Retificação de registro civil para inclusão de gênero neutro
Este ensaio tem como objetivo estudar a possibilidade jurídica de retificação de registro civil para inclusão de gênero neutro ou "não binário"nos assentos do Registro Civil de Pessoas Naturais.
terça-feira, 22 de julho de 2025
Atualizado às 15:40
1. Introdução
É possível a inclusão de gênero neutro no registro civil, seja por decisão judicial ou ato de Oficial do Registro Civil de Pessoas Naturais? Este é o desafio proposto para este paper, que analisará o arcabouço histórico, jurisprudencial e constitucional brasileiro para chegar ao seu objetivo.
Preliminarmente, contudo, no intuito de dissipar quaisquer confusões terminológicas, cabe apontar as corretas definições acerca dos conceitos de sexo, orientação sexual e gênero. Quanto ao primeiro, pode-se caracterizar o sexo individual de um ser humano como "características biológicas e anatômicas que a pessoa apresenta, associadas ao feminino ou masculino"1.
Assim, para definir o sexo de um indivíduo após o nascimento, no caso do macho (sexo masculino), deverá o médico - por meio de constatação visual do fenótipo do recém-nascido - verificar se este apresenta um pênis e bolsa escrotal2. Caso ausente essas características, o sexo do recém-nascido será caracterizado como fêmea/mulher (sexo menino)3.
Há, ainda, o caso do intersexo: indivíduos que, portadores de ADS - Anomalias de Diferenciação Sexual, nascem com variação de caracteres sexuais que dificultam sua identificação biológica como totalmente feminina ou totalmente masculina4. Nesses três casos, após a constatação - feita pelo médico - do sexo (masculino, feminino ou intersexo) do recém-nascido, aquele ficará responsável por emitir a Declaração de Nascido Vivo, que dentre outras informações relevantes, indicará o sexo atribuído ao novel cidadão, conforme indicado ao art. 4º da lei 12.662/12.
Por sua vez, o conceito de orientação sexual pode ser caracterizado como a "capacidade de cada pessoa de ter uma profunda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas"5. Trata-se de conceito, a exemplo do sexo (com o reconhecimento dos intersexos), que também está em expansão: conquanto se entendia orientação sexual se limitava a "hétero", "homossexual" ou "bissexual", hoje se fala em dezenas de diferentes orientações sexuais.
Por fim, é importante definir o conceito de gênero que, nos termos do voto da relatora min. Nancy Andrighi nos autos do REsp 2.135.967/SP, configura "profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos".
Cabe lembrar que o gênero binário está associado aos dois gêneros positivados em lei pela sociedade: o masculino e o feminino. Portanto, nota-se que um indivíduo binário pode ser cisgênero ou transgênero. Nesse sentido, conquanto "cisgênero é o termo usado para se referir a uma pessoa cuja identidade de gênero corresponde ao sexo que lhe foi atribuído ao nascer (sexo biológico), transgênero é aquela cuja identidade de gênero difere do sexo biológico"6.
Por fim, há as pessoas não binárias, que são "aquelas que não se identificam exclusivamente com o gênero masculino ou feminino, seja por se verem com características de ambos os gêneros (fluídos), seja por não se identificarem com nenhum dos gêneros (sem gênero)"7, cujo registro no RCPN é o objeto desta exposição.
Como se adianta, conquanto alterações legislativas, administrativas e jurisprudenciais tenham resultado na possibilidade jurídica de pessoas transgêneras requererem a alteração de prenome e gênero de acordo com sua autoidentificação, será visto que esses avanços levaram em consideração a lógica binária de gênero masculino/feminino, não mencionando os indivíduos não binários ou de gênero neutro, o que torna a hipótese analisada complexa do ponto de vista jurídico e socialmente relevante para os indivíduos afetados.
2. Identidade de gênero como Direito da Personalidade
Esclarecidas as relevantes definições, será necessário regressar no tempo para introduzir o arcabouço constitucional do Brasil que motivou o voto de procedência no REsp 2.135.967/SP, permitindo a possibilidade de retificação de registro civil para inclusão de gênero não binário ou neutro.
