A revolução da efetividade na prestação jurisdicional
A Justiça brasileira exige uma revolução de efetividade. O texto aponta causas da morosidade e propõe soluções práticas para enfrentar o congestionamento crônico do Judiciário.
segunda-feira, 28 de julho de 2025
Atualizado às 08:56
Apaixone-se pelo problema, não pela solução. - Uri Levine
1. Introdução
A busca por maior efetividade é uma prioridade inadiável no contexto do Poder Judiciário brasileiro. Dada sua relevância, o tema deveria constituir um verdadeiro mantra a nortear todas as ações de planejamento organizacional, permeando desde a gestão administrativa até a atividade jurisdicional em sentido estrito.
A morosidade - consequência imediata da síndrome de inefetividade que paira sobre a máquina pública - constitui uma das maiores críticas à Justiça pátria. É certo que a salutar observância do devido processo legal - com suas formas, prazos, coletas de prova, oportunidades de contraditório e demais ritos -, aliada à legítima expectativa de soluções justas, contribui significativamente para a dilatação do tempo processual, resultando na lentidão que caracteriza sistemas judiciais democráticos ao redor do mundo.
O Brasil, contudo, possui singularidades que merecem uma análise mais detida. Ao contrário de outros lugares, aqui a solução de conflitos pela via do Poder Judiciário tornou-se regra quando deveria constituir exceção. As causas para o fenômeno são complexas e multifacetadas, perpassando, entre uma ampla gama de fatores, a absoluta conflagração do mercado da advocacia, a permissividade da justiça gratuita e a apatia das agências reguladoras.
Com efeito, temos uma das mais altas taxas de litigiosidade do planeta: para uma população de cerca de 212 milhões de habitantes, contamos com um acervo de processos de 83 milhões. Isso resulta em índices de congestionamento significativos - mais de 70% em primeiro grau -, além de dispêndios relevantes. Segundo o último levantamento do Relatório CNJ em Números, o custo da Justiça brasileira já está em 1,2% do PIB nacional.
O que este artigo propõe ultrapassa o enfoque meramente teórico ou mesmo a reiteração vazia dos comandos constitucionais de "duração razoável do processo" (art. 5º, LXXVIII, da CF/88) ou "eficiência da Administração Pública" (art. 37 da CF). Busca-se, a partir de uma abordagem prática, algumas das reais causas que induzem a taxas de congestionamento tão elevadas, a despeito dos esforços do CNJ e do trabalho sobre-humano da maioria dos juízes e servidores.
2. Primeiro grande objetivo: Conscientização
A primeira meta da proposta aqui delineada parte de uma proposição absolutamente simples, mas fundamental. Não se trata de nenhuma novidade, já que é empregada de forma sistemática no meio empresarial. A ideia consiste em estabelecer um objetivo - uma missão, dada a envergadura da incumbência - para o qual convirjam as ações e os esforços de todos que integram a instituição.
Não apenas o Judiciário, mas todo o setor público brasileiro padece de um funcionamento burocrático, derivado de uma cultura institucional solidificada pelo tempo e difícil de ser rompida até mesmo pelo mais diligente dos servidores. Essa postura morosa, no entanto, encontra-se em completo descompasso com o ritmo vertiginoso de uma sociedade em que a tecnologia evolui exponencialmente, a comunicação preza pelo imediatismo e os negócios se fazem e desfazem com menos intermediários e delongas. A mudança das características obsoletas arraigadas na tradição publicista passa por um amplo processo de conscientização acerca da necessidade de alcançar à população respostas mais céleres e efetivas.
Com as devidas concessões e ressalvas quanto à dimensão e à complexidade inerentes à prestação de serviços públicos, é inegável que a iniciativa privada, em regra, atua de forma mais eficiente. A dinâmica do lucro impõe à atividade empresarial a constante busca por resultados com o menor dispêndio possível de recursos. Qualquer desperdício de tempo, dinheiro ou força de trabalho poderia representar - e, num cenário de acirrada competitividade, provavelmente representará - a extinção da própria empresa.
