A legitimação das associações civis em ações civis públicas
Um exame dos requisitos legais e do controle jurisdicional sobre sua atuação à luz da evolução legislativa de incentivo à defesa de direitos transindividuais.
terça-feira, 29 de julho de 2025
Atualizado às 10:24
1. Introdução
A partir da edição das leis 7.347 de 1985 e 8.078 de 1990, o ordenamento jurídico brasileiro passou a contar com normas específicas para a tutela de direitos coletivos e para a tutela coletiva de direitos individuais.
Inaugurou-se, assim, no final do século passado, o microssistema brasileiro de demandas coletivas, prevendo-se, dentre outras questões procedimentais e materiais, a legitimação para agir, definida em rol taxativo, que optou por conferir a entidades particulares a possibilidade de defesa de interesses transindividuais, à igualdade de condições a órgãos públicos de clássica atuação na hipótese, como a Defensoria Pública e o Ministério Público.
Nesse sentido, o presente estudo, observando a evolução legislativa da temática e com base em precedentes judiciais dos tribunais superiores e na doutrina especializada, analisa os requisitos para propositura de ação civil pública por associação (os quais, adianta-se, não decorrem apenas do texto legal, tendo havido inclusão de exigência processual pela jurisprudência).
Para tanto, utilizou-se como pontos de partida os arts. 5º, XXI, da Constituição Federal, 82, IV, do CDC, e 5º, V, da lei 7.347/1985, promover o exame dos contornos da atuação de associações para a finalidade a que se propôs o microssistema: a maximização da tutela jurisdicional à luz dos mais salutares princípios jurídicos.
2. Histórico
Às vésperas da redemocratização brasileira, num contexto de apelo popular por ampliação de direitos civis, foi incorporado à legislação ato normativo de conteúdo revolucionário, a lei 7.347 de 1985, batizada de LACP - lei de ação civil pública. O instrumento previa nova espécie de demanda judicial, assertivamente voltada à tutela de bens jurídicos de titularidade coletiva, e possivelmente indeterminada, como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a defesa do consumidor.
O modelo brasileiro de demandas coletivas teve inspiração nas class actions estadunidenses, que consagram seu ideal nacional de representatividade democrática1. Nos Estados Unidos, as class actions são cabíveis em casos de relevante quantidade de titulares do direito material alegadamente violado, cuja reunião se apresenta como alternativa eficaz à possibilidade de sobrecarga do Poder Judiciário com numerosas demandas individuais idênticas.
Como apontou Teori Albino Zavascki2, a gênese da ação civil pública decorreu da percepção do legislador do contexto de "quase absoluta inaptidão dos novos métodos processuais tradicionais para fazer frente aos novos conflitos e às novas configurações dos velhos conflitos". Em sua obra, considerou como "novos conflitos" os litígios que ultrapassavam o campo de interesse individual, alcançando maior aspecto, nomeada pelo autor de "dimensão de transindividualidade".
Nesse sentido, a promulgação da LACP foi tratada como evolução da ciência jurídica brasileira em atendimento às novas expectativas da sociedade, sendo-lhe proporcionada a defesa de interesses que extrapolam a titularidade de uma única pessoa. Propriamente, atinge a dimensão plural de um grupo, categoria de classe, ou mesmo de um conjunto indeterminado e incalculável de titulares, como ocorre nos danos ambientais.
Nas palavras de Kazuo Watanabe3, o projeto de lei tinha finalidade certa e bem definida, qual seja: "tratar molecularmente os conflitos de interesses coletivos, em contraposição à técnica tradicional de solução atomizada", de modo a conceber maior lastro político às ações coletivas, salvaguardando os jurisdicionados de decisões conflitantes entre si, e, ainda, aliviando o volumoso cenário de processos pendentes de julgamento pelos tribunais, "atulhado de demandas fragmentárias".
