Da analítica: Visita aos conceitos jurídicos fundamentais à luz da LMP
Medidas protetivas e cautelares exigem equilíbrio entre proteção à vítima e garantias do acusado, com base em institutos fundamentais, respeitando princípios constitucionais e tratados internacionais.
sábado, 2 de agosto de 2025
Atualizado em 1 de agosto de 2025 14:53
Fumus Boni Iuris, Periculum in Mora, Fumus Comissi Delicti e Periculum Libertatis: Estudo dos institutos no âmbito da lei Maria da Penha
O Direito Processual Penal brasileiro, informado pelos princípios constitucionais do devido processo legal, da presunção de inocência e da dignidade da pessoa humana, estabelece critérios rigorosos para a imposição de medidas constritivas da liberdade, especialmente a prisão cautelar. Entre esses critérios, destacam-se os requisitos cumulativos do fumus comissi delicti e do periculum libertatis, que constituem a base jurídica e axiológica para legitimar restrições provisórias à liberdade no curso da persecução penal.
A correta compreensão e aplicação desses requisitos não apenas garantem a eficiência do processo penal, mas também preservam a coesão constitucional do sistema, impedindo que o instrumento processual seja convertido em mecanismo de punição antecipada, o que é frontalmente vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Adiante, a dignidade da pessoa humana, como fundamento da República (art. 1º, III, da CRFB/88) e princípio estruturante dos direitos fundamentais, opera como vetor interpretativo de todo o sistema jurídico, exigindo que tanto a proteção da vítima quanto as garantias do agressor sejam igualmente consideradas e balanceadas.
O enfrentamento da violência doméstica não pode, sob nenhum pretexto, resultar na violação das garantias processuais do acusado, pois o Estado Democrático de Direito não pode permitir a instrumentalização da persecução penal ao custo da erosão dos direitos fundamentais.
Desta forma, é preciso que institutos como os que serão debatidos deverão considerar a necessidade de medidas eficazes e imediatas para preservar a integridade da vítima, respeitando o dever de diligência reforçada pelo Direito Internacional, a preservação das garantias processuais do acusado, em especial a presunção de inocência e contraditório diferido e a imposição do controle de proporcionalidade, subsidiariedade e adequação em todas as medidas cautelares, inclusive as protetivas, porquanto tutelas inibitórias.
A lei 11.340/06 representa um marco legislativo na tutela das mulheres em situação de violência doméstica e familiar, conferindo instrumentos eficazes para a proteção da vítima, especialmente por meio da concessão célere de medidas protetivas de urgência. Nesse cenário, o debate acerca dos requisitos autorizadores dessas medidas impõe-se como questão relevante, notadamente no tocante à compatibilidade com princípios processuais fundamentais, como o fumus boni iuris e o periculum in mora.
É imperioso, portanto, perscrutar tais institutos sob a ótica técnico-jurídica, a fim de compreender sua aplicação no microssistema protetivo da lei Maria da Penha, sem, contudo, olvidar os cânones constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e da dignidade da pessoa humana, porquanto em sede de violência doméstica.
O Fumus Boni Iuris e o Periculum in Mora no contexto das medidas protetivas
O fumus boni iuris é uma expressão de origem romana que significa "fumaça do bom direito" e que representa a plausibilidade jurídica da pretensão deduzida. Em sede de tutela de urgência, inclusive no âmbito penal e processual penal, exige-se a presença de elementos que indiquem, prima facie, a verossimilhança da alegação. Não se restringe à probabilidade jurídica de ocorrência do delito, mas abarca, como supradito, a verossimilhança da situação de vulnerabilidade da mulher e a plausibilidade de violação de seus direitos fundamentais à vida, à integridade física e psicológica e à liberdade pessoal. Este conceito é alargado, devendo ser interpretado sob a égide da função teleológica da lei Maria da Penha, que visa à erradicação da violência de gênero, conforme pactuado internacionalmente.
Esse raciocínio encontra sólido respaldo na Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, internalizada pelo Brasil pelo decreto 1.973/1996, que impõe aos Estados o dever de adotar medidas eficazes e imediatas para prevenir agressões.
No campo da lei Maria da Penha, o fumus boni iuris se materializa na existência de indícios razoáveis de prática de violência doméstica ou familiar contra a mulher. A jurisprudência e a doutrina têm enfatizado que a palavra da vítima assume especial relevância, sendo suficiente para, em prévia cognição, sustentar a plausibilidade do direito à proteção imediata.
