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Entre o cotista e a companhia investida: O conflito no exercício do voto em assembleias por fundos de investimento

Quando fundos de investimento votam em assembleias societárias, pode-se instalar uma tensão entre o dever de lealdade aos cotistas e o compromisso com o interesse da companhia investida - um dilema jurídico ainda não resolvido, cuja omissão normativa pode custar caro à governança corporativa.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Atualizado em 31 de julho de 2025 08:31

Na estrutura de governança empresarial, os sócios de uma companhia têm o dever de exercer seus direitos de voto no interesse da sociedade1. Por concepção lógica e previsão legal, o exercício desses direitos encontra limites sempre que dele se originar um conflito entre os interesses particulares do sócio e os próprios da companhia. O direito de voto, nesse contexto, não é expressão de um poder arbitrário, mas instrumento funcional vinculado à realização do objeto social2.

Esse dever, já complexo por si, ganha contornos singulares no caso dos fundos de investimento. Quando titulares de participação societária, os fundos exercem os direitos políticos por meio de seus administradores ou gestores, nos termos da regulamentação da CVM3, por forma representativa4 e sob regime de condomínio de investidores, dada a ausência de personalidade jurídica própria.

Nesse arranjo, instala-se uma tensão fiduciária, em que, de um lado, o gestor tem o dever de lealdade para com os cotistas, devendo votar em seu melhor interesse; de outro, enquanto acionista da sociedade investida, está vinculado à obrigação de não votar em benefício próprio quando em detrimento do interesse social. Sempre que os interesses da companhia e dos cotistas não se alinham, recai sobre o gestor o encargo de decidir qual dessas orientações fiduciárias deve conduzir sua atuação.

A analogia condominial ajuda a ilustrar a complexidade da situação. Imagine um síndico incumbido de representar os condôminos de um edifício, enquanto ele próprio é também o proprietário de boa parte dos imóveis do prédio (ou, ao menos, investido de poderes para agir em nome de seus proprietários). Embora continue formalmente obrigado a representar os condôminos, é inevitável que suas decisões sejam atravessadas por interesses particulares - não ilegítimos, mas potencialmente conflitantes com o melhor interesse do conjunto. Exigir desse síndico um grau de imparcialidade institucionalizada, sem mecanismos preventivos, critérios objetivos ou limites estruturais, é confiar demasiadamente na autorregulação de um agente exposto a incentivos contraditórios.

Esse é o cenário dos fundos que, direta ou indiretamente, detêm o controle ou influência relevante capazes de dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento das companhias investidas. A posição do gestor se transforma à medida que não mais se limita à função de agente fiduciário e passa a ocupar também a posição de acionista controlador, com os deveres e riscos jurídicos decorrentes. A tensão entre os interesses dos cotistas e o interesse social da sociedade se acirra, enquanto o ordenamento jurídico brasileiro ainda carece de uma disciplina clara e efetiva para lidar com essa ambivalência.

Diante disso, é possível vislumbrar duas leituras concorrentes sobre a natureza dessa tensão. A primeira, de orientação mais pragmática, parte da premissa de que o gestor se vê submetido a dois deveres fiduciários autônomos, mas dicotômicos: um interno, em relação aos cotistas; e outro externo, enquanto acionista da sociedade investida. Nesse modelo, os dois polos de interesse não necessariamente convergem e, quando colidem, instauram um verdadeiro conflito de lealdades. Essa perspectiva impõe a necessidade de desenvolver critérios jurídicos objetivos para delimitar situações de incompatibilidade, disciplinar os mecanismos de decisão e mitigar os riscos de abuso, especialmente quando o fundo ocupa posição de controle.

