O STJ e a vedação à usucapião de bens estatais das pessoas jurídicas de Direito Privado
A jurisprudência do STJ tem vedado a usucapião de bens de entes privados da Administração Pública, mesmo sem uso atual, presumindo sua afetação ao interesse público.
quinta-feira, 24 de julho de 2025
Atualizado em 23 de julho de 2025 14:01
A possibilidade de usucapião de bens públicos é tema que desafia a doutrina contemporânea. Marco Aurélio Bezerra de Melo destaca a relevante contribuição de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, que propõem a distinção entre bens materialmente públicos e bens formalmente públicos.1
Segundo essa classificação, apenas os bens materialmente públicos, por estarem afetados ao cumprimento de função social, seriam imprescritíveis, ou seja, não podem ser perdidos nem adquiridos pelo decurso do tempo. Já os bens formalmente públicos, embora pertencentes a pessoas jurídicas de direito público, mas desvinculados de qualquer destinação específica, seriam suscetíveis à usucapião por particulares, com fundamento nos princípios da função social da posse, da proporcionalidade2 e da dignidade da pessoa humana.
Não obstante a coerência da tese, Marco Aurélio Bezerra de Melo ressalta que a Constituição Federal, em seu § 3º do art. 183, e no parágrafo único do art. 191, veda expressamente a usucapião de bens públicos. Essa vedação é reiterada no art. 102 do CC, na súmula 340 do STF, e nas normas infraconstitucionais como o decreto 22.785/1933 e o decreto-lei 9.760/1946.
Para Marco Aurélio, a despeito da ausência de afetação, esses bens permanecem submetidos ao regime jurídico público, sendo possível sua destinação à moradia por meio da concessão especial de uso, prevista na medida provisória 2.220/01, atualmente regulamentada pela lei 11.481/07, que trata da regularização fundiária de imóveis públicos da União destinados à moradia, nas modalidades individual e coletiva.
Ademais, as concessões especiais de uso para fins de moradia foram alçadas à categoria de direito real, nos termos do inciso XI do art. 1.225 do CC, passando a integrar o rol dos atos sujeitos a registro obrigatório no âmbito da lei 6.015/1973 (lei de registros públicos), conforme dispõe o art. 167, inciso I, item 40.
Observa-se, igualmente, que a jurisprudência do STJ tem adotado posição no sentido de ampliar a vedação à usucapião, estendendo-a também aos bens pertencentes a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta, como empresas públicas e sociedades de economia mista.3
Essa orientação tem prevalecido mesmo diante da clareza dos arts. 41 e 98 do CC, os quais estabelecem que apenas os bens pertencentes às pessoas jurídicas de direito público - como União, Estados, Distrito Federal, municípios, Autarquias e Associações Públicas - são considerados bens públicos. Isso porque, apesar da literalidade desses dispositivos, tem-se reconhecido, no plano jurisprudencial e doutrinário, que certos bens pertencentes a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta - como empresas públicas e sociedades de economia mista - também se submetem a regime jurídico de direito público, notadamente quando afetados à finalidade pública.
Conforme assinalado pela ministra relatora Nancy Andrighi, no Resp. 1.874.632-AL4, da 3ª turma, por unanimidade, os bens das sociedades de economia mista, empresas públicas, fundações e entidades prestadoras de serviço público, ainda que ostentem personalidade jurídica de direito privado, quando vinculados ao cumprimento de suas finalidades públicas, são considerados bens públicos (bens públicos por assemelhação).
Nessa mesma linha de intelecção, a ministra desenvolve entendimento ainda mais abrangente ao afirmar que a afetação ao interesse público subsiste mesmo quando os bens se encontram desocupados ou abandonados, não se admitindo o abandono de bens públicos. Nessas hipóteses, considera-se que permanecem afetados, seja pela possibilidade de atenderem futuramente a uma necessidade concreta da Administração (finalidade específica), seja pela eventual inclusão em políticas públicas de maior abrangência, como o planejamento urbano ou a reforma agrária (finalidade genérica).
Ainda segundo Nancy Andrighi, nos casos de colisão entre o direito fundamental à moradia e o princípio da supremacia do interesse público, deverá prevalecer, como regra, este último, em razão da primazia dos interesses coletivos sobre os particulares.
Constata-se, portanto, que a jurisprudência consolidada do STJ tem inviabilizado a usucapião sobre os bens de pessoas jurídicas de direito privado que integram a Administração Pública indireta, mesmo quando abandonados ou desocupados, partindo-se de uma presunção praticamente absoluta de sua afetação ao interesse público.
Por fim, é importante esclarecer que a ausência de registro de propriedade ou de qualquer direito real suscetível de usucapião não gera presunção absoluta (iuris et de iure) em favor do Estado quanto à natureza pública do imóvel, especialmente no tocante às chamadas terras devolutas. Nesses casos, incumbe ao ente público o ônus de comprovar a titularidade e a natureza jurídica do bem.5
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1 MELO, Marco Aurélio Bezerra de Melo. Direito Civil - Coisas, Rio de Janeiro: Forense, 2018, 2ª edição, pág. 118.
Marco Aurélio Bezerra de Melo é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro desde 2008; doutrinador e autor de diversas obras nas áreas de Direito Civil e Urbanístico.
2 MELO, Marco Aurélio Bezerra de Melo. 2018, pág. 118
3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1.874.632/AL, 3ª turma, unanimidade; AREsp. 1.171.235/RJ, 4ª Turma, Dje. 11.05.2021; AgInt. no REsp. 1.700.681/AL, 3ª Turma, Dje. 04.10.2019
4 Superior Tribunal de Justiça. REsp. 1.874.632/AL. 3ª Turma, unanimidade. Rel. Min. Nancy Andrighi.
5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Resp. 964.223/RN; REsp. 647.558/RS; Resp. 113.255/MT.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 86.234/MG; RE 75.459/SP.
Fernanda de Freitas Leitão
Tabeliã do 15º Ofício de Notas do Rio de Janeiro.