Em 1988, houve a recepção constitucional do instrumento, tendo a nova Constituição disposto sobre a legitimação dos entes definidos em lei para propositura de ação civil pública, ao lado do Ministério Público, legitimado tradicional (art. 129, III e § único). Quanto ao direito material tutelado pela LACP, decorrem dos "princípios gerais da atividade econômica" (Título VII, Capítulo I), em especial na defesa do meio ambiente e dos consumidores (arts. 5º, XXXII, 170, V e VI, e 225), e nas disposições acerca dos bens de caráter histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico (arts. 23, III, e 216), além das previsões sobre as políticas raciais e étnicas (arts. 4º, VIII, e 215, § 3º, V).
Logo, a modalidade de tutela coletiva inaugurada pela LACP passou a encontrar validação nos dispositivos constitucionais e corolários processuais tradicionais, sendo ferramenta capaz de proporcionar solução amplificada aos litígios, à luz dos princípios de isonomia, segurança jurídica, acesso à justiça, eficiência e economia processual.
Por conseguinte, em razão da edição da lei que instituiu o CDC, lei 8.078 de 1990, a legislação passou a apresentar providências específicas à proteção dos interesses consumeristas, classe historicamente vilipendiada pela atuação de grandes empresas nas relações comerciais, dada sua vulnerabilidade decorrente do desequilíbrio político, econômico e técnico entre as partes.
A respeito da inteligibilidade do CDC, dispôs o ministro Luis Felipe Salomão em julgamento de recurso especial que:
"As ações civis públicas, nos termos do art. 6º, VIII, do CDC, ao tutelarem direitos individuais homogêneos dos consumidores, viabilizam a otimização da prestação jurisdicional, abrangendo toda uma coletividade atingida em seus direitos, dada a eficácia vinculante de suas sentenças"4.
Assim, reconhecendo a relevância de conferir "soluções pluralistas" aos interesses transindividuais e pautado no ideal democrático que se concebia à época, o legislador da segunda metade da década de 1980 deu gênese ao microssistema de processos coletivos pautado na legitimação concorrente e mista para o ajuizamento da ação civil pública, conforme previsto no art. 82, CDC. Num só golpe, reforçou a atuação de agentes tradicionais, como o Ministério Público, e incentivou com louvor a participação da sociedade civil, respondendo "ao anseio do mais amplo acesso à justiça e ao princípio da universalidade da jurisdição"5.
Em caráter constitucional, os direitos e garantias fundamentais elencados no art. 5º servem de verdadeiro estímulo à auto-organização da sociedade civil por meio de criação de associações civis, uma vez que dotadas de "plena liberdade" (inciso XVII) inclusive perante o Poder Público ("vedada a interferência estatal em seu funcionamento" - inciso XVIII), e protegidas de qualquer ato de dissolução ou suspensão, ressalvada a hipótese de decisão judicial nesse sentido (inciso XIX).
Por fim, o célebre artigo ainda trata da legitimidade da associação civil para representação de seus filiados extra e judicialmente (XXI), trazendo importante ressalva quanto à autorização expressa dos associados para tanto, condição que deu causa a intensos debates jurisprudenciais e doutrinários acerca da natureza jurídica de sua legitimação, e o que veio a ser solucionado na lei que instituiu o CDC.
Na esfera consumerista, o CDC não poupou esforços para incentivar o associativismo, impondo ao Poder Público ações governamentais que incentivem a criação e o desenvolvimento de "associações representativas" (art. 4º, II, b), e definindo como um dos instrumentos para execução da Política Nacional das Relações de Consumo, a "concessão de estímulos à criação e desenvolvimento das Associações de Defesa do Consumidor" (art. 5º, V).
Em previsão concreta para a defesa propriamente dita de direitos transindividuais, a LACP previu no rol de legitimados para propositura da ação civil pública, principal e cautelar, a associação que, concomitantemente, esteja constituída há pelo menos um ano, e inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. 5º, V).
