MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Bicentenário da "Synopse do Codigo do processo civil" (III)

Bicentenário da "Synopse do Codigo do processo civil" (III)

Terceira parte da série de artigos sobre os duzentos anos do livro "Synopse do Codigo do processo civil" (1825-2025), de Silvestre Pinheiro Ferreira.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Atualizado às 11:01

Nessa terceira parte, como será visto, prosseguimos na abordagem sobre o livro "Synopse do Código do Processo Civil", de Silvestre Pinheiro Ferreira, por ocasião de seu bicentenário (1825-2025). Avançaremos sobre alguns institutos específicos, começando pela citação, instituto encartado nos § 1 a § 54 do codice.

Uma observação preliminar deve ser feita, pois a exposição e o "código" cuidam de momento anterior ao ganho de autonomia acadêmica e epistemológica do direito processual civil, quando expressões tão caras para os processualistas, como ação, demanda e processo, parecem utilizadas sem maiores preocupações, como se perceberá ao longo do texto (e nas continuações).

n. 1 traz a noção geral: "no começo da demanda devem ser citadas todas as pessoas a quem o negócio toca, como Partes principais, para comparecerem em juízo, e responderem a todos os atos ordinários do Processo, até final sentença". Já o n. 2 cuida de certos atos diferenciados, que exigiriam citação especial: "para aqueles atos que, exigindo audiência da parte, esta não tem razão de saber como, nem quando eles terão lugar, bem como todas as vezes que a causa, ou algum dos seus incidentes houverem de passar a processar-se perante outro juízo, deve em cada um destes casos proceder especial citação".

Já no n. 3 traz as seis formalidades da citação: "No ato da citação deve-se expressar: 1º o nome do Autor. 2º o nome, ou equivalente designação do réu. 3º o motivo por que é citado. 4º Perante que juízo. 5º o dia e hora em que deve comparecer. 6º Se pessoalmente e não por procurador".

A seu turno, o n. 4 diferencia o local da citação, que trará diferentes modos de fazê-la, tendo por critério a distância, utilizando a expressão "arrabalde", que significa "lugar ou localidade que fica no aro de uma povoação", quando preconiza: "Se o réu está no lugar, ou arrabaldes, cita-se por simples despacho do juiz na petição do autor. Estando fora dos arrabaldes, mas no termo, cita-se por mandado".

n. 5 prossegue na mesma ordem de ideias, quando preconiza: "Se estiver fora do Termo, dirige o julgador Carta Precatória ao juiz do lugar onde constar que o réu existe, fazendo o Juiz deprecante certa a sua competência pela inserção do título que lhe houver conferido, quando lhe não pertença por jurisdição ordinária". Vejam que faz uso do elemento de medida para estabelecer quando seria o caso de realização da citação por carta, ao se referir aoato praticado fora do "termo", que significava limite, fronteira ou, em alguns casos, a uma área delimitada, já que "arrabalde" descrevia a área física próxima à cidade, enquanto expressão "termo" poderia se referir ao limite dessa área ou a qualquer outro limite geográfico.

Por sua vez, o n. 6 cuida da hipótese de múltiplas citações: "Sendo muitas e incertas as pessoas que devem ser citadas individualmente, ou não constando do lugar onde existem, ou existindo em lugar impossível ou de perigoso acesso, o Juiz, depois de prestada pela parte justificação sumária daqueles pressupostos, por duas testemunhas, manda fazer a citação por Edictos afixados nos lugares nos lugares públicos usuais, a vozes de Pregoeiro, que deve passar por fé havê-lo assim feito: declarando-se nos Edictos como a eles precedeu Inquirição judicial sobre a mencionada impossibilidade da citação pessoal".

Contudo, o n. 7 menciona hipótese de vedação de citação por Edictos, quando dizia: "Não pode, porém, ter lugar a citação por Edictos nas causas de Juramento d'alma, nem nas de Assinação de dez dias a Escritos particulares, a menos que estes não sejam dos que tem força de escritura pública", enquanto o n. 8 se preocupa com a certificação da citação: "Toda citação deve ser certificada pela fé do Oficial, que a houver feito, reduzindo-se a escrito nos autos, e, fazendo-se além disso certa a identidade da pessoa do citado, por meio de uma ou mais testemunhas, quando ele não for conhecido do Oficial".

