Ensaio hermenêutico: Landau e o constitucionalismo abusivo
O fenômeno da utilização estratégica de mecanismos formais de alteração constitucional, quando orientado por interesses de poder, revela-se como insidioso processo de corrosão da ordem democrática.
terça-feira, 29 de julho de 2025
Atualizado às 15:11
A teoria do constitucionalismo abusivo tem sido amplamente referenciada na literatura acadêmica, consolidando-se como um marco interpretativo de inegável relevância nas reflexões sobre o fenômeno da crise democrática e as distorções que afligem as instituições essenciais do Estado. Tal concepção, que denuncia o uso estratégico e formalmente legítimo de mecanismos constitucionais para minar os fundamentos da democracia, foi acolhida pelo STF no julgamento da ADPF 622/DF, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, e, desde então, tem ganhado crescente atenção na doutrina especializada.
Na ocasião, o plenário da Corte destacou a importância de se evitar os riscos do constitucionalismo abusivo, definido como a prática de interpretar ou alterar o ordenamento jurídico com o propósito de concentrar poderes na figura do chefe do Executivo e enfraquecer os mecanismos de controle institucional. Trata-se de um movimento que, no plano internacional, tem sido reiteradamente associado ao retrocesso democrático e à violação de direitos fundamentais (ADPF 622, relator ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 1/3/21, publicado em 21/5/21).
O julgado do Tribunal Constitucional faz referência à doutrina de David Landau, autor do Abusive Constitutionalism (2013), que analisa como a manipulação deliberada de mecanismos formais de reforma constitucional, quando orientada à concentração de poder, representa um processo sutil, não havendo uso deliberado da força como em cenários autoritários, porém profundamente nocivo, de verdadeira erosão das estruturas fundamentais do regime democrático.
Landau (2013, p. 195) concebe o fenômeno do constitucionalismo abusivo como a manipulação premeditada dos instrumentos formais de mudança constitucional - notadamente a emenda - com a finalidade velada de reconfigurar o Estado em direção a uma ordem menos democrática do que a anteriormente vigente. Trata-se de um processo que, embora revestido de legitimidade procedimental, pode vir a ocultar clara intenção de subversão dos fundamentos do Estado de Direito.
O autor (2013, p. 195) identifica duas dimensões essenciais para a aferição do grau democrático de um regime: a igualdade na disputa eleitoral entre situação e oposição, e a efetiva tutela dos direitos fundamentais, em especial daqueles titularizados por indivíduos e minorias. Embora tais dimensões sejam teoricamente autônomas, a experiência comparada demonstra que a erosão de uma frequentemente arrasta consigo a deterioração da outra.
Nas palavras de Landau (2013, p. 200, tradução nossa):
"Além disso, em tais regimes, os atores e forças políticas dominantes tendem a controlar não apenas os poderes constituídos, mas também os mecanismos de accountability horizontal que, em tese, deveriam funcionar como freios à atuação dos agentes políticos. Assim, instituições como os tribunais, as defensorias, os ministérios públicos e as comissões eleitorais costumam estar sob o domínio dos detentores do poder. Em vez de atuarem como instâncias independentes de contenção do poder governamental, essas instituições passam a operar como instrumentos a serviço dos projetos políticos dos mandatários. O resultado não é apenas a corrosão da competição eleitoral, mas também uma drástica limitação da proteção de direitos de grupos minoritários nesses sistemas. O problema central, portanto, reside no fato de que é relativamente fácil construir um regime que ostente uma aparência democrática, mas que, na prática, não o seja de forma plena - ao menos em duas dimensões essenciais: os mecanismos de controle vertical e horizontal sobre os líderes eleitos e a proteção de direitos dos grupos vulneráveis. Um regime marcado por essa dupla deficiência - ausência relativa de mecanismos de controle e carência de proteção a direitos - é substancialmente menos democrático do que aquele em que se observa maior densidade institucional de accountability e garantias efetivas de direitos. Ademais, a fragilidade dos mecanismos de controle tende a estar associada a outros males institucionais, como o agravamento dos níveis de corrupção."