Reforçando o espírito do legislador de 1985, seguiu-se a previsão no diploma consumerista (art. 82) cinco anos depois, com redação em termos quase idênticos, mas, naturalmente, voltados à "defesa dos interesses e direitos protegidos por este código".
Em complementação, trouxe ao final do dispositivo aspecto fundamental para atuação do ente legitimado, consistente na dispensa de autorização assemblear. Ou seja, garantiu às associações a atuação nos tribunais independentemente de aval expresso de seus filiados ou dos titulares do direito tutelado, fato que detém especial relevância para se analisar a forma de sua legitimação, em paralelo à exigência de autorização assemblear prevista na Constituição.
Assim, a legitimação das associações ostenta guarida constitucional e expressa autorização legal, decorrendo de claro estímulo à auto-organização de cidadãos em prol da guarda de seus interesses
Na seara eminentemente processual, e já no século XXI, incluiu-se no art. 333 do anteprojeto do CPC de 2015 interessante previsão de viabilidade da conversão de ação individual em coletiva, desde que "atendidos os pressupostos da relevância social e da dificuldade de formação do litisconsórcio", dentre outros pressupostos expressamente elencados na redação do projeto de lei.
A despeito da regulamentação da conversão em dez parágrafos do dispositivo, houve veto da Presidência da República, e, infortunadamente, o CPC de 2015 - pautado nos ideais de um processo civil baseado em uniformização da jurisprudência e de resolução de demandas repetitivas - não pode contar com mais um instituto alinhado a seus objetivos.
Concretamente, em que pese haver instrumentos diversos para a satisfação de interesses da coletividade, a exemplo do mandado de segurança coletivo e, em certa medida, da ação popular, coube à ação civil pública o posto de principal ferramenta, sendo essa espécie de ação a que, nas últimas décadas, vem sendo utilizada com mais vigor.
A predileção pela ACP não decorre do acaso, mas justamente do caráter plúrimo e misto da legitimação ad causam. Ministério Público, Defensoria Pública, União, Estados, municípios, Distrito Federal, autarquias, fundações e empresas públicas, sociedades de economia mista, e, no contexto exclusivamente particular, associações civis "legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear" (art. 82, IV, CDC) detêm legitimidade.
Assim, questão que se apresenta com relevante discussão consiste na análise dos requisitos para legitimação das associações para propositura de ACP.
3. Os requisitos para a legitimação das associações
O microssistema elenca dois pressupostos objetivos para a legitimação das associações: a pré-constituição de um ano de existência e a pertinência temática de suas finalidades estatutárias com o objeto da ação judicial, consoante os assuntos previstos no rol do art. 5º, V, "b" da lei da ação civil pública: a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico
A despeito da inteligibilidade da regra geral, a própria legislação traz hipótese de ressalva ao primeiro requisito, ao passo que a jurisprudência construiu entendimento no sentido da necessidade de preenchimento de um terceiro pressuposto, definido como a representatividade adequada da entidade particular.
3.1 A pré-constituição ânua
Quanto ao aspecto temporal (art. 5º, V, a, LACP c/c art. 82, IV, CDC), deve a associação estar em atividade há pelo menos um ano na data de distribuição da demanda, o que é visto por Luiz Manoel Gomes Junior como preocupação do legislador com possível oportunismo, tendo "como objetivo evitar a criação de associações ad hoc, apenas com a finalidade de ajuizar determinada ação coletiva, desvirtuando o sistema"6.
Isso porque, ao tomar ciência de conduta lesiva a direitos transindividuais, certo grupo poderia fundar uma entidade voltada à tutela específica daquele interesse violado, ajuizando ação tão logo formalizada a gênese junto ao registro civil de pessoas jurídicas. Logo, condicionando a legitimidade à pré-constituição de um ano, criou-se válido óbice à promoção instantânea de interesses meramente oportunistas, que presumidamente seriam eivados de defesa técnica frágil e representatividade inadequada, isto é, "cujos objetivos não se coadunem com o interesse difuso em causa"7.