No Brasil, o grande marco do Estado Social de Direito foi a redemocratização do país8, com a promulgação da Constituição da República de 1988, que coloca a promoção da dignidade da pessoa humana como absoluta prioridade9.
Não por outro motivo, a Constituição Federal possui amplo rol de direitos fundamentais e direitos sociais no intuito de efetivar os objetivos previstos pela Constituição da República, que não deveria apenas garantir a liberdade formal dos cidadãos perante arbitrariedades do Estado10, mas também oferecer garantias constitucionais de que este mediante "ações próprias assegure o efetivo exercício da liberdade"11, entendido o conceito em sua acepção mais ampla, ou seja, ao atendimento de necessidades fundamentais do ser humano para o desenvolvimento pleno e digno de sua experiência de vida.
Cabe apontar que os direitos da personalidade estão previstos aos arts. 11 a 21 do CC, a exemplo do direito ao próprio corpo, direito ao nome, direito à imagem, direito à privacidade. Esse rol, contudo, não é exaustivo, haja vista a ad disposição do art. 12 do CC: "Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei".
Desse modo, nota-se que o art. 12 do CC constitui espécie de "norma em branco" (leia-se: cláusula geral) em defesa dos direitos da personalidade, que podem ser outros além dos textualmente mencionados no CC. Frise-se que tal entendimento alinha-se ao pensamento da doutrina no sentido de que os direitos da personalidade, por se tratarem de um valor, e não um princípio, versam acerca de questões constantemente mutáveis, o que faz surgir novos direitos da personalidade não previstos em lei12.
E dentre os direitos da personalidade que não previstos no rol do CC, mas devem ser reconhecidos pelo ordenamento jurídico brasileiro, estão (i) o direito ao livre desenvolvimento da personalidade13, que a doutrina caracteriza como a "proteção que a pessoa possui para escolher livremente seu projeto vital" e (ii) o direito à autodeterminação de gênero, cuja manifestação principal, na visão deste paper, é a possibilidade de mudança de nome e gênero no Registro Civil de Pessoas Naturais.
Nesse sentido, cabe lembrar que o livre desenvolvimento da personalidade e a autodeterminação de gênero, por estarem relacionados às características existenciais do ser humano, devem ser entendidos como direitos da personalidade, o que torna sua proteção - por meio da tutela jurisdicional - imperiosa à luz da dignidade da pessoa humana, valor central da República Federativa do Brasil (art. 1º da Constituição Federal), ainda que ausente lei especifica para a tutela desse direito14.
Firme nesses ensinamentos, o STJ e o STF, ao serem instados para julgar cases envolvendo direitos da personalidade de transexuais e travestis, a despeito da ausência de previsão legal, estabeleceram importantes decisões judiciais, que abriram caminham para a possibilidade de retificação de registro civil para gênero não binário.
3. As primeiras decisões judiciais: uma mudança de paradigma
O primeiro precedente a mencionado referente ao reconhecimento de direitos dos transexuais é datado de 2009: naquele ano, a 3ª turma do STJ, no julgamento do REsp 1.008.398/SP, deu provimento ao recurso de uma mulher transgênero que, após a cirurgia de transgenitalização, buscava alterar o gênero e o nome registrados em sua certidão de nascimento.
Como acontece em todos os casos mencionados neste paper que deferiram o pedido de retificação de registro de gênero de transexuais e transgêneros, o voto - a despeito de reconhecer a ausência de previsão legal - fundamentou sua decisão principalmente com base na dignidade da pessoa humana:
"Vetar a alteração do prenome do transexual redesignado corresponderia a mantê-lo em uma insustentável posição de angústia, incerteza e conflitos, que inegavelmente atinge a dignidade da pessoa humana assegurada pela Constituição Federal. No caso, a possibilidade de uma vida digna para o recorrente depende da alteração solicitada. E, tendo em vista que o autor vem utilizando o prenome feminino constante da inicial, para se identificar, razoável a sua adoção no assento de nascimento, seguido do sobrenome familiar, conforme dispõe o art. 58 da lei 6.015/1973"15.