A lógica que rege o Poder Público, no entanto, é outra. Não há uma relação tão evidente de causa e efeito: os números se dispersam por balanços e orçamentos e a responsabilidade pelos déficits não recai sobre um único administrador inábil de quem se possam cobrar resultados, restando partilhada entre um intrincado de agentes e trâmites que observam comandos por vezes irrastreáveis. O contribuinte, acionista minoritário, esgota seu direito de participação nos rumos da sociedade em debates eleitorais que raramente tangenciam o problema, limitando-se a bradar pelo corte de gastos, esquecendo-se de que também os atores econômicos têm na justiça os alicerces de um país onde se pode prosperar. Afinal, compete ao Poder Judiciário a função precípua de prover estabilidade e confiança às relações, oferecendo respostas isentas aos conflitos que inevitavelmente eclodem no tecido social e oferecendo guarida aos alvitres daqueles que detêm poderes desmedidos, sejam eles derivados do dinheiro, da infiltração política ou mesmo da força bruta.
Com o intuito de conciliar a inafastabilidade da prestação jurisdicional com as estratégias produtivas da iniciativa privada, propõe-se trazer para dentro do Judiciário brasileiro a lógica do trabalho por resultados, realocando a efetividade no topo dos valores institucionais. Seja por meio de um projeto específico ou de ações coordenadas, o objetivo é promover uma conscientização de magistrados e servidores acerca da importância de uma atuação sempre orientada para o resultado prático final, o que vai muito além da prolação da sentença em um prazo razoável. É imperioso que o enfoque na efetividade abranja desde a qualidade no atendimento ao público até a entrega célere de soluções concretas, que não terminam na emissão da decisão, e sim no seu cumprimento.
Não há dúvidas de que a efetividade constitui objetivo inerente à própria atividade jurisdicional, assim como o lucro pertence à essência da empresa. No entanto, no momento em que se verbaliza essa prioridade - por exemplo, colocando em destaque a expressão "efetividade" e impulsionando ações para facilitar a concretização de seu sentido -, ocorre um efeito abrangente sobre a mentalidade institucional, canalizando uma pluralidade de esforços e medidas em direção a um propósito comum.
De forma simples, a proposta consiste em estabelecer expressamente a efetividade como valor prioritário e qualidade intrínseca do serviço, explorando o sentido prático da palavra para que seu conteúdo seja absorvido por todos os níveis da instituição. Afinal, efetividade nada mais é do que capacidade de entregar ao usuário, no menor tempo possível, uma resposta concreta ao anseio que o fez buscar a tutela jurisdicional.
A partir da valorização da expressão como meta inafastável, poderemos avançar para a troca de experiências entre os mais diversos tribunais e operadores do Direito, compartilhando as ações implementadas e gerando um intercâmbio das medidas que realmente lograram o objetivo de tornar mais efetiva a prestação jurisdicional. Essa atuação coordenada parece ser a única capaz de redefinir amplamente a cultura judiciária brasileira.
Novamente recorrendo ao paralelo com a iniciativa privada, não basta à empresa produzir massivamente se não for perfectibilizada a venda do estoque em tempo hábil - ou seja, se o produto não chegar a seu destinatário final antes que a utilidade pereça ou se torne obsoleta. Há uma articulação racional dos esforços produtivos com a concretização dos resultados, medindo-se todas as etapas da cadeia pela régua inflexível do lucro.
No setor público, contudo, avalia-se o resultado por meio de números que revelam a quantidade de atos praticados ou de baixas processuais. Não há preocupação com a materialização do direito reconhecido, de modo que a métrica tradicionalmente utilizada para medir a produtividade não reflete a efetividade. Esses dois conceitos - produtividade e efetividade -, embora imbricados, não se confundem, pois declarar o direito não basta para torná-lo efetivo e viável para aqueles a quem é reconhecido.
