Natureza e limites da MPU à luz do STJ
As medidas protetivas têm natureza inibitória e autônoma, independem de ação penal e vigoram enquanto persistir o risco, conforme fixado no Tema 1249 do STJ.
quinta-feira, 31 de julho de 2025
Atualizado às 14:40
Da natureza jurídica das medidas protetivas de urgência no âmbito da lei 11.340/06 (lei Maria da Penha) e seus limites temporais: análise do Tema 1249 do STJ.
A lei Maria da Penha, instituída pela lei 11.340/06, representa um marco no ordenamento jurídico brasileiro ao estabelecer mecanismos específicos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher e a população LGBTQIA+. É expressão normativa de um compromisso constitucional e internacional de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. No centro dessa proteção está a dignidade da pessoa humana, princípio fundante da República (CRFB/88, art. 1º, III), que não se exaure em um conceito abstrato, mas demanda concretude e eficácia material por parte do Estado-juiz.
Dentre as ferramentas disponibilizadas ao Judiciário, destacam-se as medidas protetivas de urgência, instrumentos dotados de celeridade e voltados à proteção imediata da vítima.
Tamanha celeridade encontra guarita quando, recentemente, o STJ, no julgamento do Tema repetitivo 1249, consolidou entendimento acerca da possibilidade de concessão e manutenção das medidas protetivas independentemente da existência ou da continuidade de inquérito policial, inclusive de ação penal. Este entendimento possui relevante impacto sobre a interpretação e a aplicação da lei Maria da Penha, especialmente no que se refere à tutela jurisdicional preventiva, assegurando que estas não sejam meramente acessórios de uma persecução penal, mas sim instrumentos autônomos de salvaguarda da vida e da dignidade das mulheres.
Tal reconhecimento de autonomia das medidas protetivas consolida uma compreensão mais adequada ao sistema constitucional de proteção dos direitos fundamentais e aos compromissos internacionais de combate à violência de gênero, reafirmando o papel do Poder Judiciário como garantidor de direitos e promotor da tutela integral à mulher.
As medidas protetivas de urgência são providências excepcionais, de natureza preventiva, destinadas a resguardar a integridade física, psicológica, patrimonial e moral da mulher em situação de violência doméstica ou familiar. Estão previstas, de forma não exaustiva, nos arts. 22 a 24 da lei Maria da Penha.
Notadamente, havia divergência dentro do STJ a respeito da natureza jurídica das protetivas. A 5ª turma afirmava que a natureza era de medida cautelar penal, enquanto a 6ª Turma entendia a natureza das medidas como de tutela inibitória. Prevaleceu-se a corrente de tutela inibitória, isto é, natureza jurídica de índole cível, satisfativa e inibitória, permitindo que houvesse a desvinculação da existência das MPUs aos aspectos processualísticos (ação penal) ou procedimentais (inquérito policial).
Portanto, ainda que o requerido tenha sido réu em processo penal, mas absolvido, as medidas de proteção poderão permanecer, comprovando-se a permanência do risco à violação da incolumidade da vítima, não implicando a absolvição em extinção das tutelas de proteção.
Possuem caráter inibitório com a finalidade de se evitar possível nova incidência de violência mediante restrições impostas ao agressor, bem como possuem caráter satisfativo, isto é, resposta imediata, independente de resposta judicial, uma vez que até a autoridade policial poderá conceder as medidas de proteção.
Encontramos resguardo, no tocante à eficácia da prevenção dada pela proteção dos bens jurídicos, também em Cezar Roberto Bitencourt, que dizia que "a prevenção é, em verdade, a razão de ser do Direito Penal moderno, que não pode limitar-se à repressão, mas deve atuar como mecanismo de proteção eficaz dos bens jurídicos mais relevantes." (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, Parte Geral, vol. 1, 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2020).
Dessa maneira, "as medidas de proteção previstas na lei Maria da Penha não têm natureza meramente processual. Elas atuam como instrumentos penais preventivos autônomos, justificando-se pela tutela de bens jurídicos indisponíveis." (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024).
No julgamento do REsp 2.036.072/MG, rel. min. Laurita Vaz, decidiu que as medidas protetivas não são revogadas automaticamente com o decurso do tempo, isto é, necessitam de oitiva anterior à vítima, neste caso, na prática, será expedido mandado de intimação à vítima para que, com advogado ou sob a defesa da Defensoria Pública da Mulher, poderá solicitar a prorrogação ou a revogação das medidas protetivas. Ainda, na linha do art. 19. §§5º e 6º da lei 11.340/06 com supedâneo ao REsp supracitado:
"I - As medidas protetivas de urgência (MPUs) têm natureza jurídica de tutela inibitória e sua vigência não se subordina à existência (atual ou vindoura) de boletim de ocorrência, inquérito policial, processo cível ou criminal.