No n. 9 podemos observar quais eram aqueles que podiam exercer a função oficial de citação: "Os oficiais qualificados para fazerem as citações são os Tabeliães do Judicial, e os Escrivães ou Porteiros e os Juízes da Vintena e jurados", enquanto estabelece no n. 10 a vedação da função por classe social: "Aos porteiros não é lícito citarem pessoas nobre, de escudeiro para cima, nem entrarem nas casas daqueles a quem vão citar, nem citarem para juramento d'alma, nem por quantia que exceda a mil reis, quando a citação é para execução da sentença".

Com efeito, o n. 11 menciona os Juízes da Vintena, que em Portugal eram funcionários municipais eleitos pelas câmaras municipais para julgar questões de pequeno valor com base na proporção de um juiz para cada vinte vizinhos. Preconizava: "Os Juízes da Vintena e Jurados só podem fazer citação por expresso mandado do juiz de fora, ou ordinário respectivo nas suas Aldeias ou Limites. Devem, porém, as suas fés de Citação ser reduzidas a Instrumento por Tabelião, e na falta deste Escrivão da Câmara respectiva passará disso Carta Testemunhável".

Novamente há preocupação com a classe social, quando o n. 12 estabelecia: "As pessoas nobres são citadas por Carta do Escrivão, que lhe faz entregar por Oficial, que porte por fé a entrega, no caso da pessoa citada não certificar havê-la recebido", ao passo em que o n. 13 permitia a citação autoral, desde que devidamente autorizado e em certa distância: "Pode a citação ser feita pelo autor mesmo (com uma testemunha, pelo menos), se para isso for autorizado pelo Regedor, ou pelo Chanceler da Casa da Suplicação, pelo Governador da Casa do Porto; pelo Juiz da Chancelaria; pelo Chanceler Mór do Reino; ou pelos Corregedores do Cível da Côrte, dentro das cinco léguas de seu distrito".

Por outro dispositivo sequencial, desta vez o n. 14, testemunhamos a validade da citação fictícia: "Ainda que a citação não seja imediatamente intimada ao citando, reputa-se valiosa quando o Oficial, certo da sua existência no lugar, e depois de frustrada a diligência de o haver procurado na casa da sua habitação, o houver citado na pessoa de sua mulher, filhos, sogros, genros, noras, amigos ou vizinhos, perante duas testemunhas, dando-lhe hora certa de um dia para o outro, a fim de se achar em casa, e não se achando, dá o Oficial a citação por feita, passando de tudo a competente fé". Os nos. 15 e 16 cuidam, respectivamente, da citação feita a quem deixar procurador e de quando não de poderia realizar a citação: "Se o réu, ausentando-se, houver deixado procurador, a este se deve intimar a citação"; e, "Durante as férias divinas, as extraordinárias e as repentinas, não é lícito fazer citação, exceto se houver perigo na demora. Durante as outras férias, pode-se fazer validamente, consentindo as partes".