Já em 2017, a 4ª turma do STJ, no REsp 1.626.739/RS, decidiu que o registro civil deve retratar a identidade de gênero psicossocial da pessoa transgênera, de quem não se poderia exigir a realização de um procedimento médico para realização de um direito, configurando outro landmark importante.
Outro exemplo marcante é o REsp 1.860.640/SP, julgado em 2020, que discutiu possibilidade de alteração de prenome e o designativo de sexo no registro civil, por parte de transexuais, independentemente da alteração do sexo biológico (ou seja, ausente a realização de cirurgia de redesignação de sexo). Confira-se, nesse sentido, relevante trecho do voto do relator, que textualmente menciona a dignidade do requerente e seu direito à autodeterminação de gênero:
"O direito de escolher seu próprio nome, no caso de aquele que consta no assentamento público se revelar incompatível com a identidade sexual do seu portador, é uma decorrência da autonomia da vontade e do direito de se autodeterminar. Quando o indivíduo é obrigado a utilizar um nome que lhe foi imposto por terceiro, não há o respeito pleno à sua personalidade. Condicionar a alteração do gênero no assentamento civil e, por consequência, a proteção da dignidade do transexual, à realização de uma intervenção cirúrgica é limitar a autonomia da vontade e o direito de o transexual se autodeterminar"
Há, ainda, decisões em matéria penal que serviram como importantes avanços para os direitos de pessoas transexuais, a exemplo da decisão na ADPF 527/DF que reconheceu às pessoas transexuais e travestis o direito de optarem por cumprir pena de acordo com sua identificação de gênero, o que foi seguido pelo STJ (cita-se, a título de exemplo, os seguintes julgados: HC 861817SC e HC 894227/SP)16.
Por fim, aponta-se a ADI 4275, proposta pela PGR para conferir interpretação conforme à Constituição Federal ao art. 58 da lei de registros públicos, julgamento este que assentou o direito fundamental de transgêneros e transexuais em requerer a alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil:
ADI 4275 (Tema 761): i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa; ii) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo 'transgênero'; iii) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial; iv) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.
O julgamento do Tema 761 é um marco de extrema relevância para o alargamento dos direitos dos transgêneros e travestis, pois - ao ser proferido em sede de controle abstrato de constitucionalidade - exige que a Administração Pública, órgãos de controle (CNJ) e os cartórios extrajudiciais cumpram o determinado, evitando a necessidade de judicialização de um direito que não está previsto em lei.
Ainda assim, as realidades sociais são dinâmicas e complexas, e o STF, que não foi provocado para tanto pela PGR, não incluiu pessoas que se identificam com o gênero "neutro" ou "não binário", colocando estas - a depender da situação (leia-se: o estado da Federação) - em um indesejável "limbo jurídico", como será adiante explorado.
1. Iniciativas extrajudiciais
Por outro lado, houve importantes avanços extrajudiciais no sentido de reconhecer os direitos de transexuais, travestis, intersexo e indivíduos que se identificam com o gênero neutro ou "não binário".
De início, deve-se indicar o pioneiro decreto 8.727/16, baixado pelo Governo Federal em 2016, que determina o respeito por órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, do uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais, consoante previsto logo em seu art. 1º.
O art. 4º do Decreto ainda prevê a obrigatoriedade de respeito ao nome social de travestis e transgêneros em documentos oficiais, o que denota a importância desse diploma: trata-se de reconhecimento pelo Estado, independentemente de lei específica ou decisão judicial, do direito da personalidade de autodeterminação de gênero de indivíduos travestis e transexuais.