II - A duração das MPUs vincula-se à persistência da situação de risco à mulher, razão pela qual devem ser fixadas por prazo temporalmente indeterminado;
III - Eventual reconhecimento de causa de extinção de punibilidade, arquivamento do inquérito policial ou absolvição do acusado não origina, necessariamente, a extinção da medida protetiva de urgência, máxime pela possibilidade de persistência da situação de risco ensejadora da concessão da medida.
IV - Não se submetem a prazo obrigatório de revisão periódica, mas devem ser reavaliadas pelo magistrado, de ofício ou a pedido do interessado, quando constatado concretamente o esvaziamento da situação de risco. A revogação deve sempre ser precedida de contraditório, com as oitivas da vítima e do suposto agressor. Em caso de extinção da medida, a ofendida deve ser comunicada, nos termos do art. 21 da lei 11.340/06.
Do agravo de instrumento: considerações no âmbito da lei Maria da Penha
O agravo de instrumento, previsto no art. 1.015 do CPC, consolidou-se como o meio idôneo para impugnação imediata de decisões interlocutórias que versem sobre tutelas de urgência, inclusive no contexto das medidas protetivas de urgência previstas na lei 11.340/06. Embora a lei Maria da Penha discipline um microssistema próprio de proteção, a ausência de rito recursal específico no tocante às decisões concessivas ou denegatórias das medidas protetivas impõe a aplicação subsidiária das normas do CPC, em consonância com o princípio da instrumentalidade das formas e correlatos.
É o recurso cabível contra decisões interlocutórias proferidas em procedimentos regidos pela lei Maria da Penha, considerando que tais medidas possuem natureza híbrida, com forte conteúdo de tutela jurisdicional protetiva e preventiva. Tal entendimento preserva o direito de acesso à jurisdição recursal (art. 5º, XXXV, CRFB/88), ao mesmo tempo em que respeita a celeridade e a efetividade da proteção à vítima, pilares fundamentais tanto no plano constitucional quanto no sistema internacional de direitos humanos, em especial à luz da Convenção de Belém do Pará.
Importante destacar que, em respeito ao contraditório e à ampla defesa, o agravo de instrumento, como recurso dotado de cognição sumária e urgência, permite a impugnação imediata das decisões que impactem diretamente a esfera jurídica do suposto agressor, garantindo, assim, a preservação do equilíbrio processual e a observância do devido processo legal, mesmo no contexto de proteção reforçada da mulher em situação de violência.
Portanto, o agravo de instrumento configura-se como ferramenta técnica indispensável na engrenagem recursal do sistema protetivo, não apenas como garantia de defesa, mas também como expressão do Estado Democrático de Direito, que não admite a tutela da vítima à custa da supressão das garantias fundamentais do acusado. Trata-se, pois, de um ponto de equilíbrio hermenêutico que articula celeridade, efetividade e constitucionalidade, com plena aderência aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil no campo dos direitos humanos.
Das medidas e a proteção da dignidade da pessoa humana:
O "fim das medidas protetivas é proteger direitos fundamentais, evitando a continuidade da violência e das situações que a favorecem. E só. Elas não são, necessariamente, preparatórias de qualquer ação judicial. Elas não visam processos, mas pessoas." (LIMA, Fausto Rodrigues de. Da atuação do Ministério Público: artigos 25 e 26. In: CAMPOS, Carmen Hein de (Org.). Lei Maria da Penha: comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 329).
Mister destacar o voto do ministro Rogerio Schietti nos autos do RHC 74.395/MG, "em conformidade com a doutrina mais autorizada, as medidas protetivas de urgência, previstas no art. 22 da lei 11.340/06, não se destinam à utilidade e efetividade de um processo específico. Sua configuração remete à tutela inibitória, visto que tem por escopo proteger a vítima, independentemente da existência de inquérito policial ou ação penal, não sendo necessária a realização do dano, mas, apenas, a probabilidade do ato ilícito".
Tal entendimento está alinhado à proteção integral dos direitos fundamentais (CRFB/88, art. 1º, III; art. 5º, caput e incisos), bem como aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, especialmente a CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção de Belém do Pará, que exigem dos Estados a adoção de medidas eficazes e céleres para prevenir e erradicar a violência contra a mulher.
A tese fixada reafirma a natureza autônoma e civil das medidas protetivas, permitindo que sejam pleiteadas, concedidas e mantidas mesmo na ausência de persecução criminal ativa. Assim, o encerramento do inquérito ou a absolvição penal não interferem automaticamente na eficácia das medidas protetivas.