Contudo, a palavra da vítima não goza de presunção absoluta de veracidade e, embora possa ser elemento central na formação do fumus boni iuris, deve ser analisada dentro do contexto probatório inicial, especialmente para evitar abuso do direito e garantir o respeito aos direitos do acusado.
Já o periculum in mora, traduz-se no perigo de dano ou risco à ineficácia da medida caso a prestação jurisdicional seja postergada. É um elemento intrínseco à tutela de urgência, presente tanto no processo civil quanto no penal.
No microssistema da lei Maria da Penha, o periculum in mora está amplamente presumido diante da natureza da violência doméstica e familiar, cuja continuidade ou escalada pode gerar consequências gravíssimas, inclusive letais. A urgência é amplamente reconhecida pelo legislador ao conferir celeridade na análise das medidas protetivas (art. 22 e seguintes), muitas vezes deferidas inaudita altera pars, com fulcro na necessidade de resguardar a integridade física e psicológica da vítima.
A medida protetiva de urgência pode ser concedida com base no perigo iminente à vítima, independentemente da instauração de inquérito ou processo criminal formalizado - e tal entendimento fortalece a autonomia das medidas protetivas como providências de natureza cautelar sui generis.
Fumus Comissi Delicti e Periculum Libertatis à luz da violência doméstica
O fumus comissi delicti, expressão latina que pode ser traduzida como "fumaça da ocorrência do delito", representa o juízo de probabilidade quanto à materialidade e aos indícios suficientes de autoria de um fato penalmente típico, ilícito e culpável. Trata-se de um requisito de natureza probatória sumária, exigido para a decretação de medidas cautelares pessoais, inclusive a prisão preventiva.
No sistema brasileiro, tal exigência encontra previsão expressa no art. 312 do CPP, na redação conferida pela lei 13.964/19 (pacote anticrime), que condiciona o acautelamento preventivo à presença de "prova da existência do crime e indício suficiente de autoria."
É consolidado entendimento no sentido de que o fumus comissi delicti demanda um mínimo lastro probatório que indique a plausibilidade da ocorrência do crime e o envolvimento do investigado ou acusado. Não se exige, evidentemente, certeza ou prova robusta, bastando elementos iniciais capazes de demonstrar razoabilidade na imputação.
O fumus comissi delicti, portanto, atua como salvaguarda contra prisões arbitrárias, vedando constrições baseadas em meras suposições, boatos ou delações não corroboradas, em estrita consonância com o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CRFB/88).
Convém salientar que, embora semelhantes, o fumus boni iuris, típico das medidas cíveis e das tutelas de urgência, diverge do fumus comissi delicti, que é peculiar às medidas cautelares pessoais no âmbito penal. Enquanto o primeiro exige plausibilidade jurídica, o segundo requer probabilidade fática da existência do crime e da autoria.
Já o periculum libertatis, ou perigo gerado pela liberdade, corresponde ao risco concreto de que a liberdade do imputado comprometa os fins do processo ou a ordem pública. Trata-se de um pressuposto de natureza objetiva que justifica a restrição cautelar da liberdade individual, sempre de forma excepcional e subsidiária.
O CPP, em seu art. 312, delimita as hipóteses que configuram o periculum libertatis.
É preciso avaliar a garantia da ordem pública, que é vinculada ao risco de reiteração criminosa ou ao impacto social deletério da conduta; garantia da ordem econômica, especialmente em delitos que afetam bens jurídicos coletivos ou estruturas financeiras relevantes; conveniência da instrução criminal, com perigo de que o agente, em liberdade, destrua provas ou ameace testemunhas, e; assegurar a aplicação da lei penal com risco de fuga ou ocultação do réu.
Com o advento do pacote anticrime (lei 13.964/19), o legislador reforçou a excepcionalidade da prisão preventiva, ressaltando a prioridade das medidas cautelares diversas da prisão (art. 319 do CPP) e da imposição de alternativas restritivas, em atenção ao princípio da intervenção mínima e à diretriz de menor onerosidade.
O periculum libertatis deve ser analisado com extrema cautela, de modo a evitar que a prisão cautelar se converta em antecipação de pena, hipótese vedada pela CF e amplamente repudiada pela doutrina e pelos tribunais superiores.
