Se o flagrante do show do Coldplay fosse no Brasil, caberia ação judicial?
Uma análise sobre os limites do entretenimento e a proteção ao direito de imagem no ordenamento jurídico brasileiro.
quarta-feira, 23 de julho de 2025
Atualizado às 15:36
A recente viralização de um vídeo, captado pela famosa "kiss cam" durante um show da banda Coldplay nos Estados Unidos, trouxe à tona um debate que transcende o mero entretenimento. A imagem, que flagrou um momento de intimidade entre duas pessoas, supostamente revelando um relacionamento extraconjugal, gerou repercussões drásticas na vida pessoal e profissional dos envolvidos. O episódio, ocorrido em solo estrangeiro, nos convida a uma reflexão hipotética, porém juridicamente relevante: se tal fato ocorresse no Brasil, haveria amparo legal para que os indivíduos expostos buscassem reparação judicial contra os organizadores do evento?
A resposta, sob a ótica do Direito brasileiro, é um sim. A estrutura jurídica do país oferece um robusto arcabouço para a proteção dos direitos da personalidade, que seriam diretamente violados em uma situação como essa. A análise de um eventual processo se fundamentaria em três pilares centrais: o direito de imagem, a responsabilidade civil do fornecedor e a inequívoca configuração do dano moral.
1. Violação ao direito de imagem
O ponto de partida de qualquer demanda judicial seria a violação do direito de imagem, tutelado como direito fundamental pela CF/88 em seu art. 5º, inciso X. O texto constitucional é claro ao afirmar a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.
De forma complementar, o art. 20 do CC estabelece que, salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade.
Argumentos de que o indivíduo estava em um local público não se sustentam com solidez. A jurisprudência pátria é pacífica ao diferenciar a captação de uma imagem panorâmica e genérica de uma multidão daquela que destaca, com foco e de forma individualizada, uma ou mais pessoas, o que no caso se demonstrou ainda mais séria, haja vista o destaque do casal no telão do show, na chamada "câmera do beijo". Ou seja, ao retirar o indivíduo do anonimato da massa para colocá-lo em posição de protagonista de uma narrativa - no caso, a do "beijo no telão" -, exige consentimento expresso, o qual não pode ser presumido pela simples aquisição de um ingresso.
2. Responsabilidade do organizador do evento
A relação entre o espectador e a produtora de um show é, inegavelmente, uma relação de consumo. Dessa forma, aplica-se o CDC, que em seu art. 14 estabelece a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços.
Isso significa que, para a configuração do dever de indenizar, a vítima (o indivíduo exposto) não precisaria comprovar a culpa ou a intenção (dolo) da banda ou da produtora em causar o dano. Bastaria a demonstração da conduta (a exibição não autorizada da imagem), do dano (a violação de sua privacidade e a consequente exposição vexatória) e do nexo de causalidade entre eles.
A "kiss cam", como ferramenta de entretenimento, insere-se naquilo que a doutrina denomina risco da atividade. Ao optar por utilizar tal recurso para animar o público, o organizador assume para si o risco de eventuais danos que essa prática possa gerar aos seus consumidores, devendo por eles responder.
3. Dano moral in re ipsa
Talvez o fundamento mais contundente para o sucesso de uma ação judicial seja a configuração do dano moral. A exposição de uma cena íntima, que revela um aspecto da vida privada dos indivíduos e acarreta uma avalanche de consequências negativas em suas esferas pessoal, social e profissional, ultrapassa, em muito, o mero dissabor cotidiano.
Trata-se de uma ofensa direta à honra e à dignidade, princípios basilares do Estado Democrático de Direito. Em casos de uso indevido de imagem, especialmente quando o resultado é vexatório, os tribunais brasileiros costumam entender que o dano moral é in re ipsa, ou seja, presumido. A prova do dano decorre da própria gravidade do fato (a exposição indevida), sendo desnecessário que a vítima comprove ter sofrido angústia ou abalo psicológico. A violação do direito, por si só, já gera o dever de indenizar.
4. Conclusão
Portanto, se o episódio do show do Coldplay tivesse ocorrido no Brasil, os indivíduos flagrados pela "kiss cam" teriam um caso judicial extremamente sólido. A legislação nacional, ao priorizar a proteção à dignidade e aos direitos da personalidade, oferece pouca margem para que os organizadores do evento se eximissem de sua responsabilidade.
O caso serve como um importante lembrete de que o direito ao entretenimento não é absoluto e encontra limites claros nos direitos fundamentais do indivíduo. Em um mundo hiper conectado, onde uma imagem pode se tornar um viral em segundos, a responsabilidade de quem a capta e a exibe publicamente é, e deve ser, cada vez maior. A justiça brasileira, muito provavelmente, reafirmaria essa premissa.