A segunda leitura, de viés mais dogmático, entende que o dever do gestor para com os cotistas não apenas prevalece, mas condiciona e fundamenta o dever de respeito ao interesse social da companhia investida. Isso porque os direitos políticos exercidos pelo fundo (inclusive o direito de voto) derivam da titularidade indireta dos cotistas sobre os ativos em carteira. Assim, o vínculo fiduciário com a companhia não nasce de uma autonomia institucional do fundo, mas da representação dos interesses dos cotistas enquanto verdadeiros titulares econômicos da participação societária. Nesse raciocínio, considerando que o dever do fundo para com a sociedade investida é condição sine qua non de materialização do dever do fundo para com os cotistas, o exercício do voto em conformidade com o interesse social da companhia efetiva o cumprimento do dever fiduciário perante os investidores. O conflito, portanto, seria apenas aparente, e a duplicidade de deveres se resolveria pela prevalência do interesse dos cotistas como diretriz unificada da conduta do gestor.

Considere-se, por exemplo, o caso de um fundo de investimento que detenha parcela significativa do capital votante de uma companhia listada em bolsa, prestes a deliberar, em assembleia geral extraordinária, sobre a contratação de assessores financeiros para avaliação de alternativas à recuperação judicial - medida com impacto sensível no valor de mercado da companhia. Embora, sob a ótica do fundo, o voto contrário à contratação pudesse parecer racional do ponto de vista do retorno imediato ao cotista, evitando a sinalização negativa ao mercado, tal deliberação poderia ser essencial à preservação da empresa e dos interesses dos demais acionistas. Diante dessa dissonância, o gestor se veria diante de um impasse: votar conforme os interesses imediatos do investidor que representa ou conforme as necessidades institucionais da companhia sob sua influência?

A partir de cenários como o descrito, percebe-se que a divergência interpretativa não é meramente teórica, ela determina os contornos do regime de responsabilização aplicável ao voto do fundo em assembleia e impacta diretamente a segurança jurídica dos atos societários deliberados sob sua influência. Na ausência de um posicionamento normativo claro, o sistema permanece oscilando entre o reconhecimento do conflito - exigindo tratamento específico - e a presunção de harmonia entre os interesses envolvidos - o que, na prática, esvazia qualquer filtro preventivo.

Por muito tempo, prevaleceu no âmbito da CVM uma leitura formal sobre o conflito de interesses, segundo a qual, nas hipóteses de conflito típico - como vantagem particular ou deliberação que envolvesse benefício próprio - o acionista era impedido de votar. Essa abordagem foi progressivamente substituída pela teoria material do conflito, mais flexível, mas também mais arriscada. Consolidou-se a compreensão de que o voto em situação de potencial conflito não deve ser impedido de plano: sua validade será aferida a posteriori, com base no conteúdo da deliberação e na eventual demonstração de abuso ou prejuízo4.

Essa inflexão normativa - coerente com a lógica de confiança nas decisões da maioria e na autorresponsabilidade do investidor institucional - transfere o ponto de controle do conflito para o momento posterior ao voto. O gestor, mesmo diante de interesses contrapostos, não é mais juridicamente tolhido e exerce o voto sob o risco de responsabilização futura, caso venha a ser comprovado desvio de finalidade. A única barreira efetiva entre o dever de lealdade e o exercício enviesado do voto passa a ser, portanto, o enforcement judicial ou administrativo - mecanismo necessariamente ex post, sujeito a assimetrias informacionais e à conhecida morosidade na reconstrução da vontade deliberativa.

Esse regime, ainda que juridicamente admissível, revela insuficiências. A resolução CVM 175/22 consolidou as normas aplicáveis aos fundos de investimento, mas permaneceu silente quanto ao tratamento específico da situação aqui descrita. Reitera-se na normativa, como regra geral, que o gestor deve agir sempre no melhor interesse dos cotistas, mas não se avança na delimitação do que deve fazer o gestor quando a busca por esse interesse colidir com os deveres derivados da posição de acionista relevante ou controlador de uma companhia investida.