Entretanto, no que tange aos interesses individuais homogêneos, a lei excepciona o requisito temporal "quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido" (art. 82, § 1º, CDC). No espírito da legislação, a jurisprudência do STJ, há mais de vinte anos8, ratifica o comando legal, havendo diversos julgados que reproduzem a redação do § 1º em sua integralidade, a exemplo de acórdão de relatoria do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva:
"(...) muito embora o art. 5º, inciso V, "a" da lei 7.347/1985 disponha que a associação deverá estar constituída há pelo menos 1 (um) ano, nos termos da lei civil, o requisito formal pode ser dispensado quando presente, como na hipótese, interesse social de um grupo indeterminável de interessados, como prevê o parágrafo 4º do referido dispositivo legal, bem como o art. 82, § 1º, do CDC"9.
Na esteira dessa posição, a jurisprudência afastou a arguição de ilegitimidade de associação ao considerar que também se autoriza a atuação em caso de aniversário de um ano de fundação "durante o curso do processo":
"(...) Nos termos da legislação consumerista, a associação legalmente constituída há pelo menos um ano tem legitimidade para promover a defesa coletiva dos interesses do consumidor. Em observância aos princípios da economia processual e efetividade da jurisdição, deve ser reconhecida a legitimidade ativa da associação que complete um ano de constituição durante o curso do processo. Recurso especial não conhecido"10.
Logo, ainda que se denote uma objetividade no requisito, mostrou-se viável a flexibilização do dispositivo, o que deve ser justificado à luz de fundamentos consagrados no ordenamento jurídico, como o direito básico do consumidor de facilitação ao acesso à justiça e o princípio da economia processual.
3.2 A pertinência temática das finalidades estatutárias ao objeto do processo coletivo
Quanto ao segundo requisito (art. 5º, V, b, LACP c/c art. 82, IV, CDC), chamado usualmente de "pertinência temática", a doutrina especializada discorre que a "atuação deve guardar relação com seus fins institucionais"11.
Um estudo da jurisprudência aplicável faz concluir pela maior exigência de seu fiel cumprimento, com imprescindível necessidade de aferir a consonância das finalidades associativas com o objeto sub judice. Em sentido contrário, soa como alerta a constatação de que seu estatuto social abrange a integralidade, ou quase, das hipóteses previstas nos incisos do art. 1º da LACP.
Tal rigidez jurisprudencial visa justamente à salvaguarda contra associações com estatuto "demasiadamente genérico", cuja finalidades institucionais são tão amplas quanto o escopo de trabalho do Ministério Público, por exemplo.
Trata-se das associações "de fachada", com objetivos em desacordo com o real interesse dos titulares do direito lesado - visando primordialmente a arrecadação pecuniária -, e oportunistas da legislação que, até certo ponto, lhe isenta de sanções no bojo do processo civil. O entendimento quanto ao combate à generalidade do estatuto social das associações é corrente pacificada no STJ, responsável pela interpretação da legislação federal, in verbis:
"(...) o outro fundamento autônomo adotado pela Corte de origem para não reconhecer a legitimação ad causam da demandante, anotando que o estatuto da associação, ora recorrente, é desmesuradamente genérico, possuindo "referência genérica a tudo: meio ambiente, consumidor, patrimônio histórico, e é uma repetição do teor do art. 5º, inciso II, da lei 7.347/1985" tem respaldo em precedente do STJ, assentando que as associações civis necessitam ter finalidades institucionais compatíveis com a defesa do interesse transindividual que pretendam tutelar em juízo. Embora essa finalidade possa ser razoavelmente genérica, 'não pode ser, entretanto, desarrazoada, sob pena de admitirmos a criação de uma associação civil para a defesa de qualquer interesse, o que desnaturaria a exigência de representatividade adequada do grupo lesado'. (AgRg no REsp 901.936/RJ, rel. ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/10/2008, DJ 16/3/2009)"12.