Sem dúvidas, tratou-se de uma corajosa decisão política. Isso porque, ao prever essa exceção de legalidade, por parte do Poder Público, para atender aos direitos de uma minoria vulnerável, acabou por pavimentar, política e juridicamente, o caminho para que outros órgãos públicos fizessem o mesmo, o que também repercutiu na jurisprudência dos tribunais pátrios. A partir dessas decisões, em que pese ausência de lei, o CNJ editou o provimento 73/18 para orientar o procedimento de alteração do nome e sexo de pessoas transgênero diretamente nos cartórios de registro civil.
Já em 2022, com a alteração do art. 56 da lei de registros públicos para permitir a alteração imotivada de nome, por uma única vez, após o atingimento da maioridade civil, houve a concretização em lei das decisões judiciais que haviam autorizado indivíduos transexuais a alterarem seu nome, o que também se aplica aos indivíduos não binários ou de gênero neutro17.
Inobstante decisão judicial ou lei específica nesse sentido, é importante destacar que algumas Corregedorias Gerais de Justiça autorizam ou já autorizaram que indivíduos autodeclarados não-binários alterem prenome e gênero para "não-binarie" ou "gênero neutro" diretamente nas serventias extrajudiciais, como o provimento 16/22 da CGJ/RS, que previa a possibilidade expressa de inclusão do termo "gênero neutro" ou "não binário" nos assentos de registro civil18.
Em outro exemplo, o (vigente) provimento conjunto do TJ/BA 8/22 CGJ/BA afirma em seu art. 1º que "Toda pessoa maior de 18 (dezoito) anos completos habilitada à prática de todos os atos da vida civil poderá requerer ao Registro Civil das Pessoas Naturais a alteração e a averbação do prenome e do gênero no registro de nascimento, a fim de adequá-los à identidade", com o parágrafo 4º indicando que "A alteração da anotação de gênero referida no caput deste artigo poderá abranger a exclusão da anotação de gênero feminino ou masculino e a inclusão da expressão "não binário", mediante requerimento da parte na ocasião do pedido".
Em seguida, o provimento 149/23, que criou o Código de Normas Nacional do CNJ, consolidou as modificações previstas no provimento 73/18, autorizando maiores e capazes a requererem a alteração e averbação do prenome e gênero, a fim de adequá-los ao decidido na ADI 4275 e na alteração do art. 56 da lei de registros públicos.
Contudo, nem tudo são flores: como recentemente anunciado pela mídia, grupos especializados em defesa de pessoas trans apontam insuficiência material do provimento CNJ 149/23 que, a despeito de reconhecer a possibilidade de alteração e averbação do prenome e gênero, não garante a gratuidade de emolumentos para os que não tenham condições financeiras, o que motivou, por parte da Aliança Nacional LGBTI+, uma ADO - Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão ao STF19.
A despeito dessas iniciativas extrajudiciais revelarem-se importantes para expandirem o reconhecimento dos direitos existenciais dos transgêneros, "tais alterações, até agora, levaram em conta a lógica binária de gênero masculino/feminino"20, sem que se tenha mencionado a possibilidade de gênero neutro na grande maioria dos casos, com notável exceção ao mencionado provimento conjunto do TJBA 8/22 CGJ/BA.
2. REsp 2.135.967/SP
O caso, julgado pela primeira vez no STJ, era uma ação de retificação de registro civil ajuizada por indivíduo identificado pelo "gênero feminino". Segundo afirma o voto da relatora (o caso está em segredo de justiça), "Após não se identificar com o gênero feminino, iniciou tratamento hormonal para o gênero masculino, retirou as mamas e passou a usar nome social do gênero masculino. A despeito disso, não se identifica do gênero masculino, mas do gênero "não-binário"21.
Como visto, caso o feito tivesse sido ajuizado na Bahia ou fosse mudança de gênero binário (i.e: gênero feminino para gênero masculino), não haveria celeuma jurídica, pois essas previsões estão contidas nas disposições individuais das respectivas CGJs ou abarcadas pelo provimento CNJ 149/23 e pela ADI 4275.
