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Soberania contemporânea: Perspectiva democrática e judicial

Tradicionalmente, a soberania compreendida como poder supremo e ilimitado de um Estado sobre seu território e população, enfrenta, na era contemporânea, desafios impostos pela interconexão global.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Atualizado às 10:37

A soberania, conceito basilar do Direito Internacional e da Teoria do Estado, tem sido objeto de intensos debates e reinterpretações no contexto da globalização. Tradicionalmente compreendida como o poder supremo e ilimitado de um Estado sobre seu território e população, a soberania enfrenta, na era contemporânea, desafios complexos impostos pela crescente interconexão global.

Nesse cenário, a evolução do conceito de soberania, os impactos multifacetados da globalização sobre ela, e como a jurisprudência e a doutrina brasileira, bem como casos internacionais relevantes, têm abordado essa dinâmica. O objetivo é demonstrar que a globalização não implica o fim da soberania trazem inquietações sobre o alcance da soberania nacional e a reconfiguração de seus contornos. Exigindo dos Estados um equilíbrio delicado entre a autonomia interna e a participação ativa em um cenário internacional cada vez mais interdependente. Além disso, a intrínseca relação entre soberania, democracia e o papel das decisões judiciais na conformação desses conceitos em um cenário de relativização das fronteiras estatais.

O conceito de soberania, em sua acepção clássica, remonta ao Tratado de Vestfália de 1648, que marcou o fim das guerras religiosas na Europa e estabeleceu as bases do sistema moderno de Estados-nação. Nesse contexto, a soberania foi definida como a autoridade suprema e exclusiva de um Estado sobre seu território e assuntos internos, sem interferência externa. Essa visão tradicional concebia a soberania como um poder absoluto e ilimitado, tanto no âmbito interno (supremacia sobre os indivíduos e instituições dentro de suas fronteiras) quanto no externo (independência em relação a outros Estados). Contudo, a evolução histórica e as transformações sociais, políticas e econômicas têm levado a uma reinterpretação desse conceito.

Assim, a soberania, que antes era vista como um poder inquestionável, passou a ser compreendida de forma mais flexível e adaptável. A própria participação dos Estados em acordos e organizações internacionais demonstra uma voluntária limitação de sua autonomia em prol de objetivos comuns, como a paz, a segurança e o desenvolvimento (OLIVEIRA, 2025). Essa flexibilização não significa a abolição da soberania, mas sim sua adaptação a um cenário global mais complexo e interconectado, o qual a cooperação se torna um elemento essencial para a governança global (ALVES, 2023).

Nesse cenário de redefinição da soberania, a democracia emerge como um elemento crucial. No Estado Democrático de Direito, a soberania reside no povo, que a exerce por meio de representantes eleitos, garantindo a legitimidade do poder estatal (CARNEIRO, s.d.). A globalização, ao mesmo tempo em que desafia a soberania, também impulsiona a necessidade de maior transparência e participação democrática nas decisões que afetam a vida dos cidadãos, transcendendo as fronteiras nacionais.

A atuação do Poder Judiciário, nesse contexto, torna-se fundamental para assegurar que a vontade popular, expressa na Constituição, seja respeitada e aplicada, servindo como um guardião dos princípios democráticos e dos direitos fundamentais (DUQUE, 2024).

Dessa forma, a globalização, fenômeno caracterizado pela intensificação das interações e interdependências em escala mundial, tem exercido um impacto profundo na soberania estatal. A partir da década de 1990, observou-se um vertiginoso declínio da soberania em seu sentido tradicional de concentração de poder e monopólio normativo. A celeridade das comunicações, a fluidez dos capitais, a transnacionalização das empresas e a emergência de problemas globais (como mudanças climáticas, pandemias e crimes cibernéticos) exigem respostas coordenadas que transcendem as fronteiras nacionais (ALVES, 2023). 

Essa nova realidade tem levado a uma reconfiguração da soberania, que abandona suas feições de exclusividade em favor de uma formatação mais cooperativa. Os Estados, ao aderirem a tratados e convenções internacionais, voluntariamente limitam sua autonomia em prol de benefícios mútuos e da busca por soluções para desafios que nenhum país pode enfrentar isoladamente (ALVES, 2023; OLIVEIRA, 2025). Contudo, essa flexibilização não é linear. Movimentos recentes de desglobalização, muitas vezes impulsionados por crises econômicas ou políticas internas, indicam um contramovimento de retorno à centralização e exclusividade normativa dos Estados, revelando um caráter híbrido da soberania na era globalizada (ALVES, 2023).