Nas considerações da Corte de origem no julgado colacionado, ratificadas pelo ministro relator em seu voto, consta que a jurisprudência tem o dever de coibir a atuação de "associações de gaveta", que não advenham organicamente da sociedade civil, mas devam sua criação a propósito de litigância descomedida e desmuniciada de motivação digna.
Concordando com o entendimento, assim propõe Hermes Zaneti Júnior:
"Não é necessário ter uma finalidade específica, bastando que tenha um nexo compatível entre os fins institucionais e o objeto da ACP. Embora não seja necessário prever uma finalidade específica no estatuto da associação, também ela não pode ser muito genérica a ponto de abarcar qualquer tipo de defesa. O que este requisito quer impor é que a associação seja atuante e conhecedora do tema que visa tutelar"13.
Em suma, como se vê em obras acadêmicas e decisões judiciais, a condição ideal para o desempenho das funções de uma associação repousa no equilíbrio de suas finalidades institucionais e a conveniência com o objeto do processo coletivo no qual se propõe a atuar em defesa de interesses coletivos.
3.3. O controle jurisdicional: a necessidade de representatividade adequada
Considerado o risco de atuação processual desacertada de associações, seja por ações movidas sob má-fé, seja por mera atecnicidade de defesa, adveio a necessidade de impor controle à atuação das entidades que não figurassem como representantes adequados da coletividade titular do interesse material em questão. O perigo de processos coletivos carentes de defesa proba e qualificada ameaçava não apenas a classe concretamente lesada, mas o aparelho jurisdicional como um todo, desnaturando a verdadeira finalidade da tutela transindividual constante do ordenamento.
Inobstante a inspiração no modelo norte-americano, o requisito da representação adequada não foi reproduzido na legislação brasileira, apesar de ter sido posteriormente adotado pelo STJ em julgamento repetitivo, com observância mandatória pelas demais cortes consoante comando do CPC (art. 927, III).
Muito embora não esteja previsto expressamente no ordenamento, o requisito encontra guarida no princípio constitucional do devido processo legal, ainda que deva ser examinado com cautela, como aduz Aluisio Mendes:
"O processo coletivo ensejará a possibilidade de direitos e interesses individuais serem defendidos em juízo por outros titulares, sem que poderes específicos para tanto tenham sido, a priori, conferidos, voluntariamente. (...) A possibilidade de representação conferida pela lei só se justifica e se valida na medida em que for exercida devida e adequadamente. Conseqüentemente, estabeleceu o Estado, enquanto legislador, para os órgãos judiciais, o dever de fiscalizar e zelar, a todo momento, pela observância da denominada representação adequada (adequacy of representation)"14.
Ou seja, buscou-se na fonte maior do microssistema - o direito norte-americano - sua solução, materializada em exigência denominada de adequacy of representation ("representação adequada"), "que diz respeito à seriedade, capacidade técnica e até econômica do legitimado à ação coletiva"15, nas palavras de Grinover.
Parte da doutrina ainda alerta para o perigo de efeito reverso da inadequada representação, o que fundamenta a exigência do pressuposto no ordenamento brasileiro:
A adoção desse instituto, em nosso sistema processual coletivo, evitaria, por certo, que demandas coletivas fossem ajuizadas por quem não tem condições de bem conduzi-las, fazendo com que, pela deficiência na fundamentação e mesmo na produção de provas, venham a ser proferidas decisões que prejudiquem os titulares dos direitos em jogo16.
Nada obstante, o principal requisito para legitimação de entidades privadas do ordenamento estadunidense não foi importado ao nosso texto positivado, em que pese o fato de lá tampouco haver lei escrita descrevendo (ou mesmo exemplificando) a representação adequada.
