Arbitragem na Administração Pública: Limites nos contratos administrativos
Análise da arbitragem na Administração Pública, com foco em sua evolução, fundamentos jurídicos e limites da arbitrabilidade objetiva nos contratos administrativos.
sexta-feira, 1 de agosto de 2025
Atualizado às 11:00
1. Arbitragem na administração pública: evolução histórica e precedentes
A arbitragem envolvendo a Administração Pública no Brasil evoluiu de uma perspectiva restritiva para uma aceitação normativa e jurisprudencial consolidada. Tradicionalmente, entendia-se que o Estado, enquanto titular do poder público e garantidor do interesse coletivo, não poderia renunciar à jurisdição estatal nem tampouco se submeter a juízo privado. Essa compreensão baseava-se na ideia de indisponibilidade dos interesses públicos, no princípio da legalidade estrita e na supremacia da Administração sobre os administrados. Contudo, esse entendimento passou a sofrer consideráveis mudanças.
Na década de 70, o STF, no emblemático Caso Lage, reconheceu a legalidade da arbitragem mesmo em litígios envolvendo a Fazenda Pública. Na ocasião, o STF afirmou que o "nosso direito sempre admitiu e consagrou [o juízo arbitral], inclusive nas causas contra a Fazenda"
Nas décadas seguintes, especialmente a partir dos anos 2000, o STJ consolidou uma jurisprudência mais progressista e técnica sobre o tema, examinando a arbitrabilidade sob o viés da natureza do interesse em disputa e da natureza jurídica dos contratos. No REsp 612.439/RS, o STJ entendeu que uma vez que a sociedade de economia mista tenha celebrado contrato regido pelo direito privado, presume-se a disponibilidade dos direitos dele decorrentes, sendo válida a cláusula compromissória ali inserida. A 3ª turma afirmou que "os direitos e as obrigações decorrentes de contratos de atividade econômica em sentido estrito são transacionáveis e, portanto, sujeitos à arbitragem".
Mais recentemente, o STJ reafirmou essa orientação no REsp 904.813/PR ao julgar que mesmo quando a cláusula compromissória não estiver prevista no edital ou no contrato original, é válida a celebração posterior de compromisso arbitral, desde que respeitados os requisitos legais. A Corte reconheceu que ao se tratar de litígios patrimoniais e disponíveis, ainda que no âmbito de contratos administrativos, a Administração Pública pode optar pela arbitragem, considerando sua celeridade e especialização.
A reforma da lei de arbitragem, promovida pela lei 13.129/15, representou marco definitivo na aceitação da arbitragem pela Administração Pública. O novo § 1º do art. 1º da lei 9.307/1996 passou a prever expressamente a possibilidade de a administração pública optar pela arbitragem. Essa inclusão legislativa eliminou a dúvida sobre a possibilidade da arbitragem pelo poder público, em tese, ao menos sob o aspecto subjetivo, deslocando o centro da controvérsia para os limites objetivos da arbitrabilidade.
Desta forma, ante o crescente uso da arbitragem pela Administração Pública vem-se construindo entendimento ampliativo no sentido de gerar mais segurança jurídica e maturidade institucional sobre o tema. A arbitragem, assim, deixou de ser um instituto estranho à atuação administrativa, tornando-se mecanismo legítimo e eficaz para a solução de conflitos contratuais. A análise de sua admissibilidade, entretanto, exige aprofundamento quanto à natureza dos direitos envolvidos.
2. O conceito de "direitos patrimoniais disponíveis" à luz do interesse público primário e secundário
A noção de direitos patrimoniais disponíveis constitui o cerne da arbitrabilidade objetiva e, por consequência, elemento delimitador da possibilidade de a Administração Pública submeter litígios à arbitragem.
O § 1º do art. 1º da lei 9.307/1996, inserido pela Reforma de 2015, prevê que a administração pública poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Surge, assim, debate sobre o que são direitos patrimoniais disponíveis.
A doutrina contemporânea tem se valido da clássica distinção entre interesses públicos primários e interesses públicos secundários para delimitar os contornos da arbitrabilidade objetiva.
Segundo Eros Grau, o interesse público primário é aquele voltado à coletividade e à promoção do bem comum, tais como a universalização dos serviços públicos, a proteção do meio ambiente ou a saúde pública. Esses interesses seriam indisponíveis por natureza, pois constituem finalidade essencial do Estado. Já os interesses públicos secundários referem-se à própria estrutura da Administração, à sua organização patrimonial e financeira. Cuida-se de interesses da máquina estatal enquanto sujeito de direito e não como representação da vontade pública. Assim, podem ser objeto de disposição, desde que dentro dos limites legais e contratuais.
A partir dessa distinção, a arbitragem se revela compatível com os interesses públicos secundários, notadamente nas relações contratuais patrimoniais. Quando a Administração celebra contratos com particulares, como fornecimento, obras, serviços, locações, concessões, entre outros, atua com base em um interesse instrumental, que, embora vise viabilizar o interesse primário, por si só, não se reveste de indisponibilidade absoluta.
Essa dicotomia entre primário e secundário está associada também à distinção entre atos de gestão e atos de império, retomada por autores como Joaquim de Paiva Muniz.
Os atos de gestão são aqueles pelos quais a Administração atua em igualdade com o particular, no plano horizontal das relações negociais.