Todavia, como o assento de nascimento da requerente está registrado no cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais do estado de São Paulo, que não conta com provimento extrajudicial nesse sentido, a requerente se viu obrigada a judicializar seu pedido de retificação, que foi negado em primeira instância. Interposta a apelação por parte da requerente, a decisão que foi mantida pelo TJ/SP, que entendeu pela ausência de previsão legal e violação à segurança jurídica, segundo consta no voto da relatora do REsp 2.135.967/SP.
É relevante notar, contudo, que o desfecho poderia ter sido diferente: em outro julgamento, a 3ª câmara de Direito Privado do TJ/SP julgou procedente ação de retificação de registro para autorizar a alteração de registro civil de pessoa não binária para inclusão dos termos "não binário, agênero e/ou não especificado no campo "sexo". A despeito desse processo também estar em segredo de justiça, o que impede verificar o teor do acórdão, a notícia do TJ/SP releva que o relator, sem deixar de reconhecer a lacuna no ordenamento quanto ao tema, deferiu o pedido de retificação de registro à luz do princípio da dignidade da pessoa humana22.
Contudo, não foi o que aconteceu no primeiro caso, e o resultado foi a interposição de recurso especial ao STJ (autuado como REsp 2.135.967/SP), distribuído à relatoria da ministra Nancy Andrighi, que proferiu voto pela procedência do pedido, no que foi acompanhada por unanimidade pelos demais integrantes da 3ª turma.
Conquanto o processo tramite em segredo de justiça, o voto condutor foi divulgado, o que permite examinar os fundamentos utilizados para deferir o pedido de retificação de registro civil. Com efeito, o voto inicialmente destacou a evolução do arcabouço normativo e jurisprudencial que reconheceu a autodeterminação de gênero como um direito fundamental da personalidade. Nesse sentido, o voto destacou que, em que pese ausência de autorização legislativa à época, reconheceu-se o direito dos transexuais e transgêneros à alteração de gênero e nome, à luz do princípio da princípio da dignidade da pessoa humana, conforme explorado em algumas das decisões judiciais ora mencionadas.
Ao final, essas conquistas foram definitivamente positivadas no citado provimento CNJ 149/23, que "consolidou as modificações legislativas, autorizando que qualquer pessoa maior e capaz requeira ao ofício de registro civil das pessoas naturais a alteração e averbação do prenome e gênero, a fim de adequá-los à identidade autopercebida".23
Contudo, conforme já se adiantou, essas disposições legislativas e judiciais não englobaram o registro de gênero não binário ou neutro, remanescendo divergência acerca de sua possibilidade jurídica no Direito brasileiro. Como resposta, o voto destacou que não haveria motivo para "distinguir entre transgêneros binários e transgêneros não-binários (...) uma vez em que ambas as experiências há dissonância com o gênero que foi atribuído ao nascimento, devendo prevalecer sua identidade autopercebida, como reflexo da autonomia privada e expressão máxima da dignidade humana".
Nesse contexto, após citar que os arts. 4º da LINDB24 e 140 do CPC permitem que se decida acerca de matéria em que há lacuna legislativa, o voto - novamente pautando-se pelo princípio da dignidade da pessoa humana - destacou o seguinte:
"A falta de fôlego do Direito de acompanhar as mudanças sociais demanda a aplicação de princípios que revitalizam o ordenamento jurídico, especialmente o princípio da dignidade da pessoa humana. Este princípio atua como uma cláusula geral que assegura a proteção completa e unificada do indivíduo na resolução de questões de interesse existencial humano. Nesse viés, o livre desenvolvimento da personalidade visa garantir a cada pessoa a autonomia para conduzir sua vida conforme suas próprias convicções, sem interferência do Estado"25
Em seguida, o voto aproveitou para rebater fundamentos utilizados pelo TJ/SP para negar o pedido de registro, a exemplo de eventuais indagações quanto às regras previdenciárias e recolhimento do condenado a estabelecimento prisional. Nesse sentido, o voto destacou que, além das citadas decisões do STJ e STF, o Brasil é signatário dos Princípios de Yogyakarta, que recomendam que os estados signatários adotem, dentre outras, medidas que "assegurem acesso igual, sem discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero, a seguridade social"26.
