de estilo, ao menos em tese, o Tribunal Superior não vem fazendo.
Primeiro, vem se observando uma absoluta dissonância na Corte Superior no tocante ao enquadramento jurídico do furto famélico, notadamente no que se refere às suas consequências no conceito analítico de crime.
Explica-se.
No HC 349744/SP, por exemplo, o STJ chegou a admitir que o furto famélico poderia ser enquadrado como uma dirimente supra legal, pois se amoldaria nos casos de inexigibilidade de conduta diversa. Ou seja, uma hipótese de exclusão de culpabilidade, o que significa dizer, lado outro, que o fato é típico e antijurídico (ilícito, portanto), apenas não sofrerá a censura do Estado (fulmina-se a culpabilidade).
Por sua vez, no AREsp: 2.338.666/TO, o Tribunal da Cidadania compreendeu que o furto famélico estaria inserto na hipótese do Estado de Necessidade. Excludente de ilicitude, portanto. Aqui o fato também seria típico, porém deixaria de ser ilícito.
No AgRg no AREsp: 2.216.975/RN, o STJ compreendeu que "Tratando-se de um furto evidentemente famélico, a existência das qualificadoras do concurso de pessoas e do abuso de confiança não impede o reconhecimento do princípio da insignificância" e, nestes termos, concluiu pela atipicidade material da conduta pelo princípio da insignificância, perfilhando o entendimento, assim, que a ação não teria ofendido efetivamente um bem jurídico.
Um dissenso completo e justamente no Tribunal em que se alçou, constitucionalmente, a missão de se pacificar entendimentos jurídicos.
Com efeito (e é preciso se reconhecer), seja afetando a tipicidade, antijuridicidade ou a culpabilidade, a consequência sob o ponto de vista prático é a mesma: o fato deixa de ser crime. Contudo, este é o desdobramento ordinário, de praticidade. É preciso, antes, haver consenso sobre o correto enquadramento jurídico desse instituto, vez que na ótica abstrata, da dogmática, não é uma providência de "tanto faz".
Reconhecer-se uma conduta como atípica difere da conduta que não é antijurídica que, por sua vez, destoa daquela que está alijada de culpabilidade. Do contrário, estar-se equiparando todas as fases do conceito analítico de crime e há importantes diferenças entre elas.
Para não ser exaustivo e nem exauriente, bastar-se-ia dizer que um fato atípico nem mesmo exige instauração de inquérito e/ou qualquer outra providência de cunho investigatório ou equivalente. Diversamente, o fato típico necessita de verticalização da investigação para se aferir alguma excludente de ilicitude ou culpabilidade, podendo ser necessária a confirmação até mesmo no âmbito de um processo judicial.
Aqui volte-se à questão prática, mas que defluiu da dogmática penal: fato atípico impõe uma não movimentação da persecução penal. Daí decorre em economicidade de tempo, gastos públicos, etc. Não há o que se investigar. Simples e prático.
Superadas as questões de ordem puramente hermenêutica, é preciso tecer o olhar para as tentativas do STJ de criar critérios para definir quando se considerará furto famélico (neste ponto, a discussão não é mais sobre as consequências do instituto no conceito analítico de crime).
Em especial, tem se notado de alguns julgados que a Corte Cidadã, como dito no preâmbulo, tem exigido para caracterização do furto famélico que o bem deve ser aquele que ostente a qualidade de ser consumido imediatamente. No AREsp 1.838.354/SP (e em diversos outros), chegou-se ao arroubo de se assentar a ideia de que "carne bovina crua, não se prestam para saciar imediatamente a fome".
No particular, para além dessas decisões desnudarem uma falta de legitimidade do Poder Judiciário para estabelecer critérios de definição do instituto (a rigor, este é o papel do Legislativo), fica evidente uma insensibilidade com o que se compreende como alimento que deva "saciar a fome".
Em um País em que há pessoas que literalmente cozinham papelão para conceber o que, na linguagem coloquial, denomina-se "pirão de papelão" ou "sopa de papelão" para fartar a fome (convida-se à leitura da obra 'Agonia da Fome' de Maria do Carmo Freitas1), uma carne bovina (ou qualquer outra) cozida ou crua é de absoluta irrelevância. Supre a fome até aquilo que foi feito, originariamente, para proteção e embalagem de produtos.
É dizer: não deveria o Poder Judiciário, pretensiosamente, desprovido até mesmo de uma empatia com o tema que revela a completa ineficiência estatal (não custaria lembrar que o Estado deveria garantir, minimamente, o direito à alimentação), promover uma espécie de regulamentação do que é capaz ou não de saciar a fome de alguém.
Como se ao famigerado faminto existisse a privilegiada opção de escolher o que vai, naquele momento de ausência de Estado e, agora, inimigo do Poder Judiciário, alimentá-lo (e é preciso discernir - alimentar alguém não necessariamente significa que esta pessoa estará nutrida).
Um equívoco de multifacetária vertente, de cunho dogmático e social.
Há solução? Poderia o Poder Judiciário, em tentativa de contribuição para esta perda de rumo dogmático, ao menos compreender que quem furta para se alimentar e saciar fome não está ofendendo bem jurídico algum; não viola qualquer valor imprescindível ao convício social; é uma conduta que, ao invés de despertar o interesse da persecução penal, deveria impulsionar o Estado à cumprir suas obrigações constitucionais. É insignificante (atípica, portanto). Não é nem mesmo necessário sequer adentra-se à análise do evidente estado de necessidade ou, quem sabe, uma inexigibilidade de conduta diversa.
Ainda uma observação de ordem dogmática: se há a (má) compreensão de que uma conduta como esta é enquadrável como estado de necessidade se está a admitir que o fato é típico e, necessariamente, que a conduta ofende um bem jurídico-se reconhecerá que houve ofensa, mas apenas o agir estará justificado.
Se, ainda, há a (má) compreensão de que a conduta se amolda à excludente de culpabilidade a situação ainda é mais grave: está a se reconhecer que o fato é típico e antijurídico, somente não será culpável. Ou seja, a mensagem ao faminto será: você praticou uma conduta que fere um bem jurídico e seu agir não está justificado. Somente não irei lhe aplicar pena. O Estado está rotulando este indivíduo de delinquente ou delinquente sem o castigo.
Um acinte ao que se busca com um Direito Penal mínimo, fragmentário, subsidiário e, notadamente, democrático.
Estado: Não prenda, alimente quem passa fome.
Como disse ao professor Lênio Streck em breve discussão sobre o tema: "Se carne crua não mata fome, o carpaccio se safou!", ao que ele retrucou: "Estamos avançando. Como rabo de cavalo".
A fome continua, o Estado não alimenta e o Poder Judiciário tem sede de condenar.
_______
1 FREITAS, MCS. Agonia da fome [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; Salvador: EDUFBA, 2003. Pág 117. ISBN 85-8906-004-7. Disponível em https://static.scielo.org/scielobooks/r9y7f/pdf/freitas-9788575412497.pdf
Pablo Domingues Ferreira de Castro
Advogado criminalista, consócio do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Doutor em Direito pelo IDP(DF), Mestre em Direito pela UFBA, especialista pelo IBCCRIM, pós-graduado pela UFBA, professor de cursos de pós-graduação, coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito, professor universitário.