Outro aspecto importante é trazido pelos nos. 17 a 41que, respectivamente, trazem a possibilidade de nulidade da citação nos casos que especificam: depois do sol posto (§ 17º), durante os Ofícios Divinos, aos assistentes e executores (§ 18º), aos que devem acompanhar algum defunto durante o dia do enterro (§ 19º), ao cônjuge, filhos, irmãos do defunto durante os primeiros nove dias do nojo (§ 20º), aos noivos durante os primeiros nove dias das bodas (§ 21º), aos doentes de enfermidade grave, dentre de nove dias depois da atestação de médico, que pode ser ampliada durante a gravidade da moléstia (§ 22º), aos enviados das Potências Estrangeiras e as pessoas de sua comitiva (§ 23º), aos enviados junto as Potências Estrangeiras (§ 24º), aos Deputados das Vilas e Cidades do Reino durante suas missões, por fatos anteriores a elas (§ 25º), aos magistrados temporários já encartados, a não ser com expressa licença do Desembargo do Paço, mas com algumas exceções: a) nas ações que poderiam perecer; b) nas causas de execução de sentença proferida antes de exercerem a magistratura; c) os Almoitaceis e Vereadores mais velhos; os Juízes Ordinários e os Delegados para os Tombos (§ 26º), Às Câmaras e Conselhos, se não tiver provisão do Desembargo do Paço (§ 27º), os Oficiais de Justiça durante os atos do seu ofício (§ 28º), aos presos, exceto se houver licença do Desembargo do Paço ou que seja em causas leves ou já pendentes ao tempo da reclusão, ou que se citem só para perpetuar a ação, devendo esta prosseguir depois deles soltos (§ 29º), aos pais, sogros, padrastos, patronos, a requerimento de filhos, genros, enteados e libertos, não precedendo vênia do magistrado, quando além da nulidade da citação haveria pena de sessenta mil reis, com as seguintes exceções quanto aos filhos não emancipados, a quem não se concedia licença, mas poderiam obtê-la: a) a respeito dos bens castrenses ou quase castrenses; b) a respeito dos bens adventícios em que os pais não tem usufruto; c) demandando na qualidade de tutor, curador, feitor ou procurador de outrem (§ 30º), ao menor de quatorze anos, sendo varão ou doze anos sendo fêmea, a não se fazer a citação na pessoa do respectivo tutor (§ 31º), aos que excedendo aquelas idades (14 e 12), forem menores de 25 anos, a não serem citados juntamente com os seus tutores ou curadores (§ 32º), aos filhos-famílias sem a assistência de seus pais, a menos que não seja a respeito de bens castrenses, ou quase castrenses, sobre os adventícios em que o pai não tenha usufruto ou sobre alimentos (§ 33º), a mulher casada, não sendo com participação do marido, com algumas exceções: a) no caso de o marido se achar ausente em lugar remoto; b) do marido tê-la posto a testa de alguma negociação ou tráfico (§ 34º), a Religioso, não sendo na pessoa do seu prelado (§ 35º), do escravo, não sendo na pessoa do seu senhor (§ 36º), ao mudo e surdo, mentecapto ou furioso, pródigo ou banido (julgados tais por sentença), a menos que não seja na pessoa de seus curadores (§ 37º), as que se fizerem nas pessoas mencionadas nos §§ 26, 31, 32, 33, 34, 35, 36 e 37, exceto se vierem da maneira como se habilitam para virem como réus (§ 38º), a que for feita no princípio da causa nas ações reais, bem como em execuções a requerimento do marido sobre bens de raiz sem expressa outorga de sua mulher (se não estiverem separados judicialmente), quer ela convenha espontaneamente, quer seja a isso obrigada por meios judiciais (§ 39º), a que tiver sido concedida sem o autor apresentar obrigação do réu por escritura pública, quando a lei exigir tal requisito (§ 40º), a que tiver sido feita perante juiz incompetente, embora essa nulidade não dispense o réu de comparecer, por si ou por seu Excusador munido de procuração, quando deveria alegar a incompetência e deduzir o privilégio, se o tivesse (§ 41º).

A seu turno, o n. 42 estabelece o prazo para comparecimento, preconizando: "o termo para o comparecimento (que nunca pode ser de menos que para o dia seguinte ao da citação) se subentende ser para a primeira audiência, exceto se o contrário for expressamente declarado, pelo juiz assim o reputar urgente". Já o n. 43 complementa o aspecto temporal: "Qualquer, porém, que seja o termo aprazado, nunca nele se conta o dia da citação, conta-se sim o último do mesmo termo, e sendo esse dia feriado, o ato se praticará no primeiro que não o for".