Cabe apontar, ainda, que o voto da relatora poderia ter mencionado outros dois fundamentos: o art. 5º, XXXV da CF, que prevê o direito à inafastabilidade da jurisdição estatal e o art. 723, parágrafo único, do CPC, que dispõe que, em processos de jurisdição voluntária, tal como uma ação de retificação de registro civil, "O juiz não é obrigado a observar critério de legalidade estrita, podendo adotar em cada caso a solução que considerar mais conveniente ou oportuna"27.
É importante lembrar que o REsp acima não possui caráter vinculante, mas servirá como precedente persuasivo para as instâncias inferiores que, com a ampla divulgação do resultado do recurso, indubitavelmente enfrentarão um aumento no número de casos judicializados de retificação de registro civil para indivíduos de gênero neutro ou não binário.
Ainda assim, o resultado, justamente por não possuir caráter vinculante, não terá o condão de pacificar a divergência existente nos tribunais, a exemplo dos julgamentos díspares acerca da mesma matéria no TJSP. Para tanto, recomenda-se que o STJ e os tribunais inferiores - em data futura - utilizem-se dos mecanismos previstos na legislação para formação de precedente vinculante, a exemplo do (pouco lembrado) IAC - Incidente de Assunção de Competência28.
3. Finais
Este artigo demonstrou que, por força do princípio da dignidade da pessoa humana - valor central da República Federativa do Brasil - decisões judiciais há muito reconhecem a possibilidade de extensão a transgêneros e transexuais de direitos não previstos textualmente em lei29.
É válido recordar que, conquanto exista a possibilidade de retificação de gênero neutro diretamente no Registro Civil de Pessoas Naturais em alguns estados brasileiros, em outros casos, em que pese a ausência de previsão legal, é possível o reconhecimento judicial do pedido, conforme releva o REsp 2.135.967/SP.
Ainda assim, em razão da ausência de entendimento vinculante do STJ, no intuito de preservar a segurança jurídica e os direitos fundamentais dos indivíduos não binários, espera-se que o Congresso Nacional delibere acerca de lei específica (i.e - Estatuto da Diversidade Sexual) para regular a matéria ou que haja julgamento em sede vinculante no tribunais superiores para englobar o tema aqui tratado.
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Bibliografia
COELHO, Pedreira Ivana. Cessão da posição contratual: estrutura e função. Revista Brasileira de Direito Civil, Volume 5 - Jul. Setembro de 2015, Rio de Janeiro, p. 32.
VIANNA, Cláudio Henrique da Cruz. A Judicialização da Política. Revista do Ministério Público. Rio de Janeiro: MPRJ, n. 27,jan/mar.2008, p. 40.
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Suffragium - Rev. do Trib. Reg. Eleit. Do Ce, Fortaleza, v.5n.8, 2009
PERLINGIERI, Pietro. Direito Civil na Legalidade Constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, Capítulo I: Direito, juízes e política, p .35)
OLIVEIRA, Carlos E. Elias e TARTUCE, Flávio. Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos. 1ª ed. Editora Forense, São Paulo, 2023.
MOREIRA, Rodrigo Pereira. Direito ao livre desenvolvimento da personalidade: âmbito de proteção e reconhecimento como direito fundamental atípico. In: BRANCO, Paulo Gustavo Gonet., BARROS, Janete Ricken de Dignidade da pessoa humana e o princípio da isonomia: implicações recíprocas. Brasília: IDP, 2014. p. 62
CUNHA, Leandro Reinaldo da. A necessidade da fixação da concepção jurídica dos pilares da sexualidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 5, n. 2, p. III-VIII, jul./dez.2024.
CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025
1 Definições dadas pelo PL nº 134/2018, que trata do Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero que, nos termos do art. 1º da mens legis, "busca promover a inclusão de todos, combater e criminalizar a discriminação e a intolerância por orientação sexual ou identidade de gênero, de modo a garantir a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos individuais, coletivos e difusos e das minorias sexuais e de gênero".