O entendimento amplia a proteção judicial às vítimas, oferecendo um ambiente de maior segurança e previsibilidade jurídica. Como consequência, evita-se o vácuo de proteção, mitigando o risco de novas agressões motivadas pela falsa impressão de encerramento da tutela estatal.
A manutenção das medidas protetivas, independentemente da ação penal, é expressão da concretização da dignidade da pessoa humana como valor-fonte do ordenamento jurídico. A dignidade deve ser interpretada como vetor tanto deontológico (obrigacional) quanto axiológico (valorativo) que permeia todos os ramos do Direito (ALEXY, 2015), notadamente no que se refere à proteção de grupos vulneráveis, como candelabro à dignidade da pessoa humana.
Na estrutura normativa da Constituição de 1988, a dignidade da pessoa humana constitui valor-fonte (Alexy, 2015), um princípio estruturante que irradia seus efeitos sobre todo o sistema jurídico. A dignidade não é apenas um postulado retórico, mas um vetor axiológico que orienta a interpretação e aplicação das normas infraconstitucionais.
Como destaca Luís Roberto Barroso (2001), a dignidade da pessoa humana é o centro axiológico do Estado Democrático de Direito, servindo como parâmetro para restringir ou justificar a atuação estatal. No contexto da lei Maria da Penha, isso significa que o Estado não pode submeter a mulher a situações de vulnerabilidade por omissão ou por interpretações reducionistas que subordinem a tutela da vítima à lógica estritamente penal.
As medidas protetivas de urgência são, portanto, a expressão prática da valoração constitucional da vida e da integridade física e psicológica da mulher como bens jurídicos superiores, cuja proteção se impõe independentemente do desfecho penal.
Sob a ótica deontológica, a dignidade da pessoa humana não é apenas um valor a ser promovido, mas um dever jurídico de observância obrigatória pelo Estado e pela sociedade. O Estado tem o dever inafastável de garantir a proteção da mulher, sob pena de violar a cláusula de proteção dos direitos fundamentais.
Como ensina Robert Alexy (2015), a dignidade configura uma norma-princípio com pretensão de concretização máxima, exigindo que os poderes públicos adotem todas as providências necessárias para a sua plena eficácia.
O dever de proteger a dignidade da mulher impõe ao Estado-juiz:
- A obrigação de adotar medidas céleres e eficazes (medidas protetivas).
- A manutenção dessas medidas enquanto persistir a situação de risco, independentemente da continuidade ou não da persecução penal.
- A adoção de interpretações que favoreçam a máxima proteção dos direitos fundamentais.
O julgamento do Tema 1249 está em absoluta consonância com essa visão deontológica, ao afastar qualquer interpretação que possa condicionar a proteção da vítima ao rito da persecução penal, sob pena de negar efetividade ao núcleo essencial do direito fundamental à segurança e à vida digna.
Além da matriz constitucional, o Brasil está vinculado a compromissos internacionais que impõem o fortalecimento da proteção à mulher:
- Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW).
- Convenção de Belém do Pará.
O sistema interamericano de direitos humanos exige que os Estados adotem todas as medidas legislativas, administrativas e judiciais necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos enfatiza a responsabilidade internacional dos Estados por omissão na proteção eficaz de grupos vulneráveis (caso González y otras - "Campo Algodonero" vs. México, 2009).
Considerações finais
O julgamento do Tema 1249 materializa o controle de convencionalidade ao alinhar o direito brasileiro às normas internacionais de proteção à mulher, reforçando a supremacia dos direitos humanos no ordenamento jurídico interno.
A tese fixada pelo STJ não apenas reafirma a autonomia das medidas protetivas de urgência, mas também consagra a dignidade da pessoa humana como valor central e dever jurídico prioritário no combate à violência doméstica.
A interpretação que desvincula as medidas protetivas da persecução penal é constitucionalmente adequada porque:
- Concretiza a dignidade da pessoa humana como valor-fonte (axiologia).
- Atende ao dever jurídico de proteção efetiva (deontologia).
- Cumpre os compromissos internacionais de proteção aos direitos humanos das mulheres.
Portanto, a manutenção das medidas protetivas de urgência, ainda que ausente processo penal, é exigência jurídica inarredável e instrumento legítimo de tutela antecipada da vida e da dignidade da mulher, em harmonia com o sistema constitucional brasileiro e com o bloco de constitucionalidade formado pelos tratados internacionais de direitos humanos.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da União, Brasília, 8 ago. 2006.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Tema Repetitivo 1249. REsp 1.984.057/MG, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, julgado em 17/05/2023.
CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, aprovada pelo Decreto nº 4.377/2002.
CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, promulgada pelo Decreto nº 1.973/1996.
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso González y otras ("Campo Algodonero") vs. México, Sentença de 16 de novembro de 2009.


