Retirada de conteúdo da internet em sede interlocutória à luz da LMP
A retirada de conteúdo ofensivo da internet pode ser determinada judicialmente em sede de medida protetiva, visando proteger a dignidade da vítima diante da violência digital de gênero.
domingo, 10 de agosto de 2025
Atualizado em 8 de agosto de 2025 14:01
Retirada de conteúdo da internet: Possibilidades em decisão interlocutória em sede de medida protetiva de urgência
Mévio - personagem tradicionalmente utilizado na doutrina jurídica para fins exemplificativos - supostamente divulgou, sem o consentimento da titular, imagens da vítima Tícia com o inequívoco propósito de vulnerar sua honra subjetiva e objetiva. O conteúdo veiculado teria sido intencionalmente difamatório, na medida em que imputou à ofendida conduta atentatória a sua probidade e decoro, mediante a insinuação de que esta se dedicaria à prestação de serviços de satisfação de lascívia alheia, em analogia pejorativa às denominadas "profissionais do sexo", além de divulgar publicamente seu número telefônico pessoal em plataforma de rede social, fato que ensejou a intensificação da vitimização por meio de sucessivas mensagens de terceiros de teor sexual e ofensivo, importunando a vítima e reforçando estigmas misóginos historicamente associados ao corpo feminino.
A lei 12.965/14, denominada marco civil da internet, consubstancia o marco normativo fundamental para a disciplina dos direitos e deveres dos usuários e provedores no ambiente digital brasileiro. No que concerne à responsabilidade civil dos provedores de aplicações de internet, o diploma normativo estabelece, em seu art. 19, um regime jurídico específico que condiciona tal responsabilidade à inércia frente a ordem judicial que determine a indisponibilização de conteúdo apontado como ilícito. Trata-se de uma cláusula normativa de equilíbrio que visa compatibilizar, de um lado, o direito fundamental à liberdade de expressão (CRFB/88, art. 5º, IV e IX) e, de outro, os direitos da personalidade, especialmente os direitos à honra, à imagem, à intimidade e à vida privada (CRFB/88, art. 5º, X).
Tal regime jurídico introduz o chamado modelo judicial notice and take down segundo o qual a responsabilização dos provedores não decorre da mera veiculação de conteúdo ofensivo por terceiros, mas de sua omissão em removê-lo após provocação jurisdicional específica. A ratio legis da norma reside na contenção de eventuais riscos de censura privada, assegurando que o juízo de ilicitude do conteúdo seja exercido pelo Poder Judiciário, e não unilateralmente pelos entes privados.
No âmbito jurisprudencial, o STJ tem sedimentado orientação no sentido de que a responsabilidade civil dos provedores, nos termos do art. 19 do marco civil da internet, possui natureza subjetiva, exigindo a demonstração de culpa pela omissão na retirada de conteúdo ofensivo, após regular notificação judicial. Essa construção doutrinária e jurisprudencial se insere na lógica da vedação à censura prévia, ao mesmo tempo em que preserva o direito à reparação civil, nos termos dos arts. 186 e 927 do CC. O STJ, a título de exemplo, já pontuou imprescindibilidade da ordem judicial como condição da responsabilização dos provedores de aplicação.
Não obstante, o legislador estabeleceu exceção relevante à regra geral do art. 19: trata-se do disposto no art. 21 do mesmo diploma legal, que prevê a possibilidade de remoção extrajudicial imediata de conteúdo relacionado à divulgação não consentida de imagens íntimas, desde que a vítima apresente notificação com os elementos de identificação do material e do contexto. Tal previsão legislativa reflete o reconhecimento da grave vulneração à dignidade sexual e à integridade psíquica da vítima nesses casos, inserindo-se no paradigma do dever estatal de proteção contra a violência de gênero, inclusive na seara digital. Aqui se aplica a lógica do notice and take down extrajudicial, com fundamento em um imperativo ético-jurídico de tutela da dignidade humana em sua dimensão mais sensível.
O STF, por sua vez, em jurisprudência consolidada, afirma que a liberdade de expressão, embora essencial à ordem democrática, não ostenta caráter absoluto, devendo ser sopesada com outros direitos fundamentais. O Tribunal tem reafirmado a necessidade de ponderação constitucional entre princípios em colisão, nos moldes da teoria da proporcionalidade, de inspiração alexyana - embora a liberdade de imprensa (e, por extensão, de expressão) seja pedra angular da democracia, ela não pode se converter em escudo para abusos contra direitos fundamentais de terceiros.
