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Como fica o acolhimento migratório em Portugal?

A recente alteração da lei de estrangeiros portuguesa, afeta diretamente os Direitos Humanos e vai de encontro com a própria Constituição Lusitana.

domingo, 27 de julho de 2025

Atualizado em 25 de julho de 2025 11:26

Em 16/7/25, a Assembleia da República aprovou alterações estruturantes à lei de estrangeiros, consolidando uma inflexão legislativa que tensiona os fundamentos constitucionais do Estado de Direito e desafia os compromissos internacionais de Portugal em matéria de direitos humanos.

A nova redação impõe um prazo mínimo de dois anos de residência para o exercício do reagrupamento familiar, mesmo após a regularização documental. Essa exigência não apenas fragiliza o núcleo essencial do direito à família, como também compromete a eficácia dos tratados internacionais ratificados por Portugal, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos e a Convenção sobre os Direitos da Criança. A medida revela uma lógica de contenção institucional que transforma o vínculo familiar em privilégio condicionado, e não em direito garantido.

A imposição de um prazo mínimo de dois anos para o exercício do reagrupamento familiar, configura uma restrição material a um dos direitos mais elementares assegurados pelo ordenamento jurídico português. O direito à família, consagrado no art. 36.º da Constituição da República Portuguesa, é entendido pela doutrina como manifestação direta da dignidade da pessoa humana, princípio estruturante do Estado de Direito e pilar axiológico do sistema constitucional. Tal medida, transforma esse direito em benefício condicionado por critérios temporais rígidos e desprovidos de razoabilidade contextual. A exigência de dois anos ignora a multiplicidade de situações familiares que exigem resposta jurídica imediata, especialmente aquelas envolvendo menores, pessoas dependentes ou relações consolidadas por laços afetivos e sociais relevantes. Ao aplicar indistintamente um critério cronológico absoluto, o Estado falha em reconhecer a urgência moral e constitucional que sustenta a proteção da família como célula essencial da comunidade.

Ademais, essa restrição colide com compromissos internacionais assumidos por Portugal, notadamente com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que assegura o respeito pela vida privada e familiar, e com a Convenção sobre os Direitos da Criança, que impõe aos Estados o dever de garantir a permanência dos menores com suas famílias sempre que possível.

O reagrupamento familiar, nesse contexto, ultrapassa a lógica migratória e assume a condição de instrumento de proteção emocional, psicológica e jurídica, sendo reconhecido por tribunais internacionais como direito que merece tutela prioritária.

Sob a ótica constitucional, a medida suscita sérias dúvidas quanto à sua conformidade com o princípio da proporcionalidade, previsto no art. 18.º da Constituição. Toda restrição a direitos fundamentais deve obedecer aos critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. No caso em análise, não se vislumbra razão suficiente que justifique o sacrifício da convivência familiar como meio legítimo de perseguir objetivos administrativos. A norma generaliza situações desiguais e ignora o impacto da separação familiar na integração do imigrante, na sua saúde emocional e na sua dignidade.

A nova redação representa, portanto, um retrocesso institucional disfarçado sob a retórica da racionalização migratória. Ao condicionar o direito à família à passagem de tempo e ao cumprimento de requisitos burocráticos, o legislador desvirtua a função protetiva da norma constitucional e promove um modelo de contenção social que repudia a tradição jurídica portuguesa de acolhimento e respeito pela alteridade. É imperioso reafirmar que o direito à família não pode ser fragmentado por critérios administrativos arbitrários, mas deve permanecer como uma das expressões máximas do compromisso ético e jurídico do Estado com os direitos humanos.

