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Ainda existem juízes em Berlim - mas e em Washington?

A crise de legitimidade do STF expõe o risco institucional da Justiça ser tratada como inimiga. A democracia enfraquece quando a toga vira alvo político.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Atualizado em 23 de julho de 2025 12:16

Conta-se que, ameaçado de desapropriação por ordem do rei da Prússia, um moleiro se insurgiu: "ainda existem juízes em Berlim". E isso bastou. A lenda virou símbolo de uma civilização que reconhecia, nas cortes, o último refúgio contra o arbítrio. No Brasil de 2025, a frase ressurge - não como esperança, mas como interrogação amarga. Informações recentes revelaram que ministros do STF e seus familiares tiveram vistos suspensos por autoridades estrangeiras. Silêncio quase geral. Naturalização do anormal. Há quem comemore. Outros acham pouco. Alguns fingem que isso não importa. Mas importa - e muito. A suspensão não é só retaliação diplomática: é atestado internacional do colapso interno da autoridade institucional do Judiciário brasileiro.

O STF, antes guardião da Constituição, passou a ser tratado como grupo político, facção, inimigo. O desprestígio não começou fora. É importado de dentro. A corrosão é doméstica. Tornou-se comum atacar ministros como criminosos togados, reduzir o tribunal a "partido judicial", incentivar desobediência e normalizar o STF como obstáculo à liberdade. O nome disso, em sistemas sérios, é contempt of court. No Brasil, é trending topic.

Mas já vimos esse filme - e o final não foi feliz. Durante o AI-5, em 1968, ministros do STF foram cassados, silenciados, ou forçados à aposentadoria. Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva foram varridos do tribunal por ousarem decidir contra os humores da força. A Corte foi mutilada em sua legitimidade, enquanto o Brasil mergulhava na noite autoritária. Intelectuais exilados, professores perseguidos, juízes vigiados. A toga foi confinada - não pela lei, mas pelo medo. E quando o Judiciário silencia diante do arbítrio, a civilização perde o chão.

E por que chegamos aqui, de novo? Porque virou estratégia política e eleitoral deslegitimar o Supremo. Quando decide contra um grupo, é ativista. Quando a favor, é aparelhado. Parte da academia, do Parlamento e da opinião pública passou a desejar não um tribunal constitucional, mas militante - que julgue como queremos, contra quem queremos. Quando não é assim, deve ser punido. Mas o punido é o país. A suspensão dos vistos é só sintoma. O problema é outro: a Justiça virou alvo. A toga, meme. A imparcialidade, desvio. A Constituição, obstáculo.

Há quem cresceu achando que democracia sobrevive sem Judiciário. Que respeitar decisões é fraqueza. Que ministros devem temer youtubers, parlamentares, diplomatas. Essa inversão de valores nos empurra ao abismo. E ainda assim, há quem aplauda. Os que defendem "liberdade" vibram com constrangimento a ministros. Os que querem "Estado mínimo" exigem Judiciário máximo - desde que obediente. É populismo travestido de vigilância democrática. Mais cínico. Mais perigoso.

Ulisses amarrou-se ao mastro para resistir ao canto das sereias. Aqui, ministros são açoitados por resistirem ao canto das massas. E agora, como ironia trágica, nem podem pisar nos EUA. Não por crimes - mas por decidirem contra os interesses daqueles que julgam ser errados. O país assiste. Ou sorri. Como se fosse normal. Mas não é. Nunca foi. O Judiciário não é infalível, mas é indispensável. Ministros não são imunes à crítica, mas precisam ser protegidos da corrosão deliberada. Quem não enxerga isso talvez não mereça juízes - nem em Berlim, nem em lugar algum.

Matheus Costa

Matheus Costa

Sócio do PACHECO|COSTA Advocacia e Tribunais. Especialista em Direito Constitucional e Teoria da Constituição.

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