Nesse contexto, a democracia atua como um baluarte, garantindo que a reconfiguração da soberania ocorra de forma a preservar os direitos e garantias fundamentais, e que as decisões tomadas em nível global sejam legitimadas por processos democráticos e constitucionais (UFSM, s.d.).

No Brasil, a relação entre soberania e globalização tem sido amplamente debatida tanto na doutrina jurídica quanto na jurisprudência dos tribunais superiores. O STJ e o STF têm se manifestado sobre o alcance da jurisdição brasileira em um mundo interconectado, especialmente em questões que envolvem o ambiente digital e a remoção de conteúdo online (DUQUE, 2024).

Um exemplo notório é o REsp 2.147.711 do STJ, que discutiu a possibilidade de decisões judiciais brasileiras terem alcance global para a remoção de conteúdo na internet. A ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, defendeu a extensão global da jurisdição brasileira quando há coleta de dados em território nacional, argumentando que a natureza transnacional da internet exige uma interpretação extensiva do marco civil da internet (DUQUE, 2024). 

O STF, por sua vez, em diversas ocasiões, tem reafirmado a soberania nacional e a independência do Poder Judiciário, mesmo diante de pressões externas. Casos envolvendo a suspensão de plataformas digitais, como a plataforma X (antigo Twitter), demonstram a postura do Supremo em garantir que as leis e a CF/88 sejam observadas no território brasileiro, independentemente da origem ou localização das empresas (DUQUE, 2024). A atuação do STF, nesse sentido, reflete a importância das decisões judiciais na proteção da soberania e da ordem democrática, mesmo em face de desafios impostos pela globalização.

A doutrina jurídica brasileira, por sua vez, tem se debruçado sobre a flexibilização do conceito de soberania, reconhecendo que - embora o Estado continue sendo o principal ator no cenário internacional - sua autonomia é mitigada pela crescente interdependência. Há um consenso de que a soberania não é mais absoluta, mas sim um poder que se adapta às novas realidades globais, buscando um equilíbrio entre a proteção dos interesses nacionais e a participação em um sistema jurídico internacional cada vez mais complexo. Essa adaptação é guiada pelos valores democráticos, que buscam assegurar a primazia da dignidade da pessoa humana e a efetividade dos direitos fundamentais em todas as esferas de atuação estatal, inclusive nas relações internacionais.

A globalização tem impulsionado o desenvolvimento do Direito Internacional, que se manifesta por meio de tratados multilaterais e do fortalecimento de instituições globais. Organizações como a ONU - Organização das Nações Unidas, a OMC - Organização Mundial do Comércio e o TPI - Tribunal Penal Internacional desempenham um papel fundamental na regulação das relações entre os Estados e na promoção da cooperação em diversas áreas (OLIVEIRA, 2025). 

Assim, a adesão a tratados e convenções internacionais, embora implique uma voluntária limitação da soberania estatal, é vista como um mecanismo essencial para a resolução de problemas transnacionais.

Questões como a proteção dos direitos humanos, a preservação do meio ambiente e o combate a crimes cibernéticos exigem uma abordagem coordenada e a colaboração entre os Estados (OLIVEIRA, 2025). As decisões judiciais, tanto em nível nacional quanto internacional, desempenham um papel crucial na interpretação e aplicação desses tratados, garantindo que a limitação da soberania seja feita de forma a fortalecer a proteção dos indivíduos e a promoção de valores democráticos em escala global. 

A tensão entre a soberania nacional e a jurisdição de tribunais internacionais é um tema recorrente. O TPI - Tribunal Penal Internacional, por exemplo, atua na persecução de crimes de guerra, genocídio e crimes contra a humanidade, o que, em tese, poderia ser interpretado como uma intervenção na soberania dos Estados. No entanto, a atuação do TPI baseia-se no princípio da complementaridade, ou seja, ele só exerce sua jurisdição quando os sistemas judiciais nacionais são incapazes ou não desejam investigar e processar tais crimes. Isso demonstra que a participação em um sistema legal global pode exigir a renúncia de certas prerrogativas soberanas em nome de valores e interesses maiores da comunidade internacional (LEGALE EDUCACIONAL, 2025b). Essa complementaridade é um reflexo da busca por um equilíbrio entre a soberania estatal e a proteção de direitos fundamentais, com a participação ativa das decisões judiciais.