No sistema pátrio, o fumus comissi delicti e o periculum libertatis devem coexistir de forma cumulativa para legitimar a decretação de qualquer medida restritiva de liberdade.
O STJ tem reiterado que a ausência de qualquer dos requisitos torna ilegal a prisão preventiva. Ademais, a ausência de fundamentação concreta quanto ao periculum libertatis tem como consequência o relaxamento da prisão.
No sistema constitucional brasileiro, a imposição de restrições à liberdade, mesmo que sejam restrições parciais ou alternativas, deve respeitar os princípios da proporcionalidade, necessidade e subsidiariedade, consagrados no art. 5º, inciso LIV, da CF.
O periculum libertatis só legitima medidas protetivas restritivas quando outras medidas menos gravosas não forem suficientes para garantir a segurança da vítima ou a regularidade do processo penal. É o que se extrai da lógica do art. 282, § 6º, do CPP, que estabelece a preferência por medidas cautelares diversas da prisão.
A prisão preventiva no contexto da lei Maria da Penha, por exemplo, somente será cabível quando houver risco concreto e atual que não possa ser mitigado por medidas protetivas menos gravosas (art. 313, III, do CPP), o que reforça a necessidade de um juízo técnico fundamentado sobre a real urgência e a efetividade das providências cautelares.
Conciliação dos princípios constitucionais e o sistema protetivo: Efetividade da tutela versus Garantias individuais e o contraditório diferido como exigência constitucional
O sistema protetivo da lei Maria da Penha deve ser interpretado em harmonia com o bloco de constitucionalidade, especialmente com os direitos fundamentais à vida, à integridade física, à liberdade e à dignidade da pessoa humana, tanto da vítima quanto do suposto agressor.
A dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB/88) não pode ser lida de forma fragmentada: protege tanto a mulher em situação de violência quanto o investigado, que, embora esteja submetido à persecução penal, mantém íntegras suas garantias fundamentais.
Ainda que o sistema autorize a concessão imediata das medidas protetivas com base no periculum in mora e fumus boni iuris, é imprescindível que o acusado seja prontamente citado e ouvido, permitindo-lhe exercer o contraditório e a ampla defesa.
A ausência de contraditório diferido, em tempo razoável, pode converter medidas protetivas legítimas em instrumentos de persecução unilateral, violando o princípio do devido processo legal e comprometendo a validade das medidas aplicadas.
Considerações finais
Diante do exposto, sustenta-se que, no microssistema da violência doméstica, os institutos fumus boni iuris, periculum in mora, fumus comissi delicti e periculum libertatis devem ser aplicados de forma integrada e rigorosa, com observância dos seguintes postulados:
O fumus boni iuris e o periculum in mora fundamentam a urgência das medidas protetivas, exigindo a demonstração plausível da situação de violência e do risco de agravamento do dano.
O fumus comissi delicti e o periculum libertatis disciplinam as medidas cautelares penais, inclusive aquelas restritivas de liberdade, impondo ao Judiciário o dever de verificar indícios concretos de autoria e materialidade, além de perigo real e atual.
A concessão das medidas protetivas deve observar os princípios constitucionais da proporcionalidade, razoabilidade, subsidiariedade e devido processo legal, com a previsão de contraditório diferido em tempo razoável, porquanto inaudita altera pars e por ser tutela inibitória.
O Brasil, como signatário de tratados internacionais de proteção às mulheres, possui obrigação positiva de agir com diligência reforçada na proteção das vítimas, sem, contudo, admitir a flexibilização das garantias processuais do acusado além dos limites constitucionalmente aceitáveis.
O sistema deve ser interpretado em chave integradora, harmonizando os direitos fundamentais das vítimas e dos acusados, projetando sobre as medidas protetivas a tutela efetiva dos direitos humanos consagrados no plano internacional.
Assim, a efetividade das medidas de proteção à mulher no âmbito da violência doméstica exige a conjugação equilibrada entre a celeridade da jurisdição cautelar, os requisitos probatórios mínimos, o respeito aos princípios constitucionais e o compromisso internacional do Estado brasileiro com a erradicação da violência de gênero, sob pena de violação ao Estado Democrático de Direito e aos pactos internacionais de direitos humanos.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha).
BRASIL. Código de Processo Penal.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4424/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia.