Por consequência, embora a Rule 23 das Federal Rules of Civil Procedure, diploma normativo federal que regulamenta as class actions nos Estados Unidos, imponha o cumprimento do requisito ao dispor sobre "adequately protect" e "representation fair and adequate", não conceitua "adequacy of representation". Coube à jurisprudência definir.
Dada a característica singular da Common Law, em que o direito se molda à medida de precedentes judiciais, a construção de conceitos jurídicos e suas aplicações - a exemplo da representação adequada como pressuposto para legitimação nas class actions - é analisada pelo juízo da causa in concreto, no bojo do processo, diante das particularidades dos fatos e à luz de casos pretéritos semelhantes. Trata-se do sistema ope judicis de aferição, marcado por considerável grau de subjetividade do magistrado, que difere do que ocorre no modelo da Civil Law, rigoroso às previsões legais escritas e claras (sistema ope legis), do qual faz parte o Brasil, em que os dois critérios são taxativamente previstos, e seu exame, portanto, mais objetivo.
Quanto ao exame de legitimação vigente nos Estados Unidos, Aluisio Mendes, analisando a legislação estrangeira e precedentes que aplicam a Rule 23, assim elucidou sobre a exigência da representação adequada:
"Na apreciação do requisito, os tribunais costumam aferir vários fatores. Mais do que a quantidade de litigantes presentes, para a certificação, importa a qualidade da defesa dos interesses da classe. Em relação às partes representativas, são considerados o comprometimento com a causa, a motivação e o vigor na condução do feito, o interesse em jogo, as disponibilidades de tempo e a capacidade financeira, o conhecimento do litígio, honestidade, qualidade de caráter, credibilidade e, com especial relevo, a ausência de conflito de interesse"16.
No Brasil, em âmbito legislativo, vale lembrar que o anteprojeto da LACP chegou a arrolar esse terceiro requisito ao lado da pré-constituição e da pertinência de tema, pelo que caberia ao juízo competente examinar a representatividade adequada a partir de critérios expressamente dispostos na lei, proposta que restou rechaçada ao final do processo legislativo.
Ou seja, sendo aconselhável a previsão legal para a tradição de Civil Law, ao passo que inadiável o maior controle sobre a legitimidade das associações na experiência que se testemunhava, coube à jurisprudência se basear em princípios e normas jurídicas clássicas para exigir a representatividade adequada nas ações civis públicas.
Como relatou o ministro Luis Felipe Salomão em célebre precedente, o art. 139, III, do CPC estabelece como poder-dever do magistrado "prevenir ou reprimir qualquer ato contrário à dignidade de justiça", o que justifica o exame da representatividade adequada pelos juízes:
"(...) contanto que não seja exercido de modo a ferir a necessária imparcialidade inerente à magistratura, e sem que decorra de análise eminentemente subjetiva do juiz, ou mesmo de óbice meramente procedimental, é plenamente possível que, excepcionalmente, de modo devidamente fundamentado, o magistrado exerça, mesmo que de ofício, o controle de idoneidade (adequação da representatividade) para aferir/afastar a legitimação ad causam de associação"18.
Dessa maneira, seguindo entendimento manifestado na academia e nos tribunais, não se pode afastar a conclusão de que a exigência de representação adequada, a despeito da ausência de previsão legal expressa, atende ao anseio de busca à efetiva tutela jurisdicional e ao acesso à justiça.
Por consequência, se vislumbra com apreço a adição feita pela jurisprudência ao longo do tempo, o que se apresentou como efetivo remédio ao grande perigo da legitimação de associações civis: a atuação desenfreada, oportunista e que não se coaduna com os verdadeiros objetivos do microssistema de processos coletivos.
4. Conclusão
De modo geral, a experiência observada no cotidiano forense demonstra que a inclusão das associações civis no rol de legitimados para propositura de ação coletiva, em especial da ação civil pública, foi bem sucedida no atendimento à vontade legislativa de proporcionar instrumentos de ampliação da tutela jurisdicional, e, ao mesmo tempo, aliviar a sobrecarga do Poder Judiciário.