Outros exemplos incluem a atuação da OMC - Organização Mundial do Comércio na regulação do comércio internacional, as quais as decisões de seus órgãos de solução de controvérsias podem impactar as políticas comerciais nacionais, e os acordos internacionais sobre mudanças climáticas, que impõem metas e obrigações aos Estados, influenciando suas políticas internas de desenvolvimento e uso de recursos naturais. Esses casos ilustram como o Direito Internacional, embora respeite a soberania, atua como um limitador e um facilitador da atuação estatal em um mundo globalizado, com a perspectiva de fortalecer a democracia e a proteção dos direitos humanos, com a devida consideração às decisões judiciais. 

Torna-se evidente que a soberania estatal, embora tenha sofrido transformações significativas em face da globalização, permanece como um pilar fundamental do Estado. A era globalizada não representa o fim da soberania, mas sim sua reconfiguração para um modelo mais dinâmico, cooperativo e interdependente. Os Estados, ao participarem ativamente do cenário internacional, por meio de tratados e organizações, demonstram uma flexibilização voluntária de sua autonomia em prol de objetivos comuns e da resolução de desafios transnacionais.

A jurisprudência e a doutrina brasileira refletem essa realidade, buscando conciliar a proteção da soberania nacional com a necessidade de adaptação às demandas de um mundo interconectado. Casos internacionais, por sua vez, ilustram a complexidade dessa relação quando a atuação de organismos globais e a aplicação do Direito Internacional moldam os contornos da soberania contemporânea.

Nesse passo, a democracia e as decisões judiciais emergem como ferramentas essenciais para guiar essa reconfiguração, assegurando que a soberania seja exercida em conformidade com os direitos fundamentais e os valores democráticos, tanto no âmbito interno quanto no internacional. 

A soberania, na era da globalização, exige um equilíbrio delicado entre a autonomia interna e a participação ativa na comunidade internacional. É por meio dessa negociação constante, pautada pelos princípios democráticos e pela força das decisões judiciais, que os Estados podem enfrentar os desafios do século XXI, garantindo a proteção de seus interesses nacionais ao mesmo tempo em que contribuem para a construção de uma ordem global mais justa, equitativa e respeitadora dos direitos humanos.

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ALVES, Angela Limongi Alvarenga. Globalização, desglobalização e impactos na soberania estatal. VEREDAS - Revista Interdisciplinar de Humanidades, v. 6, n. 11, p. 157, 2023. Disponível em: https://periodicos.unisa.br/index.php/veredas/article/view/384. Acesso em: 21 jul. 2025.

CARNEIRO, Antonio Albertino. O Estado democrático: os conceitos de cidadania e soberania sob o impacto da globalização. [S. l.]: UFPE, [s.d.]. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/4378. Acesso em: 17 jul. 2025.

DUQUE, Felipe. Decisões judiciais brasileiras e seu alcance global. Estratégia Concursos, 16 nov. 2024. Disponível em: https://cj.estrategia.com/portal/alcance global-decisoes-judiciais-brasileiras/. Acesso em: 21 jul. 2025.

PERIODICOS.UFSM.BR. DEMOCRACIA, GLOBALIZAÇÃO E NORMATIVIDADE JURÍDICA: A RELATIVIZAÇÃO DA SOBERANIA E A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. [S. l.], [s.d.]. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/download/32548/pdf/185011. Acesso em: 18 jul. 2025. 

OLIVEIRA, Raul José de Galaad. in SENADO FEDERAL. .O preceito da soberania nas constituições e na jurisprudência brasileira. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/587/r146-11.pdf?sequence=4&isAllowed=y. Acesso em: 21 jul. 2025. 

BORGES, Ana Cláudia. Et all. In. .UNICRUZ. SOBERANIA NO DIREITO INTERNACIONAL. Disponível em: https://home.unicruz.edu.br/mercosul/pagina/anais/2015/1%20- 

%20ARTIGOS/SOBERANIA%20NO%20DIREITO%20INTERNACIONAL.PDF. Acesso em: 19 jul. 2025.

ILNAH TOLEDO AUGUSTO

ILNAH TOLEDO AUGUSTO

Pós doutoranda, Doutora e Mestre em Direito. Advogada atuante Direito Constitucional e trabalhista. Professora e Coordenadora do NPO - Núcleo Preparatório Ordem e docente.

Daniel Cavalcanti Carneiro da Silva

Daniel Cavalcanti Carneiro da Silva

Advogado, contador e professor com expertise em contencioso atuando no desenvolvimento de projetos estratégicos, gestão de carteiras de ativos e assessoria societária.

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