2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A necessidade da fixação da concepção jurídica dos pilares da sexualidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 5, n. 2, p. III-VIII, jul./dez.2024.
3 Para maiores reflexões, recomenda-se a consulta da obra: CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025.
4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A necessidade da fixação da concepção jurídica dos pilares da sexualidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 5, n. 2, p. III-VIII, jul./dez.2024.
5 Definições dadas pelo PL nº 134/2018, que trata do Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero.
6 Trecho do voto da relatora no Recurso Especial nº 2.135.967/SP.
7 Trecho do voto da relatora no Recurso Especial nº 2.135.967/SP.
8 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Suffragium - Rev. do Trib. Reg. Eleit. Do Ce, Fortaleza, v.5n.8, 2009
9 "O Estado social de direito representa a tentativa de conjugar legalidade e justiça social. Não é suficiente a garantia de que o Estado se abstenha de comportamentos invasivos da liberdade individual (liberdade frente ao Estado), mas sim é necessário que o Estado, mediante ações próprias assegure o efetivo exercício da liberdade". PERLINGIERI, Pietro. Direito Civil na Legalidade Constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, Capítulo I: Direito, juízes e política)
10 Nesse sentido, a Constituição é repleta de exemplos de garantias constitucionais direcionadas no intuito de impedir possíveis arbitrariedades do Estado. O "desconfiado" constituinte, dentre outros exemplos, previu a proibição de tribunal de exceção (art. 5º, XXXVII, da CF), direito de petição contra ilegalidades (art. art. 5º XXXIV a) e a livre locomoção em território nacional durante tempos de paz (art. 5º, XV da CF).
11 PERLINGIERI, Pietro. Direito Civil na Legalidade Constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, Capítulo I: Direito, juízes e política.
12 Nesse contexto, são válidas a lições de Perlingirei, quando se trata de direitos da personalidade "o juiz não poderá negar tutela a quem peça garantias sobre um aspecto da existência que não tem previsão específica" PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. 3 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. Tradução de Maria Cristina De Cicco. p. 156.
13 Ao discorrer sobre o livre desenvolvimento da personalidade, a doutrina ressalta a necessidade de que a autonomia privada seja respeita também em decisões existenciais do ser humano: "O desenvolvimento da personalidade garante a autonomia para a determinação de uma personalidade livre, sem interferência do Estado ou de particulares. Assim, não engloba apenas aquilo que a pessoa é, mas "toda a potencialidade de vir a ser" MOREIRA, Rodrigo Pereira. Direito ao livre desenvolvimento da personalidade: âmbito de proteção e reconhecimento como direito fundamental atípico. In: BRANCO, Paulo Gustavo Gonet., BARROS, Janete Ricken de Dignidade da pessoa humana e o princípio da isonomia: implicações recíprocas. Brasília: IDP, 2014. p. 62.
14 Nesse sentido, deve recordar as palavras do Ministro Marco Aurélio Mello que recorda que, ao lidar com a proteção de direitos da personalidade "a tutela estatal deve levar em conta a complexidade ínsita à psique humana, presente a pluralidade dos aspectos genésicos conformadores da consciência. É inaceitável, no Estado Democrático de Direito, inviabilizar a alguém a escolha do caminho a ser percorrido, obstando-lhe o protagonismo, pleno e feliz, da própria jornada. Voto do Rel. Min. Marco Aurélio, na ADI nº 4275, j. 1.03.2018.
15 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. REsp nº 1.008.398/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em: 15.10.2009.
16 Menciona-se também a decisão do STJ que aplicou a legislação especial da Lei Maria da Penha a transexual do gênero feminino. https://www.conjur.com.br/2023-jan-29/turma-estendeu-protecao-lei-maria-penha-mulheres-trans/
17 A alteração do art. 56 da Lei de Registros Públicos decorre da promulgação da Lei nº 14.382/2022 que criou o Serviço Eletrônico de Registros Públicos. Para aprofundamento consultar: OLIVEIRA, Carlos E. Elias e TARTUCE, Flávio. Lei do Sistema Eletrônico de Registros Públicos. 1ª ed. Editora Forense, São Paulo, 2023.