Trata-se de uma advertência aguda contra a aparência de normalidade institucional, que muitas vezes oculta a progressiva deterioração das liberdades públicas e o esvaziamento do pluralismo político. A suscitada teoria, tal como formulada, revela-se de notável relevância para a compreensão dos desvios contemporâneos da ordem constitucional sob o manto da legalidade formal. Como aponta o autor (2013, p. 189), em tempos nos quais a erosão democrática já não se opera apenas por vias de ruptura abrupta, mas por meio de uma meticulosa manipulação dos próprios instrumentos constitucionais, a teoria lança luz sobre um fenômeno insidioso: o uso estratégico e oportunista da legitimidade jurídica para fins de concentração de poder e neutralização das instituições de controle.
À luz da teoria do constitucionalismo abusivo, torna-se evidente que os instrumentos clássicos do Direito Constitucional - por mais sofisticados que sejam em sua elaboração dogmática - revelam-se, por vezes, inaptos para conter as novas formas de erosão democrática que se ocultam sob o véu da legalidade. A manipulação formalmente legítima das normas constitucionais, orientada por desígnios autoritários, escapa às categorias tradicionais de ruptura e exige da teoria constitucional um esforço renovado de superação de seus próprios limites.
De modo convergente ao Landau (2013), Ziblatt e Levitsky (2018), também referenciados no aresto, na obra Como as Democracias Morrem, exploram o declínio democrático através do enfraquecimento gradual das instituições, enfatizando que o declive não ocorre apenas por rupturas violentas, mas por processos sutis de erosão institucional, sobretudo quando líderes eleitos passam a desrespeitar as normas democráticas e a minar os freios e contrapesos.
Nesse contexto, torna-se ainda mais evidente que a existência dos direitos e garantias fundamentais constitui o núcleo ético-jurídico da ordem democrática, funcionando não apenas como barreira aos abusos do poder, mas como expressão substancial da dignidade da pessoa humana - valor-fonte de todo o edifício constitucional brasileiro (Art. 1º, III, Constituição Cidadã).
Em uma verdadeira democracia, não basta o sufrágio periódico ou a alternância formal de governantes: é indispensável a consagração de espaços invioláveis de liberdade, igualdade e justiça, assegurados por normas que vinculam o Estado e protegem o cidadão contra a voracidade das maiorias e a tentação autoritária. Os direitos fundamentais não são concessões do poder, mas limites a ele impostos; não são adornos retóricos, mas pressupostos ontológicos da convivência em liberdade.
Sempre é oportuno e necessário nos debruçarmos sobre os estudos desenvolvidos por constitucionalistas.
Concluímos este suscinto trabalho de análise da teoria do constitucionalismo abusivo de David Landau (2013), cuja contribuição se mostra central para a compreensão dos riscos que ameaçam as democracias por dentro. Sua abordagem permite identificar, com precisão conceitual, os mecanismos pelos quais se desfiguram os limites constitucionais sob o pretexto de reforma legítima, minando a proteção de direitos e o equilíbrio entre os Poderes. Nesse contexto, cabe ao STF, na condição de corte de mais alta hierarquia em matéria constitucional, a proteção do adequado funcionamento da democracia, bem como a tutela dos direitos fundamentais (ADPF 622, relator ministro Roberto Barroso, 2021).
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 27 jul. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 622: Direito da criança e do adolescente. Arguição de descumprimento de preceito fundamental. Decreto nº 10.003/2019. Composição e funcionamento do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente - Conanda. Procedência parcial do pedido. Relator: Min. Roberto Barroso. Tribunal Pleno, julgado em 01 mar. 2021. Diário da Justiça Eletrônico, DJe-097, divulgado em 20 mai. 2021, publicado em 21 mai. 2021.
LANDAU, David. Abusive Constitutionalism, 47 U.C. Davis L. Rev. 189 (2013), Disponível em: https://ir.law.fsu.edu/articles/555. Acesso em: 28 jul. 2025.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. 1. ed. São Paulo: Zahar, 2018.