Assim, do estímulo do constituinte à auto-organização da sociedade civil, reiteradamente disposto na Carta Política de 1988, e de um regramento específico que lhes colocava à igualdade de condições em relação aos órgãos governamentais, puderam as associações exercer a tutela de direitos transindividuais.
Por outro lado, atentos aos possíveis perigos da autonomia do interesse privado em processos coletivos, a legislação e, em maior medida, a jurisprudência foram categóricas nas formas de coibição a condutas inidôneas e atécnicas, exigindo certas premissas, em forma de requisitos processuais, a serem observadas pelos particulares.
Dessa forma, considera-se que o controle jurisdicional vem sendo eficaz no combate a oportunismos de associações mascarados de nobre tutela de direitos alheios, garantindo às mais diversas espécies de coletividades a inidoneidade da lide sub judice, o que inequivocamente se apresenta como indispensável ferramenta para a busca por uma sociedade justa.
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1 BUENO, Cassio Scarpinella. As class actions norte-americanas e as ações coletivas brasileiras: Pontos para uma reflexão conjunta. Revista de Processo, v. 82. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr./jun. 1996. p. 92-151.
2 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 31.
3 WATANABE, Kazuo. Demandas coletivas e os problemas emergentes da práxis forense. [S.l.]: Revista de Processo, v. 67, ano 17, jul./set. 1992.
4 REsp nº 978.706/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJ: 05/10/2012.
5 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE Kazuo; e NERY JÚNIOR, Nelson. Código brasileiro de defesa do consumidor, 10. ed. rev. atual. e ref. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 745.
6 GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de Direito Processual Civil Coletivo. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 60.
7 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 140.
8 STJ, REsp 140.097/SP, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, DJ: 11/09/2000.
9 STJ, REsp 1.479.616/GO, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJ: 16/04/2015.
10 STJ, REsp 705.469/MS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJ: 1º/08/2005.
11 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 162.
12 STJ, REsp 1.213.614/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJ: 26/10/2015.
13 ZANETI JÚNIOR, Hermes et al. Ação Civil Pública: Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional. 1. ed. São Paulo: JusPodivm, 2021, p. 213/4.
14 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional: uma tentativa de sistematização e análise crítica. 2001. 388 f. Tese (Doutorado em Direito Processual Civil) - Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2001, p. 76-77.
15 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE Kazuo; e NERY JÚNIOR, Nelson. Código brasileiro de defesa do consumidor. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 746.
16 VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sobre a repercussão geral e os recursos repetitivos, e seus reflexos nos processos coletivos. [S.l.]: Revista dos Tribunais, ano 98, v. 882, abr. 2009, p. 43.
17 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional: uma tentativa de sistematização e análise crítica. 2001. 388 f. Tese (Doutorado em Direito Processual Civil) - Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2001, p. 78.
18 STJ, REsp 1.213.614/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJ: 26/10/2015.
Referências bibliográficas
BUENO, Cassio Scarpinella. As class actions norte-americanas e as ações coletivas brasileiras: Pontos para uma reflexão conjunta. Revista de Processo, v. 82. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr./jun. 1996.
GOMES JUNIOR, Luiz Manoel. Curso de Direito Processual Civil Coletivo. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE Kazuo; e NERY JÚNIOR, Nelson. Código brasileiro de defesa do consumidor, 10. ed. rev. atual. e ref. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional: uma tentativa de sistematização e análise crítica. 2001. 388 f. Tese (Doutorado em Direito Processual Civil) - Faculdade de Direito, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2001.
VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa; WAMBIER, Luiz Rodrigues. Sobre a repercussão geral e os recursos repetitivos, e seus reflexos nos processos coletivos. [S.l.]: Revista dos Tribunais, ano 98, v. 882, abr. 2009.
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ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
João Mello
Advogado do escritório Leonardo Amarante Advogados Associados.