Por sua vez, o n. 44 preocupa-se em ordenar o aspecto territorial: "Achando-se alguma das partes fora da comarca, é o prazo legal de vinte dias, contados da audiência imediata à citação, e vinte e três quando o réu é chamado de longe da relação", enquanto o n. 45 ordena a citação editalícia: "Fazendo-se a citação por Edictos, nunca o prazo é menos de 30 dias, estende-se a três meses sendo para fora de Portugal, mas na Europa, e ano e meio para o Ultramar, contado do dia da partida do segundo navio que sair para o Porto de mais natural correspondência com o lugar, onde existe, ou se supõe existir a parte".

n. 46 preconiza, por outro lado: "Na primeira audiência, depois de findo o prazo, deve-se acusar a citação, sob pena de ela ficar circunducta se o réu assim o requerer, sendo o autor condenado nas custas, e só depois de as haver pago poderá ser admitido a fazer nova citação se quiser tornar a propor a mesma ação, que neste como nos outros casos em que for lícito renová-la, se instaura no mesmo estado em que findou e com as mesmas qualidades".

Novamente, aparece ordenação temporal, desde a previsão da perempção, como prevista no n. 47, que disciplina: "fica, porém, a ação perempta, nem é mais permitido ao autor citar o réu por aquela causa em tempo algum, se por três vezes assim o houver feito citar, e outras tantas tiver desertado o foro", enquanto o n. 48 disciplina a renovação da citação por excesso de prazo: "Sendo passados seis meses sem se vir falar ao feito, nem este estar concluso, se se quiser falar a ele, dever-se-ão citar novamente as partes"; já o n. 49 estabelece: "Do mesmo modo, passado um ano que o feito tenha estado na mão do Escrivão, sem a ele se vir falar, fica a instância perempta, exceto, tanto em um como em outro caso se a causa é de execução".

Por este motivo, o n. 50 complementa: "Perempta a Instância, nem por isso perecem os atos probatórios a que se houver procedido; antes, renovada ela por via de ulterior citação, se prossegue do ponto em que findou, como se nunca houvesse interrompido; e se sendo o caso tal, que a mulher do réu devesse ser citada, o tiver sido com efeito na instância perempta, não precisa de ser novamente citada depois dela instaurada", enquanto o n. 51 adiciona: "No caso de ser o réu quem não compareça, depois de apregoado em três audiências sucessivas, é lançado, e prossegue-se na causa, a sua revelia, até final sentença; assinando-se lhe porém todos os termos, como se presente fosse".

Por outro aspecto, o n. 52 cuida da possibilidade de haver contumácia do réu, e de o juiz atuar de maneira dura, que hoje seria chamada de autoritária: "Entendendo o juiz que a contumácia do réu (por que não comparece, ou comparecendo não obedece ao que por ele lhe é mandado) se faz digna de castigo, lho infligirá, por meio de multas, sequestro e mesmo prisão, segundo a gravidade da culpa", sendo complementado pelo n. 53, que diz: "Contudo, se o réu aparecer antes da sentença haver transitado pela Chancelaria, ou antes da parte se haver retirado com ela, recebe a causa nos termos em que estiver".

Por fim, o n. 54, preconiza: "quando a citação se faz por Edictos, se findo o termo, o réu não comparece com certidão do oficial, se dá por citado, e se lhe nomeia curador, com o qual corre a causa". Na próxima parte iremos abordar os demais institutos, a partir da referência ao "Libelo".

Thiago Aguiar de Pádua

Thiago Aguiar de Pádua

Pós-doutoramento (UnB, Perugia e Univali). Doutor em direito. Ex-assessor de ministro do STF. Autor do livro "O Common Law Tropical: o caso Marbury"(2023). Sócio de Aguiar de Pádua & Lima Advogados.

Joaquim Portes de Cerqueira César

Joaquim Portes de Cerqueira César

Mestre em Direito Processual - PUCSP. Doutor em Direito Constitucional - PUCSP. Especialista Direito Econômico - UnB. Advogado e Consultor

Thomas Law

Thomas Law

Advogado especialista em Direito Penal Econômico, mestre em Direito das Relações Internacionais Econômicas e doutor em Direito Comercial. É presidente da CNRBC (OAB Federal), do Ibrachina e do IBCJ, além de vice-presidente do CEDES e de comissões da OAB/SP. Também atua como pesquisador, professor, palestrante e autor. Fundador do Ibrawork.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca