Doutrinas latino-americanas de DI em tempos de Trump
Em tempos de governo Trump e seu ataque sistemático ao multilateralismo, ao livre comércio, revisitar doutrinas que tiveram sua origem nos países latino-americanos deve inspirar os países.
segunda-feira, 28 de julho de 2025
Atualizado às 12:18
A segunda presidência de Donald Trump à frente dos Estados Unidos da América reforça aquilo que já foi uma marca registrada da sua primeira gestão (2017-2021), o uso das tarifas como ferramenta de política externa.
Mais recentemente, a carta publicada por ele na sua rede social, direcionada ao Brasil, aplicando tarifas de 50% sobre os produtos brasileiros e instaurando a investigação sob a Section 301 da Trade Act de 1974 sob os pretextos relacionados a: (i) questões políticas e judiciais domésticas deste país e (ii) interesses específicos das chamadas Big Tech Companies, extrapolam sobremaneira todos os princípios internacionais reconhecidos como válidos desde o final da Segunda Guerra Mundial e parecem buscar inspiração a conceitos que vigiam nos séculos XVIII e XIX.
Diante deste cenário, merece uma revista as doutrinas que foram estabelecidas por juristas latino-americanos a partir dos finais do século XIX que, assim como foram fundamentais para estabelecer princípios que se tornaram parte integrante do Direito Internacional como o conhecemos desde então, parecem ter ganhado nova importância nestes últimos tempos1.
Talvez a grande contribuição do pensamento latino-americano para o Direito Internacional seja o desenvolvimento de uma visão regionalista e integracionista que, reconhecendo, para além da proximidade geográfica e identidade cultural, interesses comuns dos países americanos, vale dizer, proteção contra as antigas metrópoles, uso dos recursos fluviais da região, necessidade de proteção de suas fronteiras e garantias em relação ao reconhecimento de governos insurgentes, busca estabelecer bases acordadas sob um princípio de solidariedade entre esses países para cooperação mútua na preservação dos interesses comuns. Esse movimento claramente influenciou a redação da Carta das Nações Unidas, cujo Capítulo VIII tratou especificamente sobre o tema, estimulando a assinatura de acordos para o desenvolvimento de ações regionais em conformidade com os propósitos das Nações Unidas2.
Doutrinas latino-americanas
Além do regionalismo, a América-Latina certamente contribuiu para o Direito Internacional com doutrinas específicas que traduzem uma mensagem soberana para a comunidade internacional sobre a posição dos Estados latino americanos sobre determinados assuntos.
(i) A cláusula Calvo
Tese formulada pelo chanceler argentino Carlos Calvo, em 1868, segundo a qual as cortes nacionais seriam as únicas vias de recurso contra atos do Estado praticados em detrimento dos interesses de cidadãos súditos de países estrangeiros pode ser assim descrita:
"A influente doutrina de outro publicista argentino, Carlos Calvo, exposta em sua obra Le Droit international théorique et pratique (Paris, 1896), baseava-se no princípio fundamental da igualdade entre nacionais e estrangeiros. A doutrina de Calvo gerou a prática de inserir a chamada cláusula Calvo em contratos internacionais, renunciando à proteção diplomática (para evitar a intervenção) e insistindo na solução pacífica de controvérsias sob a jurisdição do Estado anfitrião (após esgotar os recursos internos). Vistas de uma perspectiva histórica, a doutrina e a cláusula Calvo buscavam manter ou restabelecer o princípio da igualdade jurídica para reger a condução das relações econômicas entre partes aparentemente desiguais (como países latino-americanos importadores de capital e investidores estrangeiros). Subjacente a elas está o princípio da não intervenção, ao mesmo tempo em que proclamava o princípio da igualdade entre nacionais e estrangeiros".3
(ii) A doutrina Drago
Como apontou o professor Cançado Trindade, em sua palestra, proferida por ocasião da cerimônia de encerramento dos trabalhos da Corte Interamericana de Direito Humanos, em 2002:
"Recorde-se, para evocar alguns exemplos históricos, que o princípio básico da proibição do uso da força já era defendido pelos latino-americanos mais de quatro décadas antes da adoção da Carta das Nações Unidas em 1945, ou seja, na Segunda Conferência de Paz de Haia, em 1907. Mesmo antes disso, há exatamente um século, o jurista argentino Luis María Drago, opondo-se ao unilateralismo de alguns países europeus, formulou, em 1902, com base no princípio da igualdade jurídica dos Estados, a tese da não utilização da força armada para a cobrança de dívidas públicas contratuais dos Estados latino-americanos. Seis décadas depois, o tema foi retomado pelo publicista mexicano Isidro Fabela, que se opôs a toda forma de intervenção - individual ou coletiva - nas relações interestatais, considerando que sem igualdade jurídica entre os Estados o direito internacional simplesmente não pode ser realizado."4
A "Doutrina Drago" foi resultado de protesto formal do ministro das relações exteriores da Argentina, Luis Maria Drago, realizado em 1902, contra represálias da Grã-Bretanha, da Alemanha e da Itália, realizadas por meio do bloqueio e o bombardeamento da costa venezuelana (La Guayra, Puerto Cabello e Maracaibo) em razão do inadimplemento do pagamento da Venezuela a credores súditos dos três países.
O bombardeio dos portos venezuelanos provocou vivos protestos na América Latina. A nota do ministro argentino, que a rigor se inspirava em pronunciamento anterior de Carlos Calvo, teve grande repercussão e passou a ser conhecida como doutrina Drago.
A "doutrina Drago" caracterizou-se basicamente como um instituto dos países latino-americanos, não em função de sua originalidade, mas sim por marcar uma posição veemente, no plano internacional, primeiramente de Drago, como ministro das relações exteriores, e depois pelo apoio da maioria dos países, inclusive da delegação brasileira, que acabou por reconhecer no plano internacional tal posicionamento regional, e a partir dele passou a orientar suas relações com outros Estados extracontinentais, em uma postura coincidente com a dos países da América Latina.
(iii) Doutrina Blum
A importância da "Doutrina Brum" para o continente está no fato de que ela inspirou a elaboração de um princípio de defesa continental comum, inserido em 19647 no TIAR - Tratado Interamericano de Assistência Recíproca, e em 1948, na carta da OEA - Organização dos Estados Americanos, Carta de Bogotá sendo adotada como princípio fundamental das relações entre os Estados da região.
Em 1917, Baltasar Brum, então ministro das relações exteriores do Uruguai, dirigiu ao representante brasileiro em Montevidéu uma nota em que, em linhas gerais, expunha a ideia de que, diante dos acontecimentos decorrentes da primeira guerra mundial, os países americanos deveriam ter estreita unidade de ação para fazer frente às violações do Direito Internacional, devendo responder de forma conjunta às ofensas perpetradas contra qualquer país do continente5.
(iv) Pacto Saveedra-Lamas
O Pacto Saavedra-Lamas, nome do chanceler argentino que o idealizou, foi firmado em 1933 pelo Tratado de Não-Agressão e Conciliação, fora das conferências panamericanas e ofereceu um novo mecanismo de conciliação entre os Estados da região, apesar de todas as reservas a ele formuladas. Trata-se de pacto antibélico, de não agressão, e foi subscrito por Argentina, Brasil, Chile, México, Paraguai e Uruguai, contando com a adesão de Bolívia, Costa Rica, Honduras, Cuba, República Dominicana, Nicarágua, El Salvador, Estados Unidos, Venezuela, Peru, Colômbia, Haiti, Guatemala e Panamá, entre outros Estados de fora do continente e visava manter a fraternidade que havia sido ferida por disputas diplomáticas dos Estados e aprofundar suas relações.
Como pacto, todavia, não logrou êxito na medida em que muitas foram as reservas e os signatários acabaram não o aplicando na prática.
Seu mérito como doutrina, todavia, reside na proposta de solução pacífica de conflitos e o compromisso de não agressão, além da sugestão da submissão das controvérsias internas a tribunais internacionais, estabelecendo um sistema híbrido entre o Direito interno e externo para a solução de controvérsia entre os Estados da América Latina6.
Conclusão
Em respeito ao passado de importantes colaborações de juristas latino-americanos na formação do Direito Internacional moderno e como fonte de reflexão do momento em que essa matéria se encontra por conta dos enfrentamentos aos ganhos civilizatórios decorrentes do multilateralismo pós guerras, é preciso revisitar aquelas doutrinas que mencionamos acima e, acima de tudo, tomá-las como inspiração para novas manifestações em prol do fortalecimento de um Direito Internacional mais justo e equilibrado.
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1 As contribuições latino-americanas deram-se ao longo de vários eventos internacionais como o Congresso do Panamá, em 1821, incialmente realizadas nos limites do próprio continente americano, mas também conquistando o fórum da Academia de Hague, onde, entre 1923 e 1947 juristas latino-americanos participaram dos cursos anuais da Academia de Direito Internacional de Haia compartilhando com o mundo as principais doutrinas da região.
2 Para uma exposição mais completa e outras referências cf. FAVACHO, F. G. S. C. Direito Internacional na América Latina: Breve anotações em homenagem ao professor Wagner Menezes In: A Expansão Sistêmica do Direito Internacional: Liber Amicorum Professor Wagner Menezes, ed.1. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2023, v.1, p. 371 - 397.
3 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado, MORENO, Alfredo Martínez - Doctrina Latinoamericana del Derecho Internacional - San José, C.R.: Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2003
4 TRINDADE, A. A. Cançado. Los aportes latinoamericanos al Derecho ya la Justicia internacionales. Doctrina latinoamericana del derecho internacional.San José, C.R.: Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2003. Pág. 35-64
5 ACCIOLY, Hildebrando, CASELLA, Paulo Borba e SILVA, G. E. do Nascimento, Manual de direito internacional público. 20. ed. - São Paulo: Saraiva, 2012, pág. 490
6 MENEZES, Wagner. Direito Internacional na América Latina. Curitiba: Juruá, 2016, pág. 138 -139