A vedação ao pedido de autorização de residência em território nacional por cidadãos oriundos de países isentos de visto, como Brasil e Timor-Leste, configura uma ruptura paradigmática com a tradição jurídica e cultural de acolhimento que historicamente caracterizou a política migratória portuguesa. Essa exclusão normativa desconsidera os vínculos linguísticos, históricos e afetivos que unem Portugal aos países da CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, convertendo o espaço jurídico de integração em um campo de restrição formal. Ao impedir que cidadãos desses países regularizem sua situação já em solo português, o legislador institui uma barreira que afeta diretamente comunidades que, por décadas, contribuíram para o tecido social, econômico e cultural do país. A medida ignora o princípio da igualdade consagrado no art. 13.º da Constituição, promovendo uma discriminação indireta que se manifesta não por critérios explícitos de nacionalidade, mas por mecanismos administrativos que dificultam o acesso à residência legal. Além disso, compromete o direito à estabilidade documental e à proteção contra arbitrariedades, pilares do Estado de Direito. A nova redação da lei parece desconsiderar os compromissos internacionais assumidos por Portugal no âmbito da CPLP, fragilizando a credibilidade do país como ator comprometido com a mobilidade humana digna e com a cooperação lusófona. Trata-se de uma inflexão legislativa que, ao invés de promover inclusão e respeito pela alteridade, reforça uma lógica de contenção institucional que transforma o acolhimento em exceção e a integração em obstáculo.

A criação da UNEF - Unidade Nacional de Estrangeiros e Fronteiras, sob jurisdição da polícia de segurança pública, reforça o caráter securitário da política migratória, deslocando o eixo da proteção para o controlo. A concentração de competências como fiscalização, vigilância e execução de ordens de expulsão em um órgão policial exige compatibilização rigorosa com os princípios da legalidade, da proporcionalidade e do devido processo legal. A institucionalização da UNEF, sem salvaguardas claras, pode abrir espaço para práticas administrativas que desafiem os limites constitucionais da atuação estatal.

O processo legislativo que culminou na aprovação do diploma foi marcado pela ausência de pareceres obrigatórios, pela exclusão de associações representativas e pela celeridade procedimental - elementos que comprometem a legitimidade democrática da norma e violam o princípio da participação plural na elaboração legislativa. Trata-se de uma reforma aprovada à revelia do contraditório institucional, num contexto político marcado pela ascensão de forças conservadoras e pela normalização de discursos excludentes.

À luz do princípio da vedação de retrocesso, consagrado pela jurisprudência constitucional portuguesa e pela doutrina internacional de direitos humanos, as alterações recentemente aprovadas à lei de estrangeiros representam uma regressão normativa de caráter estrutural. Ao restringir o acesso ao reagrupamento familiar e à regularização documental, o legislador compromete garantias já consolidadas, violando o dever de proteção progressiva dos direitos fundamentais. O relatório "Entre o Compromisso e a Realidade - Direitos Humanos em Portugal", divulgado pela plataforma de Direitos Humanos, já advertia para o risco de que tais direitos deixassem de ocupar o centro da ação pública e passassem a ser tratados como elementos periféricos ou contingentes. A substituição de políticas inclusivas por mecanismos de contenção revela uma lógica de governança que privilegia o controlo sobre a proteção, a exceção sobre a regra. A regressão não se limita ao plano legislativo: ela reflete uma mudança de paradigma na concepção do papel do Estado perante populações vulnerabilizadas. A Constituição impõe limites materiais à atuação legislativa, especialmente quando esta implica a supressão injustificada de direitos já reconhecidos. A erosão da centralidade dos direitos humanos na formulação de políticas públicas compromete a qualidade democrática e enfraquece o pacto constitucional. O Estado não pode legislar contra os fundamentos que o legitimam. É imperativo que a sociedade civil, a academia e os órgãos de fiscalização constitucional atuem para restaurar o equilíbrio normativo e reafirmar que os direitos humanos não são concessões políticas, mas exigências jurídicas inegociáveis.

O acolhimento migratório, outrora expressão de uma política humanista e integradora, parece agora subordinado a uma lógica de portão eletrônico: seletiva, automatizada e blindada contra a alteridade. Cabe à comunidade jurídica, à sociedade civil e às instituições democráticas resistir a essa deriva normativa, reafirmando que os direitos humanos não são concessões administrativas, mas exigências constitucionais inegociáveis.

Carlos José Britto da Silva

VIP Carlos José Britto da Silva

Carlos Britto é advogado há mais de 10 anos, certificado pelo IBMI e HarvardX. Inscrito na OAB/RJ e OA/PT, atua em Direito Administrativo, Internacional, Migratório e Empresarial.

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