No plano do Direito Internacional dos Direitos Humanos, o Brasil é signatário de compromissos normativos que impõem obrigações positivas de proteção contra a violência de gênero, inclusive em meios tecnológicos. A CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, incorporada ao ordenamento jurídico por meio do decreto 4.377/02, impõe aos Estados-partes o dever de adotar medidas apropriadas, legislativas ou de outra natureza, para assegurar o pleno exercício e gozo dos direitos humanos pelas mulheres, livres de discriminação e violência.
No mesmo sentido, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), promulgada pelo decreto 1.973/1996, estabelece a obrigação de adotar medidas que incluam a responsabilização de terceiros - inclusive operadores de plataformas tecnológicas - que facilitem, por ação ou omissão, a perpetração de violência de gênero. A jurisprudência da CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem reiterado a exigência de diligência reforçada do Estado e de atores privados na repressão e prevenção da violência digital de cunho misógino, inclusive por meio da regulação dos fluxos de informação em plataformas digitais, p. ex. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da OEA.
À luz do exposto, a normatividade interna, em harmonia com os compromissos internacionais de direitos humanos, impõe um dever jurídico de atuação célere e eficaz por parte dos provedores de aplicações de internet diante de conteúdos que ostentem nítido potencial lesivo à dignidade das mulheres, especialmente aqueles que perpetuem estigmas, constrangimentos ou violência simbólica. Em tais hipóteses, o princípio da não discriminação (CRFB/88, art. 5º, I) e o mandado de criminalização da violência no âmbito doméstico e/ou familiar (CRFB/88, art. 226, § 8º) constituem fundamentos constitucionais suficientes a justificar a mitigação da liberdade de expressão em favor da proteção integral da vítima.
É juridicamente imperativo reconhecer que a eventual supressão ou restrição de perfis em plataformas de redes sociais, a pretexto de contenção de condutas abusivas, implica, invariavelmente, necessidade de exame substancial do conteúdo veiculado, circunstância que exige a instauração de incidente processual específico, com dilação probatória adequada e observância estrita ao contraditório e à ampla defesa, inclusive no que tange aos intermediários da comunicação - notadamente os provedores de aplicação - cuja participação é imprescindível para viabilizar a produção probatória ampla e a ponderação proporcional entre os direitos fundamentais em tensão. Tal exigência, por sua natureza complexa e procedimentalmente densa, mostra-se, em regra, incompatível com o rito célere e "sumaríssimo" das medidas protetivas de urgência previstas na lei 11.340/06 (lei Maria da Penha), cujo escopo é a proteção imediata da mulher (ou LGBTQIA+) em situação de violência doméstica e/ou familiar.
De outro vértice, impõe-se reconhecer a possibilidade de determinação judicial para que os provedores de aplicação ou de conteúdo procedam à imediata indisponibilização de material considerado ofensivo ou violador de direitos fundamentais da vítima - especialmente os direitos à intimidade, vida privada, honra e imagem - mediante manifestação fundada da parte interessada. Tal providência encontra respaldo na jurisprudência consolidada do STF e do STJ no sentido de que a liberdade de expressão, embora detentora de envergadura constitucional (art. 5º, IV e IX, e art. 220 da CRFB), não ostenta caráter absoluto, devendo ser compatibilizada com os demais direitos fundamentais, notadamente aqueles que integram a cláusula geral da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CRFB), princípio estruturante do Estado Democrático de Direito.
O próprio diploma normativo, em seu art. 21, estabelece exceção relevante à regra geral do art. 19, ao prever que, nos casos de disseminação não consensual de imagens íntimas, os provedores de internet devem proceder à retirada do conteúdo ofensivo a partir de notificação extrajudicial formalizada pela vítima ou por seu representante legal, independentemente de prévia ordem judicial. Essa previsão normativa, alinhada à Convenção de Belém do Pará (ratificada pelo Brasil em 1995) e aos parâmetros do Comitê CEDAW da ONU, reconhece a gravidade da violência digital de gênero e a urgência de respostas estatais e privadas eficazes à revitimização feminina no espaço virtual, notadamente diante da natureza reiterativa, exponencial e traumatizante dessa modalidade de violência simbólica e estrutural.