Ao contrário, os atos de império são marcados pela supremacia do interesse público e incluem, por exemplo, a imposição de sanções administrativas, o exercício do poder de polícia, a desapropriação e a rescisão unilateral de contratos administrativos com base em cláusulas exorbitantes. Esses atos refletem a verticalidade da relação jurídica e envolvem prerrogativas que não se compatibilizam com a arbitragem.
Dessa forma, os litígios que envolvam obrigações recíprocas derivadas de atos de gestão, como inadimplemento contratual, reequilíbrio econômico-financeiro e cobrança de valores pactuados são, em regra, arbitráveis, desde que referentes a direitos patrimoniais disponíveis. Já as controvérsias sobre o exercício de poderes unilaterais típicos tendem a escapar da jurisdição arbitral.
Alguns autores propuseram o critério da patrimonialidade como alternativa mais objetiva para a definição da arbitrabilidade. Segundo essa visão, bastaria que a lide envolvesse um conteúdo economicamente mensurável para ser considerada arbitrável, ainda que a titularidade do direito seja pública. No entanto, o próprio autor reconhece que há direitos patrimoniais que são indisponíveis. Assim, a patrimonialidade não pode ser critério exclusivo.
Portanto, para auferir a arbitrabilidade objetiva, deve-se realizar uma ponderação concreta, levando em conta a natureza do interesse envolvido, os princípios constitucionais aplicáveis e o regime jurídico do contrato.
3. Limites da arbitrabilidade objetiva nos contratos administrativos
Mesmo com o avanço legislativo da lei 9.307/1996 e o amadurecimento jurisprudencial acerca da admissibilidade da arbitragem envolvendo a Administração Pública, ainda subsistem debates importantes sobre os limites da arbitrabilidade objetiva, especialmente em contratos administrativos marcados por prerrogativas públicas ou que envolvem políticas públicas essenciais.
Um dos campos mais sensíveis à arbitrabilidade diz respeito à revisão dos contratos administrativos, especialmente no tocante ao reequilíbrio econômico-financeiro. A questão se coloca com particular ênfase nos contratos de longa duração, em que fatores supervenientes podem impactar o equilíbrio da equação contratual.
A jurisprudência do STJ tem reconhecido expressamente a arbitrabilidade de controvérsias sobre revisão contratual e equilíbrio econômico-financeiro, desde que não se trate de cláusulas essencialmente indisponíveis.
O STJ, no REsp 612.439/RS, reconheceu a possibilidade de submissão à arbitragem de litígios que envolviam a prestação de serviço de fornecimento de energia elétrica por sociedade de economia mista, reafirmando que quando os contratos administrativos versem sobre atividade econômica em sentido estrito, os direitos e as obrigações deles decorrentes serão transacionáveis e, portanto, sujeitos à arbitragem.
De acordo com autora Selma Maria Ferreira Lemes, a cláusula compromissória constante nos contratos administrativos pode ser utilizada para resolver controvérsias relativas à manutenção da equação econômico-financeira, cláusulas de pagamento e questões de natureza patrimonial. Tal possibilidade encontra fundamento direto na própria lei 8.987/1995 (lei das concessões), que, em seu art. 23, inciso XV, prevê expressamente como cláusula essencial dos contratos de concessão a indicação de "foro e o modo amigável de solução das divergências contratuais".
A arbitrabilidade não alcança o ato de império em si, mas pode incidir sobre seus efeitos patrimoniais, como indenizações decorrentes da rescisão unilateral ou da inadimplência do contrato. Assim, não se arbitra a validade da rescisão unilateral, mas sim o valor da indenização devida, desde que esse objeto seja determinado e economicamente mensurável.
Conclusão
A evolução normativa e jurisprudencial da arbitragem na Administração Pública consolidou a legitimidade do uso desse mecanismo nos contratos administrativos. A inclusão expressa do § 1º no art. 1º da lei 9.307/1996 afastou divergências sobre arbitrabilidade subjetiva. Contudo, os contornos da chamada arbitrabilidade objetiva ainda são objeto de importantes debates doutrinários e judiciais. Superada a ideia de que o Estado detém um monopólio jurisdicional ou que todo interesse público seria indisponível, reconhece-se hoje que a Administração, ao contratar, pode submeter-se a formas adequadas e eficientes de resolução de controvérsias, entre as quais se destaca a arbitragem.
A doutrina contemporânea apresenta ferramentas interpretativas robustas para definir os limites da arbitrabilidade objetiva. A distinção entre interesse público primário e secundário, atos de império e atos de gestão, bem como o uso da técnica da ponderação de interesses à luz da juridicidade constitucional, têm permitido afastar a noção tradicional de indisponibilidade absoluta dos direitos estatais.
Nesse sentido, a arbitrabilidade das controvérsias envolvendo o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos tem sido cada vez mais admitida. A jurisprudência do STJ tem sido no sentido de que litígios sobre aspectos patrimoniais do contrato, inclusive indenizações por rescisão unilateral ou pedidos de revisão tarifária, são arbitráveis, desde que não envolvam decisões que configurem exercício de poder de império.
Desta forma, ante a evolução jurisprudencial apresentada acima para permitir a arbitragem pela Administração Pública, consigna-se que o fortalecimento da arbitragem no setor público representa não apenas um avanço jurídico, mas também um passo importante rumo a uma Administração mais eficiente, transparente e comprometida com soluções céleres frente aos conflitos contratuais.
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