Nossa experiência em dois períodos como juízes-corregedores e como diretor do Foro da Capital e diretor da Escola da Magistratura da Ajuris, respectivamente, permitiu-nos algumas observações, que colacionamos aqui para ilustrar nossas proposições.
Ao examinar jurisdições diversas, não é incomum que um mesmo diploma legal - seja ele o CPC ou o CPP - enseje atuações completamente diferentes entre magistrados e unidades jurisdicionais. Enquanto a postura de alguns atesta a premência de realizar a direito no caso concreto, outros impulsionam os processos com despachos, não raro desnecessários, que não permitem uma marcha para frente das demandas, utilizando os dispositivos legais mais como proteladores do que como instrumentos da justiça.
A mesma diferença se observa no ato final - ou seja, nas sentenças e nos acórdãos. Enquanto alguns nitidamente se contentam em declarar o direito, sem a preocupação de torná-lo realizável o quanto antes, outros impulsionam o feito desde a fase inicial objetivando o encerramento da demanda, cuidando de estabelecer, no dispositivo, medidas claras voltadas para a efetividade, pensando o comando sentencial como um caminho desobstruído rumo à fase de cumprimento.
Nas unidades de apoio, repete-se o fenômeno. Algumas alcançam excelentes desempenhos, enquanto outras, com o mesmo contingente de servidores e processos, amargam dados muito inferiores.
Ao examinar a fórmula das atuações bem-sucedidas, quase sempre encontramos um gerenciamento comprometido, com maior enfoque em resultados do que em números: mais preocupado com a efetividade do que com estatísticas vazias.
Em face da constatação de que efetividade é um objetivo prioritário a ser permanentemente perseguido, é necessário que haja conscientização e comprometimento de todos os atores envolvidos na cena jurídica - magistrados, servidores, advogados, promotores, defensores públicos, polícia. A defesa intransigente de interesses corporativos não pode obstaculizar a construção conjunta e coordenada, com a devida abertura para que opiniões, críticas e propostas cheguem de todos os lados e sejam igualmente consideradas. O objetivo é de todos; ao final, os benefícios revertem para a população - nossa razão de existir e da qual, não custa lembrar, somos parte integrante.
3. A proposta em movimento: Dois exemplos práticos
Não há reforço melhor para uma ideia do que colocar à prova seu potencial, demonstrando sua aplicação em situações palpáveis. Para esse fim, selecionamos duas iniciativas que marcaram nossa própria experiência profissional. Embora essencialmente simples, essas ações ofereceram resultados excelentes, sendo que uma delas transbordou as expectativas iniciais e mostrou aptidão para influenciar todo o sistema jurídico nacional. Em ambas, partiu-se do estudo de problemas concretos para extrair soluções práticas, pautadas pelas noções de racionalidade e de promoção de resultados palpáveis.
Em 2009, no exercício da direção do Foro de Porto Alegre, constatou-se o grande problema que representava a falta de qualidade das serventias no atendimento ao público. Filas enormes se formavam, havendo inclusive a distribuição de senhas. Não raro, advogados ou as próprias partes passavam horas aguardando para serem atendidos. Vivíamos, a esse tempo, a já ultrapassada realidade dos processos físicos, que exigiam atendimento presencial.
O primeiro passo foi reconhecer que aquela situação era um problema, e não o funcionamento normal de serventias sobrecarregadas por demandas inatendíveis. Embora o quadro já estivesse consolidado na cultura do serviço, entendemos que não constituía uma natureza inescapável, havendo uma série de melhorias possíveis, à espera de esforços para serem implementadas. Assim, por todos os foros da capital, distribuímos um cartaz ilustrado pela imagem de um aperto de mãos que dizia: "missão, melhorar o atendimento às partes e aos advogados". Uma vez transmitida a mensagem de maneira simples e clara, cabia agora partir às medidas de ordem prática.