A consequência é a naturalização de uma zona de ambiguidade fiduciária. A ausência de diretrizes normativas e de balizas interpretativas específicas obriga o gestor a decidir sozinho, caso a caso, em ambiente de baixa previsibilidade jurídica. Não se trata apenas de um risco para os cotistas ou para os minoritários da companhia investida, trata-se de um risco sistêmico: a erosão dos deveres fiduciários por indeterminação funcional6. A convivência, sem disciplina clara, de dois deveres de lealdade simultâneos gera insegurança e fragiliza os fundamentos da governança corporativa.

Esse estado de coisas impõe resposta institucional. No plano normativo, é possível - e desejável - que a CVM edite orientações específicas ou promova ajustes regulatórios para tratar do voto em contextos de conflito resultante dessa ambivalência. No plano contratual, políticas de voto mais robustas e protocolos internos de decisão podem conferir racionalidade e controle à atuação dos gestores. E no plano doutrinário, é necessário buscar entender se, nesses casos, o conflito de interesses é circunstancial ou estrutural, e qual seria o regime próprio de contenção e responsabilização aplicáveis.

A ambivalência fiduciária não é, por si, ilegítima. Ela é expressão de uma realidade econômica em que fundos de investimento ocupam posições centrais no controle de empresas. Mas sua omissão normativa, sua invisibilização interpretativa, e sua delegação informal ao juízo discricionário de gestores privados representam um déficit de juridicidade que precisa ser enfrentado. O voto do fundo controlador continuará a ser exercido, a  questão é: sob quais freios, com quais critérios, e com que grau de transparência. Adiar essa resposta é aceitar, em silêncio, que a duplicidade de lealdades se resolva pela conveniência de quem as carrega.

_______

1 Lei 6.404/1976 Art. 115. O acionista deve exercer o direito a voto no interesse da companhia; considerar-se-á abusivo o voto exercido com o fim de causar dano à companhia ou a outros acionistas, ou de obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a companhia ou para outros acionistas.

2 "A vontade da maioria, manifestada nas deliberações societárias, não pode ser superada pelo interesse individual do acionista minoritário, notadamente quando a deliberação atende à preservação do interesse da companhia. A esse respeito, Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira ensinam que: 'O funcionamento das sociedades por ações não prescinde do princípio majoritário: exigir-se o consenso unânime dos acionistas seria a imobilização da sociedade. Em verdade - observa D'ORTHÉ (1962, v. 1, p. 363) - toda organização coletiva baseada sobre uma comunidade de interesses recíprocos está obrigada à adoção do regime majoritário para a tomada de decisões (...) Explica CARNELUTTI (1926, p.181/182): 'o domínio da maioria é um instrumento jurídico indispensável para a vida das sociedades comerciais (...)'.' ('A Lei das S.A.', Rio de Janeiro, Renovar, 1992, pág. 457). Mas os votos dos acionistas devem sempre ser pautados pelo interesse social, a teor, inclusive, do que diz o artigo 115 da Lei nº 6.404/76, o que nos obriga a reconhecer que, entre o interesse extrassocial de um sócio e o interesse da sociedade, deve sempre este último prevalecer, mesmo que imponha o sacrifício do outro interesse. De outra forma, surgiria a figura do abuso do direito de voto, que se aplica a todos os acionistas, controladores e minoritários. Por isso, não é novidade para ninguém que a posição ou o interesse individual do acionista não deve e não pode sobrepor-se ao interesse social. O voto do acionista que sobrepõe o seu interesse ao interesse social padece de desvio, punível na forma da lei, ainda que a deliberação não prevaleça. Veja-se a lição de Ascarelli: 'O voto é concedido ao sócio para a tutela de seu interesse como sócio; encontra a sua justificação e seu limite na comunhão de interesses; só no limite de seu interesse como sócio que os acionistas são (até com sacrifício de seu interesse extrassocial frente ao interesse social) sujeitos à deliberação da maioria.' (Tullio Ascarelli, 'Studi in tema di società, pág. 164). E, na doutrina nacional, confira-se o que diz Comparato: 'Característica fundamental do negócio jurídico de sociedade é a convergência de todos os atos ou prestações para um fim comum, considerado de interesse social e, portanto, distinto do interesse individual dos sócios. É o que nossa Lei de Sociedades por Ações de 1976 denomina 'interesse da companhia' (arts. 115 e 117, par. 1º, c). O interesse social há de sempre prevalecer sobre o interesse individual, em caso de conflito' (Fábio Konder Comparato, Direito Empresarial. Saraiva, São Paulo. pág. 225)" (Colegiado da CVM, Proc. RJ2001/11663, Reg. Col. 3520/2002, Relator Diretor Luiz Antonio de Sampaio Campos, j. 15.1.2002).