18 Esse ato normativo foi revogado pelo Provimento 46/2023 que, sem maiores explicações, retirou a possibilidade de registro "não binário" previsto ao 161, § 4º daquele artigo, para fazer constar tão somente que "A alteração da anotação de gênero referida no caput deste artigo poderá abranger a exclusão da anotação de gênero feminino ou masculino mediante requerimento da parte na ocasião do pedido".
19 O link da notícia está disponível aqui: https://www.conjur.com.br/2025-jun-14/entidade-questiona-falta-de-lei-de-gratuidade-de-retificacao-de-nome-para-pessoas-trans/. Acesso em 16.06.2025.
20 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. REsp nº 2.135.967/SP Rel. Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em: 6.05.2025.
21 Trecho do voto da relatora no Recurso Especial nº 2.135.967/SP.
22 Noticia disponível aqui: "Ressalta-se que a incongruência do sexo registral à identidade do gênero é um fator discriminatório, que reforça preconceitos estruturais da sociedade com aqueles que não se identificam com o sexo registral. É inegável o sofrimento a que está submetida a pessoa que não é reconhecida perante a sociedade de acordo com a sua identidade de gênero" https://www.tjsp.jus.br/Noticias/Noticia?codigoNoticia=99773. Acesso em 1.06.2025.
23 Cumprindo apontar, ainda que não mencionado no voto, mas objeto de comentário anterior neste paper, que com a alteração do art. 56 da Lei de Registros Públicos para permitir a alteração imotivada de nome, por uma única vez, após o atingimento da maioridade civil, houve a concretização em lei das decisões judiciais que haviam autorizado indivíduos transexuais alterarem seu nome.
24 "A respeito da lacuna do ordenamento, Pietro Perlingieri leciona que a busca da norma aplicável ao caso concreto deve ser realizada na totalidade do ordenamento, não apenas no suposto sistema normativo ordinário. O autor identifica, assim, que, especialmente na presença de lacuna, a teoria da interpretação assume, no ordenamento complexo e aberto, a função de identificação da normativa aplicável ao caso concreto com o objetivo de obter a solução mais adequada". COELHO, Pedreira Ivana. Cessão da posição contratual: estrutura e função. Revista Brasileira de Direito Civil, Volume 5 - Jul. Setembro de 2015, Rio de Janeiro, p. 32.
25 Trecho do voto da relatora no Recurso Especial nº 2.135.967/SP.
26 Trecho do voto da relatora no Recurso Especial nº 2.135.967/SP. Cabe apontar, por relevante, que o mencionado art. 4º do Decreto 8727/16 ainda prevê a obrigatoriedade de respeito ao nome social de travestis e transgêneros em documentos oficiais, o que demonstra a concretização de um dos Princípios de Yogyakarta.
27 Esse artigo já foi utilizado em precedentes do STJ para possibilitar a alteração motivada ou imotivada de nome, sendo inclusive utilizado como ratio decidendi citado no REsp Nº 1.860.640/SP, que discutiu possibilidade de alteração de prenome e o designativo de sexo no registro civil, por parte de transexuais, independentemente da alteração do sexo biológico
28 Previsto ao art. 947 do CPC, o IAC é admitido em caso de julgamento de processo ou recurso nos tribunais que envolvam "relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos" (art. 947, caput do CPC). O parágrafo 3º desse artigo afirma que o acordão proferido vinculará todos os juízes e órgãos fracionários.
29 "A Constituição brasileira de 1988 já adota um modelo societário e comunitário, que confere prioridade aos valores da igualdade e da pessoa humana, rompendo com a cultura positiva e privatista vigente entre nós" VIANNA, Cláudio Henrique da Cruz. A Judicialização da Política. Revista do Ministério Público. Rio de Janeiro: MPRJ, n. 27, jan/mar.2008, p. 40.