Iniciamos, então, um processo de medição do tempo de atendimento entre as serventias. Vimos que algumas traziam bons números, enquanto em outras o tempo de espera ultrapassava duas horas. Estudando os dados e métodos daquelas que tinham os melhores resultados, prospectou-se o benchmarking - uma ferramenta de análise oriunda do mercado que permite comparar os processos e desempenhos de empresas do mesmo setor. Um esforço ativo foi empreendido para que as práticas de sucesso se alastrassem pela comarca. Em paralelo, reforçou-se o protocolo geral, de modo a evitar que se formasse pressão nos cartórios para a simples entrega de processos.
A crescente preocupação dos servidores com a efetividade, refletindo um valor primordial ativamente estabelecido pela administração, acarretou expressivas melhorias nos aspectos qualitativos e quantitativos dos atendimentos. Por meio de medidas de baixíssimo custo operacional, o que até então se apresentava como um grande e intransponível problema simplesmente desapareceu.
Nesse exemplo, também se identificam as etapas necessárias para o atingimento dos objetivos. Em primeiro lugar, fixa-se a meta, traduzida por um preceito valorativo a ser priorizado por toda a instituição. A "melhoria no atendimento das serventias" é a expressão prática do valor "efetividade". Em seguida, passa-se à execução de ações próprias e específicas, adaptadas à realidade que se pretende transformar, em busca da consecução de resultados mensuráveis.
O segundo exemplo trazido lançou suas sementes em 2014, no TJ/RS. Na ocasião, a Corregedoria-Geral de Justiça, juntamente com o Tribunal de Contas do Estado, editou a Cartilha de Racionalização da Cobrança da Dívida Ativa Municipal, objetivando orientar os municípios acerca das vantagens do uso de mecanismos extrajudiciais na cobrança das dívidas ativas. Ne mesma linha, o CNJ recentemente ampliou as medidas voltadas à eficiência, editando a resolução 547/24.
Com efeito, ao longo do tempo, milhares de processos executivos foram sendo depositados no Judiciário, grande parte deles sem qualquer perspectiva real de cobrança. À margem de qualquer questionamento, o Poder Executivo despejava tais feitos no sistema judiciário - não tanto com o propósito de recuperar valores devidos ao erário, mas, sobretudo, para atender a exigências burocráticas de regularidade fiscal.
Traduzindo em números, as execuções fiscais correspondem a 31% de todos os casos pendentes na Justiça, com uma taxa de congestionamento de 87,8%. Essas ações influenciam diretamente os resultados do Poder Judiciário, pois apresentam um tempo médio de tramitação de 6 anos e 9 meses. Em um exercício hipotético, caso fossem subtraídas do acervo nacional, o tempo médio de tramitação dos demais processos cairia para 3 anos e 1 mês.
Diante dessa realidade, o CNJ adotou uma postura propositiva, implementando medidas de fomento à desjudicialização das demandas executivas. Entre elas, destacam-se a exigência de demonstração de tentativa prévia de cobrança ou protesto e a autorização para o arquivamento de processos até determinado valor que permaneçam sem movimentação no período de um ano, nos termos da resolução 547/24.
Esses exemplos atestam que, apesar de todas as dificuldades e limitações, o potencial de aperfeiçoamento do sistema judicial é imenso quando os problemas são enfrentados com determinação e proatividade. Circunstâncias que há décadas impactam a jurisdição brasileira - refletindo não apenas nos números absolutos, mas também no cotidiano forense, nas atividades que diariamente precisam ser alcançadas à população - podem ter seus efeitos mitigados por iniciativas que não trazem qualquer impacto negativo nem acarretam dispêndios adicionais aos cofres públicos. Pelo contrário: ambos os casos apresentados comprovam que repercussões significativas podem decorrer de projetos lúcidos, sem que, para isso, sejam necessariamente complexos ou revolucionários em sua concepção. Ademais, as transformações locais relatadas no caso das serventias e o alcance nacional das mudanças aqui iniciadas e corajosamente conduzidas pelo CNJ nos permitem concluir que há espaço para avanços em todos os âmbitos, níveis e escalas.
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