3 Resolução CVM 175/22 Art. 94. Compete ao gestor exercer o direito de voto decorrente de ativos detidos pela classe, realizando todas as ações necessárias para tal exercício, observado o disposto na política de voto da classe.

4 Lei 6.404/1976 Art. 126. [...] § 1º O acionista pode ser representado na assembléia-geral por procurador constituído há menos de 1 (um) ano, que seja acionista, administrador da companhia ou advogado; na companhia aberta, o procurador pode, ainda, ser instituição financeira, cabendo ao administrador de fundos de investimento representar os condôminos.

5 "As hipóteses de conflito de interesses existem quando o acionista possui um interesse que pode conflitar com o interesse da companhia. Os casos clássicos de conflito de interesses são as deliberações que discutem a celebração de contratos bilaterais entre a companhia e um de seus acionistas (...) No tocante ao conflito de interesses, há duas grandes correntes que divergem sobre a natureza do 'interesse conflitante' e sobre a proibição de voto. Para os defensores do conflito formal, o conflito de interesses seria caracterizado pela simples existência de interesses potencialmente antagônicos entre a companhia e o acionista. Haveria, portanto, uma proibição de voto (controle ex ante). Já os defensores do conflito substancial argumentam que o conflito de interesses não poderia ser caracterizado a priori e que esse somente existiria quando a deliberação causasse um prejuízo para a companhia. A simples existência de interesses contrapostos entre a companhia e um acionista, não seria, portanto, razão para impedi-lo de votar, ficando o controle do voto sujeito a uma análise posterior sobre o mérito da operação e, especialmente, sobre a comutatividade das condições do negócio celebrado entre a companhia e o acionista (controle ex post). Para esta segunda corrente, a realização de um contrato comutativo a preços de mercado entre a companhia e um acionista não caracterizaria uma hipótese de conflito de interesse já que o contrato seria benéfico para ambas as partes" (Colegiado da CVM, Proc. RJ2013/10913, Reg. 9012/14, Rel. Ana Dolores Moura Carneiro de Novaes, j. 20.05.2014).

6 A doutrina italiana expressa entendimento semelhante ao brasileiro quanto à limitação - e não à suspensão - do voto em caso de conflito substancial: "Non è vero infatti che il socio in conflitto d'interessi debba astenersi dal votare, bensì che se vota, deve esercitare il voto in modo da non recar danno alla società: dunque non si ha sospensione ma limitazione del voto, che non dev'essere esercitato per un interesse contrario alla società con pregiudizio della medesima" (Ferrara e Corsi, Gli imprenditori e le società, Giuffrè Editore, 12. ed., 2001, p. 483).

José Marcelo Martins Proença

José Marcelo Martins Proença

Professor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Professor do Programa de Pós-graduação Lato Sensu de Direito da Fundação Getúlio Vargas (GVlaw) em São Paulo. Advogado.

Luciano Torres Caetano Filho

Luciano Torres Caetano Filho

Graduando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Estagiário em Direito Societário.

Rhuan Damasceno Negri Ferreira

Rhuan Damasceno Negri Ferreira

Graduando em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Graduando em Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Estagiário em Direito Empresarial.

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