Diante da gravidade da temática em apreço, após receber notificação da ofendida o provedor de internet deve indisponibilizar o conteúdo, sob pena de tornar solidariamente responsável. Nesse sentido, leciona Tarcisio Teixeira:
"A lei se preocupou em dar um tratamento especial para os casos de imagens, vídeos ou outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado. Isso tem se tornado uma prática frequente, sobretudo entre os mais jovens, seja pela exposição de imagens extraídas com o consentimento dos envolvidos, seja pela obtenção clandestina. Na maioria das vezes quando há consentimento este é voltado para a captação da cena, mas não para a sua exposição na internet. Alguns levam a cabo a exposição da cena na internet como forma de vingança, por exemplo, pelo término de um relacionamento.
De acordo com o art. 21, nestes casos o provedor que disponibiliza conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.
Vale frisar que neste caso não se trata de ordem judicial, mas sim de mera notificação do interessado ao provedor. Esta notificação deverá ser específica, contendo, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação exata do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido. A lei cuidou de especificar apenas acerca do teor da notificação, mas não especificou sobre a forma da notificação. Tendo em vista a possibilidade de uma interpretação ampla em que uma comunicação eletrônica (como o e-mail) ou mesmo uma ligação telefônica poderiam ser considerados formas de notificação, é altamente recomendável que a notificação seja feita com AR - aviso de recebimento. Ou, melhor ainda, que a notificação seja feita via cartório extrajudicial ou pelo Poder Judiciário, sendo que em ambos os casos pode ser requerida a entrega por oficial de justiça". (Marco Civil da Internet: comentado. São Paulo: Almedina, 2016, p. 78)
Muito embora os provedores de aplicação na internet não estejam, em regra, submetidos ao dever jurídico de monitoramento prévio ou censura editorial dos conteúdos disponibilizados por terceiros - sob pena de violação ao princípio da neutralidade da rede e do art. 19, caput, da lei 12.965/14 (marco civil da internet) -, é-lhes imputável o dever de remoção do conteúdo manifestamente ilícito, uma vez verificada, no caso concreto, a presença de elementos objetivos de abusividade, especialmente quando evidenciada a existência de material de natureza vexatória, sexualizada e atentatória à dignidade da pessoa humana da vítima, com nítida extrapolação dos limites constitucionais da liberdade de expressão.
Em julgado análogo o STJ já teve a oportunidade de manifestar que, "(...) ao ser comunicado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, deve o provedor agir de forma enérgica, retirando o material do ar imediatamente, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada." (REsp 1.308.830/RS, relator ministro Nancy Andrighi, julgado em 8/5/12).
É certo que, nos termos do art. 21 do marco civil da internet, seria facultado à parte ofendida, na qualidade de titular dos direitos da personalidade violados, promover notificação extrajudicial diretamente ao provedor de aplicação para fins de remoção do conteúdo, sobretudo diante do caráter sexual e não consentido da postagem, hipótese em que se dispensa, excepcionalmente, a intervenção judicial prévia. Entretanto, diante das circunstâncias fáticas da espécie - que demandam resposta célere, eficaz e com força coercitiva imediata -, revela-se juridicamente adequado e processualmente recomendável, por razões de economia processual, segurança jurídica e efetividade da tutela jurisdicional, que seja expedida ordem judicial direta determinando a imediata indisponibilização do conteúdo lesivo.
No caso em apreço, evidencia-se a materialidade de conduta ofensiva não apenas à dignidade sexual da mulher, mas também à sua integridade psíquica, à privacidade e aos direitos da personalidade, elementos todos tutelados pelo ordenamento jurídico brasileiro sob os auspícios do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988), bem como pelo sistema normativo de proteção integral previsto na lei 11.340/06 (lei Maria da Penha) e na legislação penal.
A medida judicial, nesse contexto, reveste-se de função não apenas reparatória, mas também preventiva e simbólica, como forma de afirmação concreta dos direitos fundamentais da personalidade, da integridade psicossocial da mulher e do combate à violência simbólica praticada no ambiente digital - expressão contemporânea das estruturas de gênero discriminatórias já reconhecidas tanto na doutrina especializada quanto nos instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos das mulheres, como a CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção de Belém do Pará.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha).
BRASIL. Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011.
BRASIL. Código de Processo Penal.
BRASIL. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1996 (Convenção de Belém